segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

SIC Homem

[A modelo fotográfico Iga A. - Gosto de a ver trabalhar]





Longevidade

Neste Domingo, enquanto aguardava pelo início da transmissão do jogo do Benfica com o Marítimo brinquei um pouco com o comando fazendo zapping de canal em canal. Sem perceber bem porquê, estanquei o passo na SIC Mulher a ouvir um tal de Dr. Oz. Dizia este médico que Oprah Winfrey, a diva da televisão americana, tornou famoso [entretanto fui tentar saber quem era o senhor], que a uma mulher que namore com um homem alguns anos mais novo que ela este não lhe acrescenta anos de vida. Pelo contrário, um homem que namore com uma mulher 17 anos mais nova [precisão científica], terá a sua longevidade acrescida em dez anos. Bom, passe a minha convicção de que a continuar a dar estas notícias a SIC Mulher em breve terá de passar a chamar-se SIC Homem já que a audiência feminina foge e é substituída pela masculina, por que será que ainda assim fiquei com a dúvida se esta era realmente uma boa notícia para os homens!? É que, convenhamos, será preciso suar as estopinhas e ter muito talento natural para arranjar uma namorada 17 anos mais jovem. Desenganemo-nos, homens, nem quando a ciência o determina nos é dado algo ou alguém de mão beijada. 



Noite dentro





Dormi muito, mesmo muito. Estava mais provocador que nunca, temerário como sempre, distribuía charme e classe como poucos, dividi-me na paixão pelas mulheres e no dever do combate ao crime à escala mundial. Por todo o lado as mulheres eram belas e sensuais, os criminosos feios e megalómanos mas eu era detentor da receita certa para as seduzir a elas e combater a eles algures entre um copo de Martini, um olhar apressado ao relógio Omega e uma ruidosa corrida ao volante do meu potente Aston Martin. Soube bem, muito bem, mas o despertador tocou e tive de me levantar para ir trabalhar.



Óscares 2011: O cair do pano




A festa
Baixou o pano sobre a cerimónia no Kodak Theatre e a sensação maior que paira na generalidade dos espectadores e cinéfilos de todo o mundo é a de que a montanha pariu um rato. Honestamente, espero que os chamados blogues cor-de-rosa tenham muito a escrever sobre os vestidos das convidadas porque no restante da festa o marasmo foi quase total. E este quase para não ser mesmo total tem somente a ver com as aparições de uma Scarlett Johansson sensual e sedutora, de Kirk Douglas a tentar fazer humor aos 94 anos, do sempre competente Billy Cristal que já apresentou a cerimónia dos Óscares por oito vezes e das vitórias de Natalie Portman, Colin Firth e Christian Bale nas categorias para que estavam nomeados.


Previsibilidade e conservadorismo
Não é novidade para quem quer que seja o conservadorismo da Academia de Hollywood e, pessoalmente, a prova disso mesmo está na aposta que fiz nos vencedores da noite. De facto, ter acertado sete em dez nomes e os falhados dizerem respeito ao Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Filme Estrangeiro [aqui, ainda só tinha visto o desgostoso «Biutiful» e foi nesse que apostei] só pode mesmo significar previsibilidade dos senhores que votam para os prémios e não qualquer capacidade especial minha para a adivinhação.


Os premiados
Assim, com os Óscares de Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor e Melhor Argumento Original «O Discurso do Rei» foi o vencedor da noite. Também com quatro Óscares, todos eles técnicos, «A Origem» acabou por ver premiada uma pequena parte do excelente trabalho da sua equipa, enquanto «A Rede Social», de David Fincher, para além de Melhor Argumento adaptado levou mais duas estatuetas para casa, ambas também técnicas. De salientar apenas os dois Óscares de interpretação atribuídos a «The Fighter: Último Round», os de Melissa Leo, previsível mas questionável, e de Christian Bale, merecido pese a concorrência valorosa de Geoffrey Rush. No restante, dizer apenas que Tom Hooper [Melhor Realizador por «O Discurso do Rei»] ao olhar para os outros realizadores nomeados e para o trabalho que estes fizeram nos filmes que os levaram na noite de 27 ao Kodak Theatre, ainda hoje se deve estar a perguntar o que faz aquele troféu lá por casa e que, mesmo estando brilhante em «O Discurso do Rei», Colin Firth ainda o tinha estado mais na sua nomeação anterior por «Um Homem Singular». Já Natalie Portman teve o papel da sua vida, apesar da sua juventude, e Christian Bale voltou a provar que é um dos melhores da actual geração de actores norte-americanos encarnando visceralmente uma personagem que nem sequer é de ficção já que ainda vive algures em Lowell, Massachusetts.  


Dois baldes de água fria
E os Óscares de Lata vão para… James Franco e Anne Hathaway, os apresentadores. Sem carisma, sem chama e sem perfil para a função foram uma autêntica nulidade. Não é por acaso que apesar da sua presença na audiência, o fantasma de Hugh Jackman continua a pairar sobre o Kodak Theatre. Nos últimos anos, Wolverine, ou o australiano, foi o melhor entre os seus que a Academia nomeou para apresentar a sua própria festa. Mas que ninguém desanime, para o ano há mais.





