Sociedade imperfeita
Quando
se escreve sobre um filme como «A Caça»[2012],
tem-se desde logo um dilema. Porque num filme tão real, devastador
emocionalmente – mesmo cruel, não se pode escrever apenas algumas linhas sob o
risco de tanto ficar por dizer e no entanto é possível que nos dispersemos na
ânsia de expormos tudo o que nos vai na alma. E ainda que escreva muito e de
forma objectiva, guardo a convicção de que estarei muito longe de conseguir
passar para o lado de lá os efeitos do murro no estômago que passadas algumas
horas sobre o seu visionamento este filme continuará a fazer sentir em quem o
assistir.
Mas
comecemos por falar de Thomas Vinterberg, o homem que assina esta obra marcante.
Em 1999 estreava um filme vindo directamente do manifesto Dogma 95 que,
assinado por alguns realizadores dinamarqueses, prometia romper com o rumo dado
pelos grandes estúdios ao cinema revitalizando a câmara às costas, a luz
natural e outras características tendentes a devolver a pureza aos filmes e à
sua concepção. Esse filme, «A Festa»[1998],
contava a história de uma família que se reunia num hotel para festejar o
aniversário de um dos seus. Mas o que deveria ser uma celebração transformou-se
numa tragédia e num filme psicologicamente intenso que faria apontar os
holofotes do mundo do cinema sobre o seu autor. E apesar de não vir assinado,
numa decisão de acordo com o estabelecido no tal Dogma 95, a realização
pertencia a Thomas Vinterberg. Sim, Vinterberg, o mesmo deste «A Caça».
Em
«A Caça» acompanhamos o percurso de
Lucas [Mads Mikkelsen], um antigo professor obrigado a aceitar um emprego num jardim-de-infância
por ter fechado a escola da pacata aldeia dinamarquesa onde reside. Lucas vive
ainda o rescaldo de um divórcio difícil e enquanto procura reatar a relação com
o filho adolescente começa a dar os primeiros passos na reconquista do amor
através de uma jovem imigrante sua colega na creche. Mas quando tudo parece
voltar a fazer sentido na sua vida, uma mentira inocente vinda de uma menina de
4 anos confusa nos seus sentimentos, acaba por despoletar uma autêntica
tragédia que vai fazer com que Lucas assista ao desmoronar em seu redor de tudo
o que construíra durante uma vida inteira.
Com
a mentira de Klara [Annita Wederkopp], o que vem à tona é a debilidade da
sociedade contemporânea, o seu egoísmo e a sua cobardia. Uma sociedade
hipócrita que prefere seguir o caminho mais fácil da condenação ao invés de
acreditar num dos seus com provas mais que dadas da sua correcção que deveria procurar
razões para crer na sua inocência e não inventar provas para justificar a sua
culpa. Assim, sustentados numa mais que duvidosa teoria de que as crianças nunca
mentem – se bem que neste caso a inocência de Klara é tanta que são os adultos
que a levam a afundar-se na sua própria confusão, amigos, colegas e outros
membros da comunidade local viram as costas a um dos seus. Um homem que não era
um estranho mas sim alguém com quem cresceram e se fizeram homens e mulheres. E
isto faz com que pensemos o quão voláteis se revelam os laços entre as pessoas
à menor dificuldade. E com o sofrimento de Lucas sofrem todos os que assistem à
sua tragédia pessoal. Ou seja, nós os espectadores de cinema. E mesmo que no
final a personalidade admirável de Lucas consiga perdoar e permitir a sua
reintegração, numa última cena do filme sabemos que haverá sempre alguém que
não irá desistir de lhe apontar o dedo. Ou a sua arma, neste caso.
Vinterberg
revelou à imprensa que construiu o seu filme a partir de um pequeno relato escrito
e esquecido nas suas coisas que lhe fora facultado por um psiquiatra a quem recentemente
precisara de consultar. Vendo-se na obrigação de ler os escritos antes da
visita ao médico, Vinterberg encontrou então a história que deu origem ao seu
filme. E o que existe de mais acutilante em cada fotograma, em cada cena, em
cada atitude condenável dos que foram amigos, colegas e vizinhos de Lucas
prende-se com esta revelação: a verdade dos actos e o realismo da emoção que,
juntos, se transformam numa fórmula única de magnetismo sobre o que observamos.
Mas
há que não esquecer que embora baseado na vida o que de facto assistimos é
cinema. E por detrás do calvário de Lucas está a espantosa interpretação de
Mads Mikkelsen num filme que se mostra, de longe, como um dos mais fantásticos
do ano. E eu que gostei de «Amour»[2012]
[Palma de Ouro em Cannes e Oscar de Melhor Filme Estrangeiro], digo-vos sem a
menor dúvida que «A Caça» está uns
bons patamares por cima do filme de Michael Haneke. Haneke cujo nome,
reconheça-se, tem uma força muito maior que o de Thomas Vinterberg.
Paralelismos
à parte, o que realmente importa é que «A
Caça» é um filme real, duro, cruel – repito, mas é cinema requintado,
admirável e um filme imperdível, indispensável.
«Jagten»,
de Thomas Vinterberg, com Mads Mikkelsen