domingo, 19 de maio de 2013

A Essência do Amor




A Essência do Amor

 

A fragilidade do amor

 

Terrence Malick é um cineasta muito especial. Sensível, poético e filosófico o seu cinema não agrada a todos mas jamais desilude quem se reveja nas suas questões existenciais, na constante procura de pontos de ligação na relação do homem com o universo. E «A Essência do Amor»[2012] não foge a isto, procurando demonstrar a permanente necessidade do amor no ser humano mas também a fragilidade desse sentimento voraz capaz de fazer os homens e mulheres os seres mais felizes mas também os mais infelizes do planeta. E não é por acaso que no filme, num momento de paixão a voz que é muda mas que se ouve no nosso cérebro, porque é íntima, porque nos pertence como indivíduos, sussurra “levantaste-me do solo”. Isto é, fizeste-me pairar, fizeste-me tornar num ser leve, feliz, levaste-me a acreditar em ti e no amor, na vida. E ao invés, quando termina uma das duas paixões que servem de objecto para a reflexão de Malick, a personagem de Jane [belíssima Rachel McAdams] põe toda a sua mágoa na frase que, grosso modo, diz “confiei em ti mas agora tiraste-me tudo, afinal eras apenas um sonho, não, não és real, não existes mais”. E não há certamente maior amargura em matéria de sentimentos que negar a existência de um amor que antes parecia querer ficar para sempre na vida de dois amantes.

Há outra constante no cinema do homem que nos trouxe, entre outros, «A Barreira Invisível»[2008] e o mais recente «A Árvore da Vida»[2011]: a natureza, a natureza mais selvagem e a edificada pelos tempos. Porque o ser humano é parte integrante dessa mesma natureza ainda que questionemos permanentemente os seus mistérios por mais insondáveis que se afigurem. E nessa maravilha visual que é o cinema de Malick, nesse jogo de luzes e sombras, de delicadeza e sensibilidade, a inquietude é uma constante e o sonho confunde-se insistentemente com o pesadelo. Em «To The Wonder», no seu título original, Marina [Olga Kurylenko] apaixona-se em França por Neil [Ben Affleck] e segue-o por duas vezes até à América. Mas como a orgânica do amor é outro dos mais guardados segredos da natureza humana, as coisas nem sempre decorrem de acordo com esse maravilhoso sentimento. Entretanto, nas imediações de ambos um padre [Javier Bardem] afunda-se na sua falta de crença, na incapacidade que o consome de compreensão para os dramas humanos que o ladeiam não vislumbrando Deus não só na forma de ajudar a minorar essas tragédias como na sua génese.

Já o disse aqui. O cinema de Terrence Malick é eminentemente filosófico, poético, contemplativo. E procura quebrar com aquilo que são as noções universais que temos da vida desafiando o convencionalismo e desmontando preconceitos. E isto tudo para nos dizer, acredito, que a natureza está acima das convenções do homem e não existe felicidade se não seguirmos o nosso instinto ainda que em algumas ocasiões venhamos a concluir que estávamos errados. Quanto a este «A Essência do Amor», na minha opinião resultaria num filme perfeito se algum do minimalismo das suas histórias pudesse ser trocado por um pouco mais de realismo naquilo que nelas existe de hipnótico. Mas, admito, Malick não é isso, não é um realista. Terrence Malick é, para o bem e para o mal, cada vez mais um impressionista.

 

«To The Wonder», de Terrence Malick, com Ben Affleck, Olga Kurylenko, Rachel McAdams e Javier Bardem

 

domingo, 24 de março de 2013

A Caça

 
 
 
 
Sociedade imperfeita
 
Quando se escreve sobre um filme como «A Caça»[2012], tem-se desde logo um dilema. Porque num filme tão real, devastador emocionalmente – mesmo cruel, não se pode escrever apenas algumas linhas sob o risco de tanto ficar por dizer e no entanto é possível que nos dispersemos na ânsia de expormos tudo o que nos vai na alma. E ainda que escreva muito e de forma objectiva, guardo a convicção de que estarei muito longe de conseguir passar para o lado de lá os efeitos do murro no estômago que passadas algumas horas sobre o seu visionamento este filme continuará a fazer sentir em quem o assistir.
Mas comecemos por falar de Thomas Vinterberg, o homem que assina esta obra marcante. Em 1999 estreava um filme vindo directamente do manifesto Dogma 95 que, assinado por alguns realizadores dinamarqueses, prometia romper com o rumo dado pelos grandes estúdios ao cinema revitalizando a câmara às costas, a luz natural e outras características tendentes a devolver a pureza aos filmes e à sua concepção. Esse filme, «A Festa»[1998], contava a história de uma família que se reunia num hotel para festejar o aniversário de um dos seus. Mas o que deveria ser uma celebração transformou-se numa tragédia e num filme psicologicamente intenso que faria apontar os holofotes do mundo do cinema sobre o seu autor. E apesar de não vir assinado, numa decisão de acordo com o estabelecido no tal Dogma 95, a realização pertencia a Thomas Vinterberg. Sim, Vinterberg, o mesmo deste «A Caça».
Em «A Caça» acompanhamos o percurso de Lucas [Mads Mikkelsen], um antigo professor obrigado a aceitar um emprego num jardim-de-infância por ter fechado a escola da pacata aldeia dinamarquesa onde reside. Lucas vive ainda o rescaldo de um divórcio difícil e enquanto procura reatar a relação com o filho adolescente começa a dar os primeiros passos na reconquista do amor através de uma jovem imigrante sua colega na creche. Mas quando tudo parece voltar a fazer sentido na sua vida, uma mentira inocente vinda de uma menina de 4 anos confusa nos seus sentimentos, acaba por despoletar uma autêntica tragédia que vai fazer com que Lucas assista ao desmoronar em seu redor de tudo o que construíra durante uma vida inteira.
Com a mentira de Klara [Annita Wederkopp], o que vem à tona é a debilidade da sociedade contemporânea, o seu egoísmo e a sua cobardia. Uma sociedade hipócrita que prefere seguir o caminho mais fácil da condenação ao invés de acreditar num dos seus com provas mais que dadas da sua correcção que deveria procurar razões para crer na sua inocência e não inventar provas para justificar a sua culpa. Assim, sustentados numa mais que duvidosa teoria de que as crianças nunca mentem – se bem que neste caso a inocência de Klara é tanta que são os adultos que a levam a afundar-se na sua própria confusão, amigos, colegas e outros membros da comunidade local viram as costas a um dos seus. Um homem que não era um estranho mas sim alguém com quem cresceram e se fizeram homens e mulheres. E isto faz com que pensemos o quão voláteis se revelam os laços entre as pessoas à menor dificuldade. E com o sofrimento de Lucas sofrem todos os que assistem à sua tragédia pessoal. Ou seja, nós os espectadores de cinema. E mesmo que no final a personalidade admirável de Lucas consiga perdoar e permitir a sua reintegração, numa última cena do filme sabemos que haverá sempre alguém que não irá desistir de lhe apontar o dedo. Ou a sua arma, neste caso.
Vinterberg revelou à imprensa que construiu o seu filme a partir de um pequeno relato escrito e esquecido nas suas coisas que lhe fora facultado por um psiquiatra a quem recentemente precisara de consultar. Vendo-se na obrigação de ler os escritos antes da visita ao médico, Vinterberg encontrou então a história que deu origem ao seu filme. E o que existe de mais acutilante em cada fotograma, em cada cena, em cada atitude condenável dos que foram amigos, colegas e vizinhos de Lucas prende-se com esta revelação: a verdade dos actos e o realismo da emoção que, juntos, se transformam numa fórmula única de magnetismo sobre o que observamos.
Mas há que não esquecer que embora baseado na vida o que de facto assistimos é cinema. E por detrás do calvário de Lucas está a espantosa interpretação de Mads Mikkelsen num filme que se mostra, de longe, como um dos mais fantásticos do ano. E eu que gostei de «Amour»[2012] [Palma de Ouro em Cannes e Oscar de Melhor Filme Estrangeiro], digo-vos sem a menor dúvida que «A Caça» está uns bons patamares por cima do filme de Michael Haneke. Haneke cujo nome, reconheça-se, tem uma força muito maior que o de Thomas Vinterberg.
Paralelismos à parte, o que realmente importa é que «A Caça» é um filme real, duro, cruel – repito, mas é cinema requintado, admirável e um filme imperdível, indispensável.
 