[Natalie Portman em «Cisne Negro», o papel de uma vida]







domingo, 27 de fevereiro de 2011

Óscares 2011: Preferências e Prognósticos



A poucas horas do início da cerimónia da entrega dos Óscares de 2011, deixo aqui a minha opinião e alguns vaticínios.




Melhor Filme
Sinceramente não me parece que «O Discurso do Rei» vença. Creio que está na altura de celebrizar os feitos da América num mundo actual e globalizado onde as redes sociais têm um impacto cada vez maior pelo que julgo que «A Rede Social» pode muito bem arrebatar o troféu. Se fosse eu a escolher sentir-me-ia dividido entre vários deles mas entregava a estatueta a «Cisne Negro».






Melhor Realizador
Aqui o meu preferido é, por via do que escrevi anteriormente, Darren Aronofsky [«Cisne Negro»]. No entanto aposto na vitória de David Fincher [«A Rede Social»].






Melhor Actor
Há dois homens claramente mais merecedores deste prémio, Colin Firth  [«O Discurso do Rei»] e Jeff Bridges [«Indomável»], mas o actor inglês desta vez vai vencer e eu acho muito bem.







Melhor Actriz
Nesta categoria, este ano temos uma mera formalidade para entregar o mais que merecido Óscar a Natalie Portman [«Cisne Negro»]. E eu aplaudo, claro.







Melhor Actor Secundário
Aqui, confesso, divido-me entre duas interpretações. As de Geoffrey Rush em «O Discurso do Rei» e de Christiane Bale em «The Fighter». Ficaria contente com qualquer um a vencer e creio mesmo que Bale desta vez vai subir ao palco do Teatro Kodak.







Melhor Actriz Secundária
Se houvesse justiça neste mundo, a pequena Hailee Steinfeld [«Indomável»] não teria que esperar mais para levar o prémio da Academia de Hollywood para casa. Como o mundo não é justo, aposto que os senhores da Academia o irão entregar a Melissa Leo [«The Fighter»].









Melhor Argumento Original

O argumento de «A Origem» é fenomenal e aquele que escolheria, mas parece-me que aqui o Óscar irá para «O Discurso do Rei», até como forma de compensação se o meu raciocínio de entrega dos prémios estiver correcto.








Argumento Adaptado
Nesta categoria, a entrega do prémio seria outra mera formalidade com o trabalho realizado pela equipa de «Indomável». Mas não deverá ser uma formalidade, deverá mesmo ser uma entrega muito renhida, e creio que «A Rede Social» vai somar aqui mais um amigo de nome Óscar.



 



Melhor Filme em Língua não Inglesa
Não tenho preferências nesta categoria nem simpatia pelo filme, mas creio que «Biutiful» sairá recompensado pelo claro descrédito que demonstra na espécie humana.



 




Melhor Filme de Animação
«O Mágico» é um filme de uma inacreditável magia. Apesar disso, «Toy Story 3» deverá ser feliz e arrecadar o troféu.



 


A melhor cerimónia a que assisti nos últimos anos foi apresentada por um australiano, Hugh Jackman. Esperemos que a nova-iorquina Anne Hathaway, para quem «O Amor é o Melhor Remédio»,  e o californiano James Franco, este já com a prótese depois de ter cortado o braço em «127 Horas»,  possam superar a brilhante performance de Jackman na maior festa de cinema do ano.





127 Horas





O homem e a montanha

O filme inicia-se com imagens frenéticas tiradas de câmaras de segurança sobre as ruas apinhadas de gente, estádios de futebol imersos de espectadores, cenas vindas directamente de televisões, cenas domésticas e, de entre todas elas, emerge o protagonista do filme, Aron Ralston [James Franco]. Baseado em factos reais, Ralston, engenheiro e amante da natureza, é um homem tão confiante de si mesmo e das suas capacidades de lidar com desertos e montanhas adversas que sai de fim-de-semana algures para o Utah sem deixar uma única nota de si, sem que alguém saiba para onde seguiu.

Mas esta inconsciência sairá cara a Aron quando um dos seus braços, comprimido entre uma rocha que se soltara e as paredes de uma ravina, o faz ficar preso nas entranhas da terra. E é a partir daqui que o realizador de «Trainspotting» [1996], «A Praia» [2000], «28 Dias Depois» [2002] e o multi-oscarizado «Slumdog Billionaire» [1998] faz um filme sobre o calvário de um homem agarrado ao seu próprio destino sem qualquer possibilidade de apoio externo que não venha de si mesmo. Apesar das possibilidades deste homem aterradoras de tão pessimistas, Boyle imprime ao filme um humor a roçar o sarcasmo que faz com que plateias nervosas se confundam entre o choro e o riso. É obra.

No entanto, é inegável que numa história com estas características o filme tenha as suas próprias limitações que nem a esquizofrenia visual de que é composto consegue disfarçar. Ainda assim, nesta hora e meia de puro cenário e tensão dramática há um actor que encarna na perfeição o aventureiro dos nossos dias a quem a natureza resolveu dar uma lição perante a sua insolência. E durante os cinco dias em que está preso por um braço, o filme condensa em hora e meia toda a fragilidade humana perante uma morte que se avizinha e a necessidade de força interior para manter intactos a mente e o ânimo. Em suma, «127 Horas» é uma proposta de cinema diferente e ousada que se desenvencilha capazmente das suas próprias restrições graças ao talento dos seus autores e actores, Danny Boyle e James Franco à cabeça. Que eu corte já um braço a mim mesmo se assim não é.

