O homem preso no seu mundo
«Vergonha», de Steve McQueen, é, depois de em 2008 ter prometido muito com «Fome» [«Hunger» no seu título original], um filme cuja descida aos abismos da complexidade humana se vê subalternizada por uma perfeição plástica retirada da contenção visual com que a câmara do realizador filma um homem preso ao seu próprio corpo e às incapacidades afectivas que lhe estão subjacentes. Mas é pena esta inversão de valores no próprio filme dado que o espectador corre o risco de passar ao lado do que nele realmente importa.
Ainda assim, Michael Fassbender é perfeito no papel de Brandon, este que aparentemente leva uma vida de invejar. Profissional admirado pelos seus pares, sempre impecavelmente vestido e elegante até nos gestos, aos trinta e poucos anos Brandon é um vencedor na cosmopolita Nova Iorque. Mas como quase sempre acontece, existem muitas diferenças entre o que é público e o que é privado e Brandon está amargamente dependente das sensações por não ser capaz das emoções. No seu computador abundam as visitas a ‘sites’ pornográficos, nos armários do apartamento onde vive sozinho amontoam-se as revistas da mesma temática e o homem que facilmente poderia ter o amor das mulheres paga para ter sexo. E a razão para isto reside precisamente no facto de Brandon ser incapaz de corresponder ao amor de uma mulher, física e emocionalmente.
Steve McQueen expõe então a nudez de Fassbender para mostrar um Brandon sem capacidade para terminar com o seu tormento a não ser atingindo orgasmos a solo ou cavalgando prostitutas sem sequer sentir as mulheres a quem paga para possuir. E no entanto o mundo de Brandon decorre de forma pacífica e mantém-se controlado até que surge Sissy [Carey Mulligan], a sua irmã emocionalmente frágil e dependente. Ou seja, precisamente o oposto de si. É então que o mundo de Brandon se desnuda como um corpo a precisar de agasalhos e a vergonha do homem perante as suas insuficiências afectivas o faz perder aquilo que era a sua maior protecção: a privacidade da sua existência.
Em resumo, «Vergonha» é um filme de rara preciosidade estética. No entanto, a mais recente obra de Steve McQueen está tão próxima da tristeza das personagens de «Magnolia» [1999], de Paul Thomas Anderson, quanto do drama do protagonista de «American Psycho»[2000], de Mary Harron. E a dor de Brandon torna-se tanto mais palpável quanto maior é o seu desequilíbrio entre o que deseja e aquilo que o faria feliz. Aqui se prova que mesmo rodeado de um sucesso aparente o homem pode permanecer só. E terminar refém da sua própria angústia.
«Shame», de Steve McQueen, com Michael Fassbender e Carey Mulligan
1 comentário:
excelente crítica a um filme que dá que pensar e termina de uma forma subtil, mas que diz muito. Muito bom!
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