«Jagten», de Thomas Vinterberg, com Mads Mikkelsen

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Bestas do Sul Selvagem

 
 

 

Mississipi selvagem

 

Perdidos numa lixeira pantanosa ao largo de um dique junto ao Rio Mississipi vivem Hushpuppy [Quvenzahané Wallis] e Wink [Dwight Henry], o seu pai doente. Num cenário eminentemente apocalíptico, a ideia da realização de Benh Zeitlin é a de fazer emergir perante a miséria material e a ausência quase total de meios de sobrevivência a riqueza do espírito humano. E para isso nada mais conveniente que o sul dos Estados Unidos, desde sempre vítima da tirania do homem e da própria natureza, e uma menina doce e frágil mas sem nunca perder a determinação. E é nesta busca de equilíbrio entre a fantasia apocalíptica e a realidade dura que «Bestas do Sul Selvagem» vai arrebatando prémios em tudo o que é festival de cinema e atingindo o âmago de espectadores à escala global.

De facto, neste cinema a raiar o encantatório existem pormenores concepcionais que fazem suspeitar da sua própria ingenuidade. E isso é de todo determinante tanto mais que a ingenuidade deliciosa de Hushpuppy como elemento cerebral e emocional da trama é o que de mais sedutor possui o filme. Não que o seu realismo mágico me incomode ou mesmo a ambição visual que este ostenta. Mas num cenário que se quis de pureza e de força humana interior o que se verifica é uma espécie de poema oco que vive da força da banda sonora, do artificialismo visual e de uma mensagem de esperança que não se confirma.

Apesar de tudo, «Bestas do Sul Selvagem» é cinema agradável onde nos toca particularmente a personalidade encantadora de uma menina que na óptica do filme tendo aparentemente tudo afinal não tem nada. Uma menina que sofre e chora como qualquer outra menina da sua idade mas que se recusa a desistir fazendo das fraquezas as suas forças. Não havendo, por esse motivo, qualquer necessidade de a pôr a correr entre fogos postiços com a música como pano de fundo. Não havia qualquer necessidade, repito, até porque em paralelo é-me até bastante simpática a ideia reinante de que é possível vivermos como quisermos tendo ainda assim a solidariedade da comunidade onde estamos inseridos, mesmo que esta viva debaixo de lema igual.

E de facto não podendo tudo, quanto mais forte for o espírito humano maior é a esperança perante as adversidades. E no doloroso caminho percorrido pela pequena Hushpuppy obrigada a atingir precocemente uma maturidade que não seria para a sua idade, fica todo o meu carinho por este filme que pese a sua ambição filosófica se mostra algo vazio de conteúdo revelando-se no entanto visualmente potente.

 

«Beasts of the Southern Wild», de Benh Zeitlin, com Quvenzahané Wallis e Dwight Henry


sábado, 23 de fevereiro de 2013

A coragem do ministro

 
 
 
A licenciatura de Miguel Relvas é uma prova de fraqueza. Sendo a sua obtenção legal ou não, esta tem contra si o facto de não ter por detrás o gosto pelo conhecimento ou sequer o desejo pela preparação em determinada área. Não, a licenciatura de Relvas visava somente atingir um alegado estatuto que na sua forma curta de ver o mundo lhe dava autoridade não percebendo que fazendo-o como fez só denunciou a sua debilidade. Para Relvas a licenciatura protegia-o, dava-lhe coragem, permitia-lhe o à-vontade com que debita agora opiniões que roçam o insulto. A licenciatura de Relvas pode comparar-se àquele café que é bebido em momentos de nervosismo ou ao cigarro que o adolescente fuma à procura de ser confundido com o adulto que ainda não é.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Seis Sessões

 
 
 

 

Virgem aos 38

 

Mark O’Brien [John Hawkes] tem 38 anos de idade e o sonho de se completar como homem. Tendo contraído Poliomielite em criança, Mark está paralisado do pescoço para baixo e vive muito dos seus dias dentro de um pulmão mecânico. No entanto, como qualquer homem Mark tem necessidades sexuais e é capaz de manter relações. Para isso, Mark contrata uma terapeuta sexual [Helen Hunt] que o vai ajudar a libertar-se da ansiedade que o afecta e levar a perder a virgindade.

