sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Delfim

 [Rogério Samora e Alexandra Lencastre protagonizaram «O Delfim» [2001], de Fernando Lopes]



Amor de perdição 

     
      [Durante 48 longos anos Portugal fechou-se ao mundo, definhou. Num canto esquecido da Europa arrastava-se um país afundado na sua orgulhosa pequenez advinda da conceção totalitária de um governo que atropelava direitos e esquecia deveres para com o seu povo. Duas únicas portas para o exterior funcionavam ininterruptamente: aquela que nos levava até África onde decorria uma guerra fratricida que nem sequer soubemos como terminar e uma outra cuja soleira era normalmente transposta galgando campos com a dor estampada no rosto, alma sofrida pelo avizinhar da saudade e uma sacola cheia de nada carregada sobre os ombros atravessando rios e fugindo às autoridades em busca de uma nova esperança numa terra estranha e que era a porta da emigração. Mas por cá ficavam outros, ficava um povo que exibia no olhar uma estranha dignidade. Um povo acostumado à submissão, a vergar-se ao poder dos grandes senhores. Os senhores donos das terras, os senhores que tudo podiam.]


     
Senhores como Tomás Palma Bravo, o dono da Lagoa, da própria Gafeira. Ele, Palma Bravo, homem sem limites seduzido pelo perigo e igualmente senhor da noite lisboeta, não a de agora mas aquela que se fazia com uma garrafa de Whisky ao largo e em que duvidosas eram outras senhoras porque as da noite nos bares eram decididamente putas. Ele que é também o senhor de «O Delfim», romance escrito pelo saudoso José Cardoso Pires. E é ao mesmo tempo a centro de sedução de uma história que reflete muita da alma ainda recente da nação portuguesa e a causa maior da trágica derrocada humana que esta encarna.
Fernando Lopes, com a prestimosa colaboração de Vasco Pulido Valente que adaptou o romance para o cinema, conseguiu um feito de monta neste seu trabalho. Não só fabricou um excelente filme como deu uma nova dimensão a uma das mais relevantes obras da nossa literatura. O filme é espantoso na recriação atmosférica de um passado fresco na nossa história. É mágica e rigorosa a perfeição de identidade do filme enquanto retrato sociológico da época. Uma época em que Salazar expirava, uma época de fantasmas onde havia até uma brigada oficial de exorcistas, a PIDE. E os fantasmas pairavam sobre a lagoa da Gafeira em poética metáfora. Vagueavam sobre as águas paradas envoltas no nevoeiro e nas sombras do arvoredo circundante, captadas em cortante tristeza pela câmara de Lopes. «O Delfim»[2001] não é um filme de atmosferas sonoras ou visuais, é um filme de latente atmosfera humana que estando individualizada se percebe enraizada no pulsar próprio de uma nação. É, como alguém disse um dia mas em referência ao romance de Cardoso Pires, a história de um crime cuja arma assassina é o amor.
 
Fantástico o trabalho de composição das personagens. O observador passivo, a mulher alvo do desejo dos homens da terra mas que não pronuncia palavra, o criado maneta de tão errónea apreciação por parte do seu patrão, do seu dono, e o cauteleiro que simboliza a voz revoltada de um povo amarrado na sua própria impotência.
     
 Mas é em Palma Bravo e em Maria das Mercês que reside o âmago de tudo aquilo que despoleta a euforia do espectador rendido ao filme. Ele é um homem que julga ter nascido para os prazeres da vida, mas, crença maior, acredita sobretudo que é a vida que lhe deve fornecer todos esses prazeres sem qualquer partilha. De fina educação e natureza delicada, dá-se ao luxo de praticar a rudeza. Ela é uma mulher como o eram na altura as mulheres de família. Criadas para serem esposas e mães. Uma mulher atordoada pelo drama do abandono. Uma mulher de extrema sensualidade, uma mulher reprimida. E estas são duas figuras que fazem parte da nossa história. Uma que se passeava garbosa, a outra recolhida entre quatro paredes.
     
Acredito que Fernando Lopes não poderia ter escolhido melhores atores para protagonizarem as referidas personagens. Enquanto Alexandra Lencastre é a personificação física da criação literária que é Maria das Mercês, Rogério Samora deve ter conseguido com a interpretação do marialva Tomás Palma Bravo o papel da sua vida.
Por tudo isto, «O Delfim» de Fernando Lopes é um objeto fílmico revelador da ironia que a vida encerra em si mesma e que posteriormente se despoleta em forma de tragédia humana. Uma excelente transcrição de uma época específica da nossa portugalidade. É ainda um filme absolutamente meticuloso na forma como captou as subtilezas e conjugou os acessórios fundamentais e capazes de nos transportar até essa mesma época. Em suma, «O Delfim» é um claro exemplo de uma vertente a explorar pelo cinema português. E se isso for conseguido com acutilância creio que é possível a tão desejável harmonia desse tal cinema português com o espectador. Porque este cinema trabalha as memórias mais recônditas de nós, portugueses, como povo. E ainda que sejam memórias feitas de muita imperfeição, um povo de identidade muito própria. Quanto a Tomás Palma Bravo, “Silêncio que está em causa a honra de um homem; e a honra de um homem é para ser respeitada!”

O Delfim [2001], de Fernando Lopes, com Rogério Samora e Alexandra Lencastre


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