«127 Hours», de Danny Boyle, com James Franco


quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Word

[Rachel Weisz in «My Blueberry Nights - O Sabor do Amor»]




Suponho que tal como acontece com muitos homens, dias há em que sou surpreendido por um olhar meigo onde perco o meu, por um sorriso tímido que me aquece a alma. E à noite, normalmente à noite, sento-me ao computador e escrevo um texto condicionado pelas emoções do dia. E aquele olhar, aquele sorriso, aquela mulher, estão lá. São textos que ficam apenas para mim e que noutros tempos se perdiam como vulgares papeis espalhados algures no lugar a que chamo escritório ou entre os livros arrumados ou simplesmente empilhados nas estantes. Mas como não voltava a lê-los, como o passar do tempo aquele olhar, aquele sorriso, aquela mulher desvaneciam-se em mim. Agora tudo mudou com esses textos, aqueles que escrevia ao sabor do momento. Passei a encontrá-los de cada vez que abro o Word. E não, não  esqueci mais os olhares meigos, os sorrisos tímidos...


terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Poupanças



Julgo já o ter escrito por aqui, tenho uma péssima relação com o dinheiro. Confesso comportar-me, neste aspecto particular, muito de acordo com o tipo de raciocínio que a minha mãe adopta de cada vez que vou lá a casa. Acusa-me sempre de levar uma imensidão de tempo a chegar e de nem aquecer o lugar para partir de novo. O que nunca disse aqui, penso, é que  em matéria de lucidez a minha mãe dá-me autênticas abadas. Mas voltando ao que me trouxe, o meu sonho de poupança está mais na linha dos críticos de cinema do Público, excepção feita ao Jorge Mourinha. Poupar tanto no meu dinheiro como aquela repartição do jornal poupa nas estrelinhas com que avaliam os filmes em cartaz. Até porque não há novidade nenhuma em dizer que esta coisa dos filmes é um pouco como na vida. Cada um é como é e certamente que não come aquilo de que não gosta. Gosto de cinema.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Clube de combate





«Com todo o mundo dividido em propriedades, com os limites de velocidade e as divisões por zonas, com tudo regulado e tributado, com todas as pessoas analisadas e recenseadas e rotuladas e registadas o mundo tornou-se aborrecido. Ninguém deixou muito espaço para a aventura, exceptuando, talvez, a do género que se pode comprar. Numa montanha-russa. Num cinema. No entanto, isso seria sempre uma excitação falsa. Sabes que os dinossauros não vão comer os miúdos. Os referendos recusaram com os seus votos qualquer hipótese de um desastre falso ainda maior. E porque não existe a possibilidade de um desastre verdadeiro, ficamos sem nenhuma hipótese de termos uma salvação verdadeira. Entusiasmo verdadeiro. Excitação a sério. Alegria. Descoberta. Invenção.»

Quem o diz não sou eu, é Chuck Palahniuk na sua obra «Asfixia». Mas concordo em absoluto. Quem dera que o homem não tivesse criado determinadas amarras para si mesmo não percebendo que ao fazê-lo se enfraquecia ainda mais no intuito de se proteger, que a liberdade fosse algo que não nos é retirado no preciso momento em que decidimos viver sob os parâmetros de uma sociedade recheada de condicionalismos e preconceitos onde os papéis assinados têm mais força que os vínculos emocionais, que não vivêssemos permanentemente no medo de falhar como se o erro não fizesse parte do processo de crescimento de cada um como ser humano acabando por tornar este num mundo de oportunidades onde a obrigação de escolher é quase sempre um sinónimo de perda sem retorno porque deixámos algo ou alguém para trás. Cada vez mais penso que está na altura de baralhar e dar de novo porque neste jogo da vida as regras ou estão viciadas ou não permitem o seu desenvolvimento.

Chuck Palahniuk é um escritor americano e foi autor da obra «Fight Club», levada ao cinema por David Fincher em 1999, com Brad Pitt e Edward Norton nos principais papéis. Palahniuk cumpre hoje 50 anos de idade.




domingo, 20 de fevereiro de 2011

Despojos de Inverno





Irmã coragem

«Winter’s Bone» é mais uma pérola do cinema indie, um filme passado numa América mais tenebrosa que profunda, numa sociedade fechada sobre si e marginal, num mundo onde o gelo e o lixo tornam ainda mais hostil uma paisagem montanhosa já de si áspera como as gentes que a povoam. Correndo por fora, «Despojos de Inverno», da americana Debra Granik, promete no entanto dar que falar na noite dos Óscares. Não porque tenha grandes probabilidades de vencer alguma das quatro estatuetas para que foi nomeado, não sejamos ingénuos, mas porque cada uma das nomeações deste pequeno/grande filme são demasiadamente sólidas para não serem levadas a sério. Nomeadamente a de Jennifer Lawrence, uma irmã feita mãe coragem num mundo assente em silêncios e no medo.