Dir-se-ia que «Seis Sessões» tem uma premissa difícil. Mas aquilo que observamos, num mundo cada vez mais à deriva, é a prova absoluta de que há esperança para o ser humano. Sem cair em moralismos patéticos nem na habitual autocomiseração, o filme de Ben Lewin transforma-se num legado sobre como ser positivista perante a tragédia humana, com sentido de humor e emoção, muita emoção. O que só demonstra a enorme sensibilidade da realização para lidar com uma temática nada fácil à partida.

Ao dizer isto não nego o drama que se vive em «Seis Sessões». Ele existe, como o provam as lágrimas dos protagonistas e as que muitos dos espectadores não negarão testemunhando a emotividade de uma história a todos os títulos admirável e onde o sexo, personagem central da trama, é também ele tratado com uma dignidade só possível para quem o entende da forma mais correcta. Ele, o sexo, é um instrumento de prazer mas é igualmente a essência do amor e um meio essencial para o equilíbrio psicológico dos homens e das mulheres.

Lamenta-se o final óbvio e fácil do filme, mas tudo é perdoado a esta obra onde Helen Hunt surge novamente como uma das maiores actrizes do cinema contemporâneo, sendo, ainda, e quase a completar cinquenta anos de idade, uma mulher de uma irresistível sensualidade num corpo perfeito. Espantosa Helen Hunt, actriz e mulher, como espantosa é a interpretação de John Hawkes - como Mark O’Brien – e de William H. Macy, como padre, confessor e amigo numa das melhores composições que vi fazer a este actor que já leva tantos anos de carreira e uma infindável lista de participações mais ou menos secundárias em títulos relevantes de filmes.

Por tudo isto, «Seis Sessões» dispensa os tão falados prémios da Academia. Mas reclama ser visto. E vendo-o quem fica a ganhar somos todos nós. Nós os espectadores de cinema, mas sobretudo nós os seres humanos habitantes deste mundo onde a humanidade parece cada vez mais confusa nos seus valores e naquilo que realmente importa para a vida. Atrevam-se.

 

«Six Sessions», de Ben Lewin, com John Hawks, Helen Hunt e William H. Macy

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O cinema das pessoas para as pessoas



Aceito a ambição e o orgulho de quem faz [bom] cinema. É justo, é legítimo. Cinema pode ser mais ou menos elitista, mais ou menos abrangente, mais ou menos pensado, mais ou menos leve. Cinema é arte mas também entretenimento. Mas tal como não pode ser confundido com o circo também não deve ser entendido como uma simples peça de museu. Nem veículo de mera promoção individual. Cinema é feito por pessoas e para as pessoas. Por isso, toda a minha simpatia vai para estes senhores na cerimónia dos Oscar. Eles representam várias vertentes do cinema. Entre elas, a razão, a emoção, a beleza e a história. Um cumprimento muito especial para a fantástica Helen Hunt em «Seis Sessões», muito graças a si um filme difícil mas extraordinariamente comovente.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Psycho

 


Filme emblemático do mestre do ‘suspense’, esta obra representa igualmente uma vertiginosa viagem aos labirínticos tormentos da mente humana. Uma viagem tão sinistra quanto fascinante.

Uma jovem, Marion Crane (Janet Leigh), decide roubar uma elevada quantia de dinheiro ao seu patrão com o intuito de poder ficar definitivamente com Sam (John Gavin), o seu amante. Na posse dos 40 000 dólares do furto, Marion lança-se à estrada. Faz-se noite e chove copiosamente, a mulher acaba por sair para uma estrada secundária e dirigir-se a um motel, o Motel Bates. Ao largo do edifício de hospedagem apenas se vislumbra no topo de uma colina uma mansão de estilo gótico, tão imponente quanto assustadora, mesmo de visão arrepiante. É naquele lugar que vivem Norman Bates (Anthony Perkins), que dirige o motel, e a sua mãe, aparentemente uma senhora já idosa mas de personalidade autoritária e possessiva que oprime o filho.



Esta é a premissa inicial para “Psycho”, obra máxima do cinema de terror onde assume especial relevância a construção do perfil psicológico das personagens, em especial a de Bates numa interpretação magistral de Anthony Perkins. Esta premissa representa, aliás, uma das mais surpreendentes características da realização de Hitchcock ao rasgar todas as convenções até então do cinema do género matando a sua protagonista decorrido somente cerca de um quarto de filme. Em boa verdade, tudo o que sucede até que o espectador é encaminhado para o Motel Bates perde qualquer significado posterior resultando apenas num estratagema para alcançar esse objectivo. É então que se desenvolve o essencial da acção, num desfilar brilhante e ininterrupto de intriga, ‘suspense’ e genuíno terror. Terror esse onde não existe espaço para o elemento sobrenatural já que tudo o que nos inquieta resulta dos mais recônditos labirintos da mente humana. Tudo nele é real, ou seja, passível de acontecer. É quando Lila (Vera Miles), a irmã de Marion, intrigada com o desaparecimento desta, segue na sua busca na companhia de Sam, o amante da irmã. Também no encalço da desaparecida, embora mais preocupado na recuperação do dinheiro, vai o detective Arbogast (Martin Balsam).



