domingo, 24 de março de 2013

A Caça

 
 
 
 
Sociedade imperfeita
 
Quando se escreve sobre um filme como «A Caça»[2012], tem-se desde logo um dilema. Porque num filme tão real, devastador emocionalmente – mesmo cruel, não se pode escrever apenas algumas linhas sob o risco de tanto ficar por dizer e no entanto é possível que nos dispersemos na ânsia de expormos tudo o que nos vai na alma. E ainda que escreva muito e de forma objectiva, guardo a convicção de que estarei muito longe de conseguir passar para o lado de lá os efeitos do murro no estômago que passadas algumas horas sobre o seu visionamento este filme continuará a fazer sentir em quem o assistir.
Mas comecemos por falar de Thomas Vinterberg, o homem que assina esta obra marcante. Em 1999 estreava um filme vindo directamente do manifesto Dogma 95 que, assinado por alguns realizadores dinamarqueses, prometia romper com o rumo dado pelos grandes estúdios ao cinema revitalizando a câmara às costas, a luz natural e outras características tendentes a devolver a pureza aos filmes e à sua concepção. Esse filme, «A Festa»[1998], contava a história de uma família que se reunia num hotel para festejar o aniversário de um dos seus. Mas o que deveria ser uma celebração transformou-se numa tragédia e num filme psicologicamente intenso que faria apontar os holofotes do mundo do cinema sobre o seu autor. E apesar de não vir assinado, numa decisão de acordo com o estabelecido no tal Dogma 95, a realização pertencia a Thomas Vinterberg. Sim, Vinterberg, o mesmo deste «A Caça».
Em «A Caça» acompanhamos o percurso de Lucas [Mads Mikkelsen], um antigo professor obrigado a aceitar um emprego num jardim-de-infância por ter fechado a escola da pacata aldeia dinamarquesa onde reside. Lucas vive ainda o rescaldo de um divórcio difícil e enquanto procura reatar a relação com o filho adolescente começa a dar os primeiros passos na reconquista do amor através de uma jovem imigrante sua colega na creche. Mas quando tudo parece voltar a fazer sentido na sua vida, uma mentira inocente vinda de uma menina de 4 anos confusa nos seus sentimentos, acaba por despoletar uma autêntica tragédia que vai fazer com que Lucas assista ao desmoronar em seu redor de tudo o que construíra durante uma vida inteira.
Com a mentira de Klara [Annita Wederkopp], o que vem à tona é a debilidade da sociedade contemporânea, o seu egoísmo e a sua cobardia. Uma sociedade hipócrita que prefere seguir o caminho mais fácil da condenação ao invés de acreditar num dos seus com provas mais que dadas da sua correcção que deveria procurar razões para crer na sua inocência e não inventar provas para justificar a sua culpa. Assim, sustentados numa mais que duvidosa teoria de que as crianças nunca mentem – se bem que neste caso a inocência de Klara é tanta que são os adultos que a levam a afundar-se na sua própria confusão, amigos, colegas e outros membros da comunidade local viram as costas a um dos seus. Um homem que não era um estranho mas sim alguém com quem cresceram e se fizeram homens e mulheres. E isto faz com que pensemos o quão voláteis se revelam os laços entre as pessoas à menor dificuldade. E com o sofrimento de Lucas sofrem todos os que assistem à sua tragédia pessoal. Ou seja, nós os espectadores de cinema. E mesmo que no final a personalidade admirável de Lucas consiga perdoar e permitir a sua reintegração, numa última cena do filme sabemos que haverá sempre alguém que não irá desistir de lhe apontar o dedo. Ou a sua arma, neste caso.
Vinterberg revelou à imprensa que construiu o seu filme a partir de um pequeno relato escrito e esquecido nas suas coisas que lhe fora facultado por um psiquiatra a quem recentemente precisara de consultar. Vendo-se na obrigação de ler os escritos antes da visita ao médico, Vinterberg encontrou então a história que deu origem ao seu filme. E o que existe de mais acutilante em cada fotograma, em cada cena, em cada atitude condenável dos que foram amigos, colegas e vizinhos de Lucas prende-se com esta revelação: a verdade dos actos e o realismo da emoção que, juntos, se transformam numa fórmula única de magnetismo sobre o que observamos.
Mas há que não esquecer que embora baseado na vida o que de facto assistimos é cinema. E por detrás do calvário de Lucas está a espantosa interpretação de Mads Mikkelsen num filme que se mostra, de longe, como um dos mais fantásticos do ano. E eu que gostei de «Amour»[2012] [Palma de Ouro em Cannes e Oscar de Melhor Filme Estrangeiro], digo-vos sem a menor dúvida que «A Caça» está uns bons patamares por cima do filme de Michael Haneke. Haneke cujo nome, reconheça-se, tem uma força muito maior que o de Thomas Vinterberg.
Paralelismos à parte, o que realmente importa é que «A Caça» é um filme real, duro, cruel – repito, mas é cinema requintado, admirável e um filme imperdível, indispensável.
 
«Jagten», de Thomas Vinterberg, com Mads Mikkelsen