Ree [Jennifer Lawrence] tem apenas dezassete anos mas a seu cargo vivem um irmão de doze e uma irmã de seis e ainda a mãe dada como louca perante o seu silêncio e inércia talvez na única forma que encontrou de enfrentar a miséria e a mesquinhez que a rodeiam. O pai, ausente, acabara de sair da prisão mas desapareceu deixando a família em risco de perder os terrenos e a casa onde vivem dados por ele como pagamento da fiança. Ree tem, assim, poucos dias para encontrar o pai e evitar o desmembramento total da sua família já de si disfuncional. Mas na tarefa árdua a que se propõe, Ree irá enfrentar as mais terríveis ameaças proferidas por personagens sinistras regidas por um estranho código de silêncio. Nessa busca, a jovem vai ainda contar com os avanços e recuos de Teardrop [John Hawkes], o tão violento como generoso irmão do seu pai.

Como facilmente se pode perceber, Debra Granik constrói em «Despojos de Inverno» um thriller de estética rugosa subindo aos montes Ozark para mostrar uma América má e feia regida por máfias familiares onde abundam os laboratórios artesanais de drogas e álcool. Mas no mundo de «Winter’s Bone», para gáudio do espectador de cinema sobrevive uma jovem que não teme enfrentar a violência de gente sórdida e dura em nome de uma responsabilidade maternal que não lhe deveria pertencer mas que ela não enjeita. E Ree tão depressa se mostra a mais terna das irmãs como a mais feroz lutadora numa interpretação superior de Jennifer Lawrence, ela que representa ainda a esperança num ambiente de adversidade e desolação. E no filme, a personagem de Jennifer rima apenas como os suaves acordes de um banjo ou nas velhas canções country entoadas por uma também velha cantora na reunião familiar que na sua desesperada busca ela interrompe. Interrompem-na Ree e o seu inesgotável amor pela vida. Pela sua, é claro, mas sobretudo pela vida dos seus dois pequenos irmãos. A não perder.

«Winter’s Bone», de Debra Granik, com Jennifer Lawrence e John Hawkes

O estado da nação



Há dias, num jantar de trabalho, um advogado dizia-me que cerca de setenta por cento dos processos que chegam a tribunal são ganhos por erros processuais. Dito por outras palavras, e exemplificando, o que este meu conhecido queria dizer é que ao tribunal importa primeiro saber se os telefonemas que ajudaram a incriminar A que corrompeu B ou C que violou D poderiam ou não ter sido gravados pela polícia. Só então a justiça se debruça sobre o crime em si o que, no mínimo, deturpa as razões e o espírito por que um dia os homens decidiram criar as leis.
Estranho estado de direito, este. E não me interpretem mal, já sou crescidinho o suficiente para perceber que este não é um mundo justo e nada disto é novidade. Mas desculpem lá a minha falta de entusiasmo perante o estado geral a que este país chegou, justiça incluída.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Indomável





Em nome do pai

Desde que se estrearam com «Sangue por Sangue» [1984] que, goste-se ou deteste-se, ninguém fica indiferente ao cinema de Joel e Ethan Coen. Ao longo de quase trinta anos, os dois irmãos construíram uma carreira na indústria cinematográfica onde está bem patente um estilo muito próprio normalmente associado a um sentido de humor que chega a ser desconcertante. Em «Indomável», remake de «Velha Raposa» [1969] filme que deu o Oscar de Melhor Actor a John Wayne e realizado por Henry Hathaway, o humor é um pouco mais subtil que o habitual mas os Coen continuam a fazer o mais literário cinema dos nossos dias. De facto, a qualidade do texto assente em diálogos vivos e inteligentes prova que mais do que nos deixar durante dias e dias a pensar nos seus filmes, estes servem sobretudo para que o espectador desfrute deles numa sala de cinema. E esse é o grande trunfo de «Indomável», numa realização que demonstra igualmente a grande valia técnica dos dois cineastas.

A partir do momento em que a jovem Mattie Ross [Hailee Steinfeld] resolve vingar a morte do pai às mãos de um seu empregado, percebemos que a narrativa de «True Grit», no seu título original, se vai debruçar muito sobre a fronteira entre o bem e o mal e a perda de inocência de uma adolescente que passará a partir dali a lidar permanentemente com a morte. O Marshal Rooster Cogburn [Jeff Bridges] é o homem contratado por Mattie para dar caça ao assassino. E quando este acaba por fazer um acordo com o Ranger LaBoeuf [Matt Damon] à revelia de Mattie, os três partem para as montanhas onde julgam estar escondido o infame Tom Chaney [Josh Brolin]. Nesse momento, o espectador entra definitivamente na melancolia poética dos Western, dos homens de corpos aquecidos pelo whisky, de pistola no coldre e tiro fácil e da luta pela sobrevivência em terras inóspitas povoadas por gente áspera.

E se a pequena Hailee Steinfeld se revela uma actriz de corpo inteiro completamente inserida no corpo e alma da sua personagem, Jeff Bridges assume de vez a sua importância no panorama cinematográfico norte-americano arrancando uma notável interpretação de um velho e decadente Marshall que recupera a dignidade no cumprimento da sua obrigação contratual e moral para com Mattie. Ela que se revelara desde sempre uma negociadora de verbo fácil, convincente e implacável. Entretanto, o espectador mergulha de cabeça numa história que acaba por se declarar triste e amarga ainda para mais dominada pelo desencanto com que termina. De destacar o esplendor da fotografia do filme, assim como a confirmação, através do manejo da câmara e do domínio das técnicas de som, do homem como ser minúsculo perante a terra que o rodeia.