O filme, com argumento de Joseph Stefano, é uma consequência do livro de Robert Bloch. No entanto, várias alterações foram promovidas na obra de Hitchcock uma vez que o livro se baseava na história verídica de Ed Gein, um psicopata do Winsconsin que por volta dos anos 50 aterrorizou a pequena localidade campesina onde nascera e vivia. Assim, a acção foi trasladada de uma quinta para um motel e o lúgubre protagonista da história tornou-se num indivíduo fisicamente mais delicado. Neste âmbito, é ainda de realçar a sóbria corporização idealizada por Perkins de uma personagem sinistra que vivia assombrada pelo fantasma da mãe. Nesta realização sublime, são inúmeras e memoráveis algumas cenas de tensão. Verdadeiramente antológicas são a cena do assassinato no chuveiro onde a tensão se adensa com o som dos violinos da fabulosa partitura de Bernard Herrman a acompanharem o percurso do punhal até se enterrar dolorosamente no ventre da vítima, não descurando o pormenor posterior da água envolvida em sangue escoando do banheiro, e a cena do monólogo final. São cenas que perdurarão para sempre indiferentes ao definhar do tempo.



Não sendo, talvez, a obra de Hitchcock mais reputada pelos especialistas, onde filmes quase todos eles da sua fase americana como “A Janela Indiscreta” (1954) e “Vertigo” (1958) possuem um lugar de relevo, “Psycho” é, no entanto, e muito justamente, um dos mais adorados filmes por parte de cinéfilos de várias gerações e o seu maior sucesso comercial. Mas não estão sós, os cinéfilos. Em 1989, a reconhecida revista inglesa “Time Out” questionou 60 realizadores de todo o mundo sobre os 100 melhores filmes de sempre. “Psycho” foi escrutinado na 14ª posição, o que é um dado verdadeiramente estimulante para um filme do género.



Em 1983 e 1986 surgiram as inevitáveis sequelas. Uma levada a cabo por Richard Franklin, a primeira, e a outra pelo próprio Anthony Perkins que protagonizou os dois filmes. Em 1998, Gus Van Sant dirigiu um ‘remake’ que respeitava escrupulosamente o enredo da obra original. Nenhum destes filmes logrou ultrapassar, sequer aproximar-se, do fascínio macabro que o trabalho de Hitchcock alcançou. Para isso muito contribuíram a fotografia de John L. Russel, um sombrio e inigualável preto e branco, e a já referida música de Bernard Herrman composta de instrumentos de cordas. Tecnicamente perfeito e contando com interpretações sem mácula de todo o elenco, “Psycho” é pois um filme deslumbrante onde a espiral de tensão se adensa na aturdida mente do espectador.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Barbara




 

Sobrevivência

 

«Barbara», do alemão Christian Petzold, é um objecto singular no panorama actual dos filmes em exibição no nosso país. Detentor de uma estética naturalista, através de Barbara, uma médica que é desterrada para uma pequena cidade de um ainda mais pequeno hospital junto ao Mar do Norte, Petzold filma a Alemanha comunista de inícios dos anos oitenta. E fá-lo sem cair nunca na grandiloquência das ideias fortes, preocupando-se muito mais com a recuperação moral e emocional de alguém que é vítima de um sistema áspero, totalitário e castrador evitando o caminho mais fácil e tantas vezes visto, o da decadência.

Interpretada por Nina Hoss, que aproveita a sua beleza inata sem recorrer à maquilhagem excessiva, Barbara mostra-se uma mulher aparentemente fechada para o mundo que a rodeia, vivendo tão isolada deste como isolado do mundo moderno vivia o regime da RDA. Para Barbara apenas parece interessar o passar dos dias que a leva a encontros fugazes com o namorado, um alemão ocidental, até ao dia em que iniciará a fuga que a levará definitivamente para junto deste e a afastará da opressão da Stasi, a polícia política que a visita com regularidade. Enquanto isso, vai ganhando proeminência André [Ronald Zehrfeld], o seu chefe no hospital que ao invés de cumprir a sua missão de informador se torna no protector da sua nova colega – ele que é também uma vítima do sistema.

Numa narrativa discreta mas eficiente, «Barbara» vai-se revelando aos poucos cinema maduro onde importa muito mais o lado humanista de uma sociedade deprimida pelo regime que a atormenta que propriamente a denúncia dos seus carrascos. Ainda assim, faltam picos de emoção e uma verdadeira trama a este cinema introspectivo, quase intimista, que aproveita a atmosfera rural para se impor ainda mais como um fresco numa tela que convida à contemplação sem necessidade de exercer a reflexão. O mais grave no filme acaba afinal por se quedar numa dúvida importante ao observarmos a aproximação afectiva de Barbara a André. Isto é, a de saber se o namorado ocidental de Barbara seria o seu verdadeiro amor ou um simples meio de fuga a uma vida que julgava não querer mais. Mas essa é uma resposta que o silêncio emocional de Barbara jamais nos poderia fornecer.

 

«Barbara», de Christian Petzold, com Nina Hoss e Ronald Zehrfeld

 

Argo

 
 
 

 

Argo, um filme real

 

Pela sua premissa, «Argo» era aquele filme que não me suscitava muito interesse ver. De facto, a história de um resgate pelos serviços secretos de alguns diplomatas americanos em solo iraniano aquando da chegada de Khomeini ao poder em finais dos anos setenta, parecia-me algo requentada por ser um tema demasiado gasto. Nada de mais errado. Depois de «Vista Pela Última Vez» [2007], mas sobretudo após «A Cidade» [2010], com este seu recente trabalho, Ben Affleck demonstra ter encontrado o seu meio natural: a realização de filmes.

De facto, «Argo» está espantosamente dirigido e aquilo que poderia ser uma banal história de espiões infiltrados nas convulsões políticas um pouco por todo o mundo, transforma-se num espantoso ‘thriller’ onde o drama e o humor caminham de mãos dadas numa espiral de tensão que cola o espectador à cadeira da sala de cinema do primeiro ao último segundo do filme. E tanto assim é, que falar na fotografia irrepreensível, na espantosa direcção artística e outros atributos técnicos só faria com que nos perdêssemos do essencial: o excelente momento de cinema que uma realização poderosa de Ben Affleck proporciona aos amantes da 7ª arte.

E é ao som de Rolling Stones, Van Halen, Led Zeppelin e Dire Straits que «Argo» se agiganta como que iluminando a fabulosa interpretação de Alan Arkin [o produtor Lester Siegel] e, por outro lado, relembrando estrondosamente mestre Hitchcock, tal não é o nível de ‘suspense’ que a história atinge conseguindo obter do espectador de cinema o carinho e a excitação que só está ao alcance dos grandes filmes. Parabéns, Tony Mendez, o espião que conseguiu o feito de resgatar os seis diplomatas de Teerão, e parabéns, Ben Affleck, o homem que fez com que a realidade virasse ficção de alto nível. Assim, sim!