 Em suma, este «Indomável» dos irmãos Coen é a tradução perfeita para cinema da grande literatura e aquece-nos a alma muito pela nostalgia que desperta e pelo executar assumido  de um certo revivalismo do clássico americano por excelência, o western.

«True Grit», de Joel e Ethan Coen, com Jeff Bridges, Hailee Steinfeld, Matt Damon e Josh Brolin

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Das minhas memórias

[Gerda, 1914, Ernst Ludwig Kirchner]






Herr Klaus


Durante a minha pré-adolescência vivi alguns anos longe de Portugal, embora não muito longe, na Alemanha pré queda do muro de Berlim, numa cidadezinha de serviços e perto de duzentos mil habitantes nas margens do Ruhr e a poucos quilómetros da grande Dusseldorf. Eu e a minha família habitávamos um apartamento, alugado, não muito longe da Rathaus (Câmara Municipal), da escola que eu frequentava e do centro da cidade. No prédio vivia também o proprietário, o grande de quase dois metros de altura, cento e cinquenta quilos de peso e já sexagenário Herr Klaus. Fui poucas vezes a sua casa. Mas das vezes que fui recordo a confusão de livros escritos em várias línguas espalhados no soalho e por todos os móveis existentes na sala e as latas de cerveja vazias e de comida em conserva nas embalagens meio cheias abandonadas numa cozinha imunda e malcheirosa. Para além de homem só, nunca percebi se viúvo, divorciado ou solteirão, Herr Klaus não era de muitas palavras. Recebia das mãos da minha mãe o cheque com o pagamento da renda e preenchia logo ali o recibo que comprovava o pagamento.
 
Por motivo da minha ingenuidade de criança a rondar os doze ou treze  anos, nunca percebera o corrupio de lindas e jovens mulheres ao ritmo de três, quatro por semana que lhe entravam pela casa dentro. Algumas vezes, quando as via entrar, deixava-me ficar sentado nas escadas de madeira (o edifício cinzentão de construção do pós guerra não tinha elevador) até que, na maioria das ocasiões para aí uma simples meia-hora depois, as via sair com uma expressão no rosto que estava longe de compreender mas que sabia não ser propriamente de felicidade. Mas que também não era de infelicidade. Circunstâncias houve em que me via obrigado a largar o meu posto de vigia, conduzido pela mão da minha mãe firme a agarrar-me a orelha até me colocar de castigo no quarto. Numa das tardes em que isso não aconteceu, recordo-me de uma das senhoras sair muito zangada perseguida por Herr Klaus e de, junto à soleira da porta do apartamento, lhe aplicar um valente pontapé nos testículos seguido de um sonoro schwein. Isto enquanto o senhorio do prédio se contorcia com dores. Já a mulher, linda como as demais, passou por mim e acariciando-me o queixo deu-me um beijo no rosto murmurando-me algo indizível que me deixou de faces acaloradas e mais vermelhas que um tomate maduro.
 
Julgo que foi a minha primeira e única paixão por uma mulher mais velha que eu. E a partir dali, juro-vos, a minha quase inexistente relação com Herr Klaus esfriou até ao ponto de deixarmos até de nos saudar sempre que nos cruzávamos nas escadas do prédio.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Almofada da justiça







Por razões profissionais, hoje tive de ir ao centro de Cascais. Depois de cumprir os afazeres que me levaram até perto da praça onde fica o restaurante Visconde da Luz, constatei que tinha um presente no pára-brisas: uma multa de estacionamento. Senti-me feliz, ó se senti. Caramba, afinal é sempre bom saber a competência com que a almofada da justiça actua em defesa do bem-estar da comunidade. Até porque não foi nada que me surpreendesse muito, dado que a autoridade já tinha tido para comigo gesto parecido na semana anterior. E por essa altura até tive direito a um curso intensivo sobre estacionamento irregular dado por uma senhora de farda azul escura vistosa franzida junto às nádegas e ar de quem sabia do que falava. No final da sessão, já despojado de uns quantos euros da coima, aguentei-me ao balanço e fiquei ali a rezar pela senhora polícia. A pedir por ela, a desejar-lhe coisas boas e estimulantes. É agradável desejar coisas boas e estimulantes aos outros, especialmente nestes casos. E lembrem-me, tenho que voltar rapidamente ao Centro de Cascais. É que às tantas a gente habitua-se às mordomias e já não consegue passar sem elas.


segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Profissional competente






A modelo fotográfico Iga A.
Gosto de a ver trabalhar.


O fim da aventura







«A detonação foi seca e curta. É assim que ladram os Colt de 38. A minha pobre gata francesa tremia de olhos muito abertos. Amava-a. Abracei-a contra mim amaldiçoando as malditas armadilhas da vida.»

In «Diário de Um Killer Sentimental» [1996], Luís Sepúlveda.



Um assassino a soldo, competente e muito cuidadoso, comete um erro imperdoável: apaixona-se por uma linda mulher francesa. A relação entra em colapso quando o profissional está a meio de um trabalho bastante complexo e importante, o que o vai levar a abandonar a profissão mais cedo que aquilo que planeara. Mas a sua última missão espelha o quão ingrata pode ser a vida de um homem. Ainda para mais quando esse homem é um assassino profissional que não mistura trabalho com sentimentos.



domingo, 13 de fevereiro de 2011

The Fighter - Último Round





A vida não é um sonho

Mickey Ward [Mark Wahlberg] teve no seu irmão o ídolo da adolescência e vive uma existência de superação pessoal como lutador de boxe. Por sua vez o irmão, Dicky Ecklund [Christian Bale], é uma estrela há muito apagada que vive uma lenda bem mais obscura que cintilante de um dia ter sido o orgulho de Lowell, Massachusetts. E enquanto um, o primeiro, vive condicionado pela fidelidade à família - incluindo a mãe ainda a seguir a luz apagada de Dicky - e a quantos o rodeiam por este ou por aquele motivo, o outro subsiste numa inacreditável dependência emocional e material pelo boxe tornando-se treinador de Mickey como se por decreto. Mas Mickey quer viver o sonho americano e Dicky representa o falhanço simbólico de uma sociedade, a americana, onde muitos dos seus derrotados se tornam marginais e dependentes de drogas. Neste entretanto, surge Charlene [Amy Adams], a namorada de Mickey, uma jovem mulher tão paradoxalmente doce como dura e determinada.
«The Fighter – Último Round» aborda um dos desportos mais visceralmente queridos dos americanos, o boxe. E poderia muito bem ter-se reduzido à categoria de mais uma metáfora de queda e redenção assente numa história que foi beber inspiração à vida real. No entanto, a realização de David O. Russell [ele que realizou «Três Reis» no já longínquo ano de 1999] agarra-se com unhas e dentes ao mito de dois irmãos, dois homens, dois lutadores de boxe, na tentativa de construir um filme sólido e muito realista que retrata o sonho americano a partir de um bairro problemático e de uma das suas famílias. Uma família que é um exemplo perfeito do que são as classes mais desfavorecidas da América. E neste seu retrato, o que sobressai é a capacidade de conseguir fugir ao ordenamento emocional de pessoas que de facto são incapazes de agirem de modo organizado já que vivem quase por instinto. E esse é um trunfo do seu cinema fugindo não só ao tradicional filme de boxe como ao exibicionismo pretensioso de quem aborda a complexidade da natureza humana.
Baseado numa história verídica, é exemplar a reconstrução dos combates de boxe entre um Mickey esforçado e circunspecto e os seus adversários tidos à partida como favoritos o que prova a existência de uma excelente direcção artística. E se Mark Wahlberg está em plano de evidência, que dizer de um Christian Bale que se esquece de si mesmo para mais uma vez se abandonar por inteiro à personagem que encarna? Bale, em «The Fighter – Último Round», é um homem moralmente perdido, fisicamente raquítico e dramaticamente agarrado ao crack e a uma imagem que tem de si e do boxe. E para quem esperar até aos créditos finais do filme e observe o homem real que encarnou, poderá verificar nas inacreditáveis semelhanças entre um e outro. Fantástica interpretação, sem dúvida, daquele que já foi maquinista, psicopata americano e Batman, entre outros. Quanto a Amy Adams, dizer apenas que a beleza quando existe se percebe até por detrás do balcão de um bar manhoso a servir bebidas a gente rude enquanto é apreciada por olhares lânguidos e esfomeados. Grandes interpretações, grande filme e o boxe como metáfora para a vida.

«The Fighter», de David O. Russell, com Mark Wahlberg, Christian Bale, Melissa Leo e Amy Adams