 

«Argo», de Ben Affleck, com Ben Affleck, Alan Arkin e John Goodman

 


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O Mentor




Bebedeira monumental

Há quem diga que faz parte da essência das obras-primas agradar muito a uns e desagradar a outros. E, nessa linha de raciocínio, talvez «The Master» seja a mais recente obra-prima de Paul Thomas Anderson a quem eternamente se agradece «Magnolia»[1999], esse extraordinário filme que retratava um mosaico de gentes coincidentes entre si. Talvez, repito, mas reconhecendo nele um filme de autor, ambicioso e com um excelente elenco – que o tem, não nego – não passa ainda assim de uma aborrecida proposta de cinema onde imperam o mau gosto e a reflexão abstrusa em que infelizmente caem grande parte dos retratos de época.
Como dizia, «O Mentor» é um ensaio sobre a América do pós-guerra juntando dois protagonistas que sendo diferentes entre si se atraem por oposição. Um deles, Freddie Quells [Joaquin Phoenix],um veterano de guerra com problemas graves de foro neurológico, a viver escravo dos instintos mais básicos de si enquanto ser humano, descontrolado e desenraizado da sociedade e outro, Lancaster Dodd [Phillip Seymour Hoffman], oportunista, explorador das fraquezas psicossociais da época e dependente da estrutura social onde ele mesmo pretende fazer-se líder espiritual. Nesta relação aparentemente simples ao olhar desavisado mas complexa na narrativa do filme, se constrói uma análise que se quis aprofundada e filosófica da sociedade norte-americana dos anos cinquenta. Uma época que deu origem a movimentos mais ou menos esotéricos como a Cientologia e se debateu com questões sociais gravíssimas como a integração dos chamados traumatizados da guerra.
A questão aqui é a de procurar perceber se o mensageiro [leia-se, a realização] conseguiu fazer com que a mensagem [o filme] chegasse em boas condições ao destinatário [o espectador]. E no meu caso particular, revejo-me um pouco nas bebedeiras de Quells [Phoenix]. Isto é, sinto que não me diverti enquanto bebia e no final dei comigo a contas com uma ressaca dolorosa. Até porque mesmo no melhor que o filme tem, as interpretações, fica-me a dúvida se o mérito que se lhes reconhece está inteiramente de acordo com a química conseguida na plateia. Em suma, suspeito que «O Mentor» seja um importante pretexto para exaltação de virtudes por parte de quem se revele fã firme do cinema de Paul Thomas Anderson mas muito pouco satisfatório para quem vê cinema a descoberto dos nomes daqueles que o fazem. Passo.

«The Master», de Paul Thomas Anderson, com Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman e Amy Adams

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Lincoln


 

 

Um líder e o seu povo

 

Que me desculpem o sentimentalismo, mas quando é clinicamente declarada a morte de Abraham Lincoln e a realização apresenta o discurso do então Presidente dos EUA celebrando a 13ª Emenda – que elimina a escravatura na América, é debaixo dos aplausos dos espectadores na sala de cinema que surge o genérico final de «Lincoln», o filme. E certamente que muitos dos presentes tiveram de fazer um esforço para conter a emoção. Isto porque não foi decerto por acaso que Abraham Lincoln, um homem grande e desajeitado fisicamente que vindo do interior de um país ainda em construção, se alcandorou a um estatuto ímpar no coração do povo norte-americano.

«Lincoln», de Steven Spielberg, evoca um dos períodos mais conturbados da passagem de Abraham Lincoln pela presidência da América em plena Guerra da Secessão e que duraria até à hora da sua morte, assassinado enquanto assistia a uma peça de teatro. Neste período, Lincoln tenta e consegue aprovar a 13ª emenda da constituição americana que determina a abolição da escravatura no país e debate-se ao mesmo tempo com as centenas de milhares de mortos por uma guerra fratricida do norte contra o sul. E isto numa interpretação magistral de Daniel Day-Lewis concedendo a Abraham Lincoln uma candura e uma força que poderiam ser difíceis de obter dada a extraordinária dimensão da personagem histórica.

Atravessado por dilemas de ordem pessoal, social e política, «Lincoln» é ainda um filme onde o debate interno que realiza acaba por ser transversal a toda a humanidade já que falamos de dois elementos fundamentais do ser humano: a questão racial e a democracia como sistema político. E estas, para lá da já citada interpretação de Daniel Day-Lewis mas também de Tommy Lee Jones, Sally Field, James Spader e David Strathairn, entre outros, acabam por se transformar no elemento catalisador de toda a acção fazendo deste um filme onde os diálogos têm uma riqueza transcendente sendo de realçar o fantástico guião que serve a história. E se outro mérito não tivesse, «Lincoln» recorda-nos o que é o dever de servir o povo e porque é que a democracia, pese ser espezinhada pela pobre classe política de hoje, continua a ser o único sistema político capaz de conceder às pessoas uma vida onde a liberdade e a dignidade não sejam meros elementos de retórica para uso de poucos a pretexto dos restantes.

«Lincoln», ou Abraham Lincoln como preferirem, concede-nos ainda a possibilidade de relembrarmos que grandes homens na posse de boas virtudes e grandeza de carácter já foram eleitos para cargos onde hoje vemos tantas vezes estampada a mediocridade. E em que o objectivo da governação está direccionado para as pessoas e não para os números, o défice, ou, se me permitem o mau feitio, a merda que lhe queiram chamar.

 

«Lincoln», de Steven Spielberg, com Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, James Spader, Tommy Lee Jones, outros

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O Impossível





Ondas de desespero

Tecnicamente irrepreensível e forte emocionalmente, «O Impossível», do espanhol J.A. Bayona mostra a passagem do paraíso ao inferno de uma família de férias na Tailândia aquando do tsunami do Índico, em 2004. E se Ewan McGregor e Naomi Watts estão excelentes nos seus papeis de pais desesperados no âmago da tragédia, a realização exagera na amostragem da dor física e emocional buscando a todos os momentos o choque e o sentimentalismo denotando mesmo, aqui e ali, alguma ingenuidade na forma como não consegue disfarçar esse objetivo. Por cá, as imagens chegam a ser tão violentas que duvido que uma criança de 12 anos – o filme está classificado para 12 anos – esteja mental e emocionalmente preparada para as visionar. Ainda assim, um filme intenso sobre a fragilidade humana perante a revolta da natureza. Mas a evitar por espectadores mais impressionáveis.

«O Impossível», de J. A. Bayona, com Naomi Watts e Ewan McGregor


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

The Paperboy - Um Rapaz do Sul




 

Demónios do sul
Violência física e emocional, uma América que sabemos existir mas queremos distante, um actor e uma actriz [Matthew McConaughey e Nicole Kidman] em dois papéis por devoção ao cinema e um filme - «The Paperboy – Um Rapaz do Sul» - que pese o seu saudável distanciamento da indústria Hollywoodesca se deve aconselhar apenas aos fiéis devotos ou a quem não teme o lado mais negro da natureza humana.

The Paperboy, de Lee Daniels, com Nicole Kidman, John Cusack e Matthew McConaughey

 

 

Django Libertado


 

Era uma vez na América

Numa homenagem ao ‘western spaghetti’, fiel a si próprio, excessivo e testando os seus limites, Quentin Tarantino atinge o esplendor do seu cinema nesta mistura explosiva da história de uma arte, a sétima, com a própria história da América. Como poucos, «Django Libertado» faz arte a partir dos lugares comuns do ‘western’ e através das suas personagens mais ou menos pitorescas, mais ou menos heróicas, constrói um poema feito de som, imagens e do talento de actores únicos como Christoph Waltz e Franco Nero ou talentosos como Jamie Foxx e Leonardo DiCaprio. E o virtuosismo cinematográfico neste filme é tal, que a violência visual de que tanto se fala acaba por se transformar em ternura na nostalgia de cinéfilos ou de simples espectadores rendidos à homenagem de Tarantino aos seus antepassados. Duas horas e picos de cinema a ver e chorar por mais.

 

Django Unchained, de Quentin Tarantino, com Christoph Waltz, Franco Nero, Jamie Foxx e Leonardo DiCaprio

 

 

domingo, 20 de janeiro de 2013

Guia Para um Final Feliz




É assim o amor
 
A minha surpresa é total ao ver «Guia Para um Final Feliz» na corrida aos Óscares. Porque se trata de um pequeno filme, porque não existem nele cenários complexos nem personagens de sonho. Não, nele existem apenas Pat [excelente Bradley Cooper] e Tiffany [a atraente Jennifer Lawrence] e toda uma panóplia de personagens que os suportam. Na bipolaridade dele a querer regressar a um tempo anterior sem perceber que se reinventou para um outro tempo que o espera e na descompensação afectiva dela fazendo da sua terapia a recuperação dele. E se o filme não vale um 5 na rigorosa escala de valores cinematográficos, vale decerto um 10 nos corações de quem se emociona com o amor e com os difíceis itinerários com que se constroem os caminhos da vida dos seres humanos fieis à sua própria natureza. Obrigatório.
 
The Silver Lining Playbook, de David O' Russell, com Bradley Cooper e Jennifer Lawrence
 
 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Stanley Kubrick





STANLEY KUBRICK



Stanley Kubrick nasceu nos EUA em 1928 e viria a falecer em Inglaterra, para onde se tinha mudado, a 7 de Março do ano de 1999, faltando assim  à estreia da sua última obra-prima: De Olhos Bem Fechados (1999). Kubrick foi sempre um rapaz imaginativo mas péssimo aluno. Tornou-se jogador de xadrez e a sua carreira profissional iniciou-se como fotógrafo. A estreia na realização, de curtas-metragens na altura, deu-se aos 22 anos embora apenas aos 25 com alguma seriedade. Como simples curiosidade, diga-se que Kubrick era ainda considerado uma pessoa de difícil trato e a sua obsessão pelo cinema levava-o a cuidar muito pouco de si como pessoa mesmo ao nível dos pormenores mais básicos. Era de tal forma um perfeccionista que chegava a repetir um ‘take’ mais de uma centena de vezes.



Da sua filmografia como realizador contam-se poucos filmes mas quase todos eles marcos importantes da história do cinema. Títulos que circulam por todo o mundo nas listas de melhores filmes de sempre quer para instituições, quer para particulares. Destaque-se «De Olhos Bem Fechados» (1999), uma incursão psicológica sobre os medos de um casal, «Nascido Para Matar» (1987), a abordagem atípica e mais uma vez de grande intensidade psicológica aos fenómenos da guerra, «The Shining»(1988), perturbante filme de terror com um fenomenal Jack Nicholson, «Barry Lindon» (1975), um perfeccionista filme de época passado no âmago da aristocracia, «Laranja Mecânica» (1971), um filme crítico sobre a sociedade mas passado num futuro próximo a partir da aparente demência comportamental de um grupo de jovens que leva o líder à prisão, tudo passado em ambiência de música clássica sobretudo sob o génio de Beethoven, «2001 – Odisseia no Espaço» (1966) o intemporal filme de ficção científica de Kubrick onde uma máquina que não foi concebida para mentir recebe essa ordem e como escape começa a matar a tripulação, e ainda filmes fabulosos como «Dr. Strangelove» (1964), «Lolita» (1962) e «Spartacus» (1960) . E não é tudo.