O Discurso do Rei




O rei e o plebeu

A Europa encontra-se numa encruzilhada bélica para onde é levada por um homenzinho vil, de bigodinho pateta mas de discurso arrebatador de nome Hitler. Entretanto, em Inglaterra Jorge V morrera e deixara um vazio no trono já que o seu sucessor natural, que viria a ser Eduardo VIII [Guy Pearce], apresentava uma frivolidade pouco de acordo com o estatuto e acabaria mesmo por abdicar em prol de um amor tido como inconveniente por uma cidadã americana já anteriormente casada por duas vezes. Sucede-lhe como rei o seu irmão mais novo, Bertie [Colin Firth] para a família e Jorge VI para a história, um homem de grande carácter mas afectado por uma arreliadora gaguez que o diminuía como líder. Bertie acaba por se socorrer de um atípico terapeuta da fala, Lionel [Geoffrey Rush], ele, plebeu e australiano que nem sequer possuía formação em medicina. No entanto, levado para a guerra por Hitler, em 1939 o Império Britânico ouvirá do seu rei gago um discurso histórico e mobilizador. E é sobre esse discurso e sobre a amizade que nasce entre o rei e o terapeuta plebeu que Tom Hooper edifica «O Discurso do Rei». Aparentemente, um filme talhado para ganhar prémios.
«The King’s Speech», no seu título original, é formalmente inatacável e em tempo algum dispensou a conhecida fleuma britânica e um glamour muito british. Apesar de ter sempre em pano de fundo o grave momento histórico que o mundo vivia na altura, isso nunca pareceu interessar por aí além à realização de Tom Hooper. E ainda bem, digo eu, já que o filme retrata a angústia de um homem que tendo vindo a tornar-se rei se sentia bem menos válido que o mais humilde dos seus súbditos. E nesse âmbito, sem histrionismos exagerados [e dispensáveis], com uma interpretação sólida e equilibrada, Colin Firth é peça fundamental para que se perceba aquilo que todos já sabemos: que os reis não passam de seres humanos como quaisquer outros. Mas a forma como o filme demonstra esta evidência, acaba por se revelar de uma elegância extrema. Até no desfilar de carências afectivas que a sua personagem principal possui e nas situações humilhantes por que passa.
Mas neste formalismo todo, a surpresa está na fina ironia com que se dão os encontros e desencontros entre o terapeuta e Jorge VI, dotando o filme de uma comicidade muito invulgar para um drama mas também de uma emotividade que pode fazer chegar às lágrimas o espectador mais sensível. E caso se esteja atento ao que de mais subliminar tem o texto do filme, não deixam igualmente de se tornar bem interessantes as diversas relações existentes. Entre a realeza e o povo, a relação sempre ambígua com a igreja com esta a colocar-se em bicos de pés ou na prova irrefutável de que o poder, as grandes decisões, já então pertenciam aos governos e não à monarquia. Mas, como disse anteriormente, o filme passa por aí mas não é nesses aspectos que se detém.
Em minha opinião longe da obra-prima que tantos prémios poderiam sugerir, «O Discurso do Rei» acaba ainda assim por se tornar num filme muito competente, por vezes comovente, que para além de um grande Colin Firth possui ainda um outro actor, Geoffrey Rush, cuja enorme presença como terapeuta do rei merece tanto destaque quanto aquele que é dado a Colin Firth. De realçar também a mordacidade altiva de Helena Bonham Carter como Rainha Isabel. E mesmo que não tenha sido pelo discurso do rei que os aliados ganharam a guerra, certamente que depois deste filme Jorge VI ficará ainda mais no coração dos britânicos. Pelas suas virtudes, claro, mormente pela sua coragem, mas, curiosamente, sendo um homem igual a tantos outros, muito mais pela sua debilidade: pela sua gaguez.

«The King’s Speech», de Tom Hooper, com Colin Firth, Geoffrey Rush e Helena Bonham Carter


quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Os que perdendo vencem


[Foto de José Boldt]




As roupas largas já muito gastas, rotas, um par de botas, uma castanha e outra preta, o fardo de caixas de papelão cuidadosamente desmanchadas mas de um peso incomportável para o seu corpo débil, para a força que lhe faltava. O olhar cabisbaixo quase em tom de súplica, o rosto de barba comprida e rala, as rugas em redor dos olhos já sem brilho, já sem sombra do sonho...
Há uma época, a da nossa juventude, em que todos temos um ou mais sonhos. Há uma outra época em que vivemos a busca desses sonhos. Desses tempos hão-de sobrar os vencedores e os vencidos mas também aqueles que se limitam a sobreviver. Mas também há aqueloutros que não fazendo parte da estirpe dos vencedores se recusam à simples sobrevivência e vivem à espera numa espécie de resignação desolada e de negação da sua existência por cá. Ou, dito por outras palavras, é como se quisessem dizer aos outros que deixem, que se deixem estar, por esta perderam, fica para a próxima, fica para uma outra vez.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Deus e o Diabo na terra do Sol

[Sandra Sue]




Todos os dias, chovesse ou fizesse Sol, via aquele homem fechar o enorme e pesado portão verde atrás de si e descer penosamente os degraus que davam para um passeio ladrilhado de hexágonos castanhos. Um passeio ainda um pouco longo que pisava indiferente desde a casa isolada que habitava até desaparecer no interior do pequeno café situado na rua principal da aldeia. Eu não teria mais de uns oito anos, mas, por vezes, acompanhado do meu avô que ali se deslocava para comprar tabaco e dar dois dedos de conversa ao gordo e farfalhudo dono do botequim, via-o chegar ao entardecer. Como sempre, num ritual grave e ao mesmo tempo ausente, não pronunciava mais que as palavras capazes de darem a entender o que pretendia – normalmente dois ou três cálices de aguardente ou outra bebida ainda mais forte esvaziados de um sorvo cada um deles. Depois, remexia as mãos nos bolsos das calças em busca de moedas para pagar o consumo e abalava em silêncio pelo mesmo caminho que o trouxera.

Aquele olhar magoado, o voluntário isolamento a que se votava do mundo que o rodeava, os gestos repetitivos, o invariável fato escuro limpo mas amarrotado, intrigavam-me. Não teria mais de trinta e cinco anos de idade, alto e magro, cabelo curto que se percebia não ter sido cortado por um profissional do ofício. Na aldeia corriam os mais díspares e disparatados rumores sobre aquele homem enigmático e distante. Vivia com a mãe, senhora austera, de posses, mas pouco quista entre os aldeões. Chegara um, dois anos atrás não se sabia ao certo de que proveniência. Dizia-se que enlouquecera por ter perdido uma fortuna ao jogo, que a loucura lhe viera de anos passados numa prisão de Lisboa a cumprir pena por ter assassinado alguém... Sobre aquele pobre homem recaíam as mais odiosas suspeitas. Embora na altura nunca tivesse conseguido perceber o que acontecera, apesar de garoto acreditava piamente que o seu crime se resumia apenas ao retraimento relativamente aos restantes, à sua inexplicada desolação.