Kubrick não veria reconhecido o seu enorme talento pela Academia de Hollywood que nunca lhe concedeu o Óscar de Melhor Realizador pese a qualidade ímpar do seu trabalho

domingo, 18 de novembro de 2012

As Palavras




Um amor para recordar

No ‘trailer’ de «As Palavras» uma frase alerta-nos para algumas histórias que nos acompanharão ao longo da vida, para sempre. Nada de mais verdade, assim como a convicção de que a história da vida de cada um de nós é feita sobre as decisões que tomámos – certas ou erradas, mas também de acasos do destino. Essa frase, numa realização que viaja entre a realidade e a ficção sem sabermos muito bem onde está a verdade absoluta, irá acompanhar-nos até ao fim do filme já que são as nossas próprias vivências que este vem despertar.
Em «As Palavras», aparentemente fala-se de duas vidas recheadas de vicissitudes diversas que por culpa própria ou por circunstâncias várias haverão de roçar a tragédia. Uma dessas vidas que num tempo [o pós segunda guerra] e num espaço [Paris] foi de uma intensidade fervorosa e de uma paixão que haveria de prevalecer e a outra, passada na Nova Iorque de hoje, feita de ambição, de querer e de muita deceção por ver a sua criatividade literária vedada por uma opinião alheia e totalmente desinteressada no seu suposto talento [os editores de livros]. E aqui se confirma que pela dimensão humana das histórias transversais que evoca, o filme tem a capacidade de tocar na emoção de muitos que o assistem seja por força do amor, da literatura ou muito simplesmente daquilo que reúne todos os nossos passos por cá: ela mesmo, a vida.
Rorey Jansen [Bradley Cooper] é um aspirante a escritor. Frustrado pelas sucessivas negativas das editoras, Rorey é incapaz de dizer não à ilusão do sucesso e às lágrimas emocionadas da sua mulher [Zoe Saldana] quando um belíssimo manuscrito lhe vem parar por acaso às mãos resolvendo propô-lo como seu. O sucesso é imediato mas neste entretanto a ficção transforma-se em realidade quando um homem velho e cansado [excelente Jeremy Irons] vem conferir autenticidade à história do seu livro. Uma autenticidade de que Rory nem se apercebera. Aquele homem velho vivera a história que as palavras resgataram do esquecimento e fora ele mesmo quem, numa velhinha máquina de escrever, trucidado pela dor do amor e pela tragédia da perda as erigira em apenas duas semanas sem dormir e quase sem se alimentar. Entretanto, e no filme, perante uma plateia ávida a contar-nos as amarguras do aspirante a escritor e do escritor que nunca o veio a ser está Clay Hammond [um Dennis Quaid controverso e brilhante], ele que vive a publicação do seu próprio livro e lança novas dúvidas sobre o que nos é contado. Neste momento, dá-se uma nova dimensão à velha expressão de que nem sempre o que parece é.
Entre o drama pessoal de Rory, construindo a sua vida sobre uma mentira, e o drama do velho homem vítima de um destino feito de acasos infelizes e más escolhas a realização dupla de Brian Klugman e Lee Sternthal tem o mérito de evidenciar que nada está perdido no mundo da literatura se a intensidade emocional, a genuinidade das palavras e a força da vida triunfarem sobre uma determinada imagem de sucesso com referências que o mercado julga essencial distribuir aos leitores. Mas isto sem que o filme alguma vez consiga atingir a grandeza sentimental e trágica que encerram as suas duas personagens centrais. Por outro lado, a busca da verdade [por Rory] como expiação para o seu erro cai num desnecessário moralismo que aligeira até a agitação psicológica em que o escritor vive e que seria um dos trunfos do filme. E neste aspeto, é até a personagem de Dennis Quaid, ambígua, desregrada, furtiva que transparece e está mesmo ao nível do que de melhor a literatura e o cinema nos podem oferecer.
Posto isto, deve um homem saber quais são os seus limites, como se pergunta no filme? Deve, claro. Mas tal como essa consciência pode servir para que não se cometam erros como o plágio cometido por Rory também não deve jamais ser limitadora do sonho. Basta lembrarmo-nos, para contrariar o filme, que uma das maiores ambições do homem foi sempre a de ultrapassar os seus limites. Ou então, numa outra questão lançada pelo filme, se não o fizermos, se no mínimo não o tentarmos, de que vale a pena viver?
«The Words», no seu título original, é, em suma, um filme de emoções que procura debater algumas equações que a vida nos coloca. É, por isso mesmo, um filme ambicioso. Mas uma ambição que se refreia na forma como interfere demasiado nas questões morais mostrando ainda um Bradley Cooper ainda longe das capacidades dramáticas que o seu papel exigia. Em sentido contrário estão Jeremy Irons, irrepreensível, e, em minha opinião, Dennis Quaid. Sobretudo porque é nas cenas em que Quaid participa que o filme mais se agiganta. Nomeadamente no diálogo com a jovem estudante Daniella [a atraente Olivia Wilde]. Destaque ainda para a belíssima Nora Arnezeder, ela que é Celia, o amor de uma vida, o amor da vida do homem velho corporizado por Irons, talvez ele mesmo o único escritor num filme em que se passeiam vários pela tela.

«The Words», de Brian Klugman e Lee Sternthal, com Bradley Cooper, Dennis Quaid, Jeremy Irons, Zoe Saldana, Olivia Wilde e Nora Arzneder


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Hoje...






…revi-te na minha sala. Como aqui se mostra, estavas linda. Não, não eras a ex-mulher de um polícia de Memphis afogado no álcool por lhe teres dado a provar o sabor do amor. Eras uma mulher de causas casada com um diplomata de carreira. Morreste algures em África e ele, o fiel jardineiro, morreu por ti. É sempre tão bom rever-te. Chames-te tu Sue Lynne, Tessa Quayle ou simplesmente Rachel.





quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Desafio Total





Guerra dos mundos



Tecnologia, efeitos especiais, a Terra perfurada em viagem com bilhete de ida e volta, mundos paralelos, a beleza suave de Kate Beckinsale, a beleza fulgurante de Jessica Biel, o desencantamento permanente estampado no rosto de Colin Farrell – ele um homem em busca de si mesmo – e ainda Colin Farrell sem o carisma de Arnold Schwarzenegger, compõem o ‘remake’ de «Desafio Total». Mas não fazem esquecer o filme de 1990, longe disso. Ainda assim, a ação viva do filme na luta do bem contra o mal entretém e não defrauda, rejuvenesce e atualiza. A ver sem grandes expetativas e é favor não esquecer o balde das pipocas.

Concluindo, Len Wiseman, realizador deste «Total Recall»[2012], não conseguiu fazer com que Paul Verhoeven, realizador do filme com o antigo governador da Califórnia e Sharon Stone, perdesse o sono à vista de ser ultrapassado já que nunca correu esse risco.




«Total Recall», de Len Wiseman, com Colin Farrell, Jessica Biel e Kate Beckinsale



sábado, 25 de agosto de 2012

O Coração da Tempestade





Arrastadeiras e fluídos corporais


Um bom livro nem sempre dá um bom filme. Julgo ser esta uma constatação óbvia mas não era preciso chegar a tanto, Mister Fred Schepisi. De facto, o realizador australiano adaptou a obra homónima de um compatriota seu mas começou por falhar ao querer fazer de Geoffrey Rush um galã sedutor na fronteira do predador sexual e pretender ainda que Charlotte Rampling passasse de velhinha decrépita a bater desesperadamente à porta da morte a quarentona feliz e irresponsável no seu papel de atleta de alta competição na disciplina não olímpica das maratonas sexuais. Senhores, Charlotte Rampling é muito boa atriz mas a idade não perdoa e os seus atributos físicos já não dão para tanto.

Leio algures que o filme é demasiado perfeitinho. Não poderia discordar mais a não ser que a perfeição cinematográfica possa assentar numa história de ódio, traição e morte onde em momento algum se vislumbra essa pulsão que a avalanche de emoções e sensações tem de necessariamente provocar. Ou então esta gente não tem sangue a correr-lhe no corpo! Por outro lado, a ambientação às diferentes épocas e sobretudo à década de setenta resultou em verdadeiro terrorismo visual que fere e ofende. E no meio de ataques de diarreia, de gente feia que se quer bonita e de corriqueiras tempestades tropicais como epicentro da trama não há espetador que resista.

De facto, nada disto do que aqui escrevi seria necessário para descrever com rigor aquilo a que assisti. Há filmes que imediatamente nos fazem sentir repulsa e este é claramente um deles. Gosto de histórias de vida que a ultrapassam na sua própria dimensão dramática, sou imediatamente convencido por paixões assolapadas indiferentes aos condicionalismos formais impostos por uma certa civilidade e percebo que o passar do tempo ainda ensombra mais o que de mal nunca foi bem resolvido, mas, por favor, «O Coração da Tempestade» é mau gosto puro, é absoluta incapacidade para perceber como erigir em imagens aquilo que tão bem as letras descreveram. De fugir.



«O Coração da Tempestade», de Fred Schepisi, com Geoffrey Rush, Charlotte Rampling e Judy Davis


360: A Vida é Um Círculo Perfeito





A vida não é um círculo perfeito



Há filmes que nasceram para levar porrada da crítica especializada. É o caso de «360», o mais recente filme do brasileiro Fernando Meirelles. A pergunta que se coloca é se podemos estar de acordo que um filme onde se notam claramente algumas deficiências narrativas causadas sobretudo por um argumento pobre e que não cumpre no atrevimento a que se propunha pode ainda assim agradar-nos particularmente. E a resposta é claramente afirmativa. E se me perguntarem porquê eu poderia deixar aqui ene motivos a começar pela presença discreta mas sempre sedutora de Rachel Weisz. A linda, elegante e competente Rachel Weisz.
Mas sim, Meirelles faz o seu filme através do mosaico de histórias que foi celebrizado por esse brilhante e inesquecível «Magnólia» [1999]. E falha. Mas mais falha quem escolheu o título português para o filme. Que raios, a vida não é um círculo perfeito por mais voltas que demos e no final venhamos invariavelmente ter ao ponto de partida. Pelo contrário, a vida é feita de cabeçadas e trambolhões, acasos felizes e infelizes, amores e desamores. E de escolhas. Aquelas que fazemos por nós e as que outros fazem e nos atingem como uma bala certeira. E ou morremos da ferida ou a saramos e recuperamos. É disto que fala «360». Penso eu. E já agora permitam-me a confissão de gostar muito que os filmes me obriguem a pensar os labirintos em que o quotidiano de cada um de nós se embrenha na tentativa de [sobre]viver. De viver e ser feliz. E não, insisto: a vida não é um círculo perfeito, meus caros.

Meirelles, o brasileiro que filmou a beleza dramática de Rachel Weisz em «O Fiel Jardineiro» [muito obrigado por isso, sô Meirelles] parte neste seu filme de vários microcosmos das relações humanas para concluir que aqui e ali há sempre um ponto onde as vidas distantes se aproximam, cruzam e condicionam. Para protagonizar a sua história escolheu atores e atrizes conhecidos – a já referida Rachel, Jude Law e Anthony Hopkins que no mínimo nunca conduzem as suas personagens em piloto automático – mas também perfeitos desconhecidos como a interessante Danica Jurcová [a prostituta de olhar doce na procura ‘fácil’ do seu paraíso na terra]. Andou algures por Viena, Bratislava, Paris, Londres e Colorado, citando apenas estes locais para não fazer deste texto um livro geográfico, e falou-nos de adultério, chantagem, do drama de pessoas desaparecidas, de abuso sexual, de prostituição, de vida e de morte, de paixão, de amor, de ódios. E de escolhas. E com isso construiu um filme bastante equilibrado.

Voltando à frase com que iniciei este texto, «360» tem ainda o mérito de substituir o ginásio para muitos que queiram libertar tensões. Mas reparem, que ninguém fique incomodado com esta acusação [de facto, é de uma acusação que se trata, as minhas desculpas] já que não vejo mal nenhum nisso. Até porque, e aqui o declaro, por vezes também o faço e queima mais calorias que duas aulas seguidas de cycling. Mas não, em «360» não o vou fazer, recuso-me. Porque a vida não é um círculo perfeito e o filme me deu a oportunidade de o relembrar. E porque me agrada [quase todo] o cinema que se propõe retratar a complexidade humana. E esta minha tendência pode até ser um defeito mas convenci-me que é do meu feitio.



«360: A Vida é Um Círculo Perfeito», de Fernando Meirelles, com Rachel Weisz, Jude Law, Anthony Hopkins, Danica Jurcová, outros