Um dia, já de si enegrecido e chuvoso, foi quando a noite já estendia o seu manto negro sobre a povoação que vi um grupo de miúdos a fazer uso da perversidade inconsciente que lhes é própria. Caíam injúrias tremendas sobre aquele que para todos não passava de um estranho e bizarro homem. E para lá das infâmias gritadas, fora autenticamente fuzilado com lama e pedras que o deixaram ligeiramente ferido e enlameado. Depois, fugiram entre os canaviais até que a algazarra que faziam se tornou imperceptível e longínqua. Num estado deplorável, o homem continuou o seu caminho sem fazer um único gesto para retirar das roupas a terra molhada que fora lançada sobre si. Segui-o instintivamente. Quando abriu o pesado portão verde, uma luz tristonha acendeu-se e ao fundo do jardim da casa surgiu uma senhora já com alguma idade. Como a não conhecia não a pude identificar, mas era certamente a mãe. Desde o meu posto de observação, a terra debaixo dos meus pés parecia tremer, o coração pulava no meu peito. Não muito longe, um bando de corvos voava na direcção oposta à minha numa revoada silenciosa. A senhora, ao ver o filho naquele estado, abafou um  lamento triste tapando a boca com a mão. O filho ao ver a mãe aflita sorriu com ternura e abraçou-a. Depois refugiaram-se ambos no interior da casa.

Soube anos mais tarde que se mudaram para uma aldeia do norte, junto a Vila Real. Soube também que, naqueles anos em que a sua diferença suscitou ódios e incompreensão, recuperava psicologicamente de um abalo terrível: a sua mulher morrera de parto e levara consigo aquele que seria o primeiro filho de ambos. Foi também por esta altura que comecei a perceber que se pode sentir náusea pelas atitudes alheias, que tudo serve para o ajuste de contas das pequenas querelas de aldeia, que o cinismo e a irresponsabilidade humanos rapidamente se transformam em crueldade, que o maior inimigo do homem é e será sempre a sua própria ignorância.





Cisne Negro







A bela e os demónios

Nina [Natalie Portman] tem uma obsessão, a de se tornar prima ballerina da companhia de ballet que representa. Esta que se apresta para estrear na nova temporada o bailado «O Lago dos Cisnes», em mais uma versão das inúmeras existentes do original russo composto em 1875. E para Nina o sonho torna-se realidade quando o director da companhia - personagem interpretada com uma segurança impressionante pelo francês Vincent Cassel - a escolhe para encarnar o Cisne Negro. Mas entre lágrimas de alegria e uma incontida emoção que partilha de imediato com uma mãe, a sua, possessiva e super protectora, em Nina emergem os demónios que lhe infernizam a existência. Para piorar as coisas, a insegurança da bailarina aumenta com a chegada de Lilly [Milla Kunis], uma outra bailarina não tão perfeita em palco mas muito mais natural que Nina.
Tal como em «O Wrestler» [2008], o anterior filme do realizador Darren Aronofsky, «Cisne Negro» centra-se na sua personagem principal para exercitar uma inquietante viagem aos mais recônditos lugares do subconsciente. Mas, neste caso, com uma importante e decisiva diferença na personagem brilhantemente interpretada por Natalie Portman: enquanto Mickey Rourke pagava pelas suas escolhas erradas mas conscientes, Portman afunda-se na sua obsessão que de tão fulcral na sua vida acaba por se transformar numa grave doença psicológica. E é a partir desta premissa que o filme se agiganta nas alucinações de Nina, na confusão em que se tornam os seus dias e no seu sofrimento interior e, já agora, por que não dizê-lo, na empatia que a sua personagem cria com o espectador.
Mas se é verdade que a interpretação da belíssima Natalie Portman é magistral, também não é mentira se disser que o filme é muito mais que o trabalho da actriz. A sequência final do bailado, por exemplo, é um dos mais marcantes momentos de cinema dos últimos tempos; e a fuga aos clichés a que está associado o mundo das artes, muito bem representada através da personagem de Cassel, são trunfos de um cinema de abordagem clássica mas muito sedutora. Um cinema que se alimenta nos momentos intrigantes em que leva o espectador a mergulhar e na consequente espiral de tensão que se vai adensando até culminar instantes antes do momento final do filme. E num filme, num drama psicológico, onde o ciúme, a inveja, a vida e a morte, o mal e o bem trilham caminhos paralelos, para o espectador Nina jamais pertencerá a nenhuma destas facetas saídas todas elas da própria natureza humana. Isto porque na sua dor, no seu querer, na sua beleza arrebatadora, Nina é sobretudo uma jovem mulher em sofrimento por quem o espectador do filme torce dada a sua evidente fragilidade.
No final, o que fica de tudo isto é um tremendo fascínio por um filme extraordinário e uma sentida admiração pelo trabalho de uma actriz. E isto por mais obscura que seja a história que nos é contada e angustiante o perfil psicológico da sua personagem principal. Imperdível.   

«Black Swan», de Darren Aronofsky, com Natalie Portman, Vincente Cassel, Mila Kunis e Winona Ryder