domingo, 27 de março de 2011

Anatomia de um filme




Ludivine Sagnier, aqui entre os lençóis foi um reluzente raio de sol sobre «Swimming Pool».

sexta-feira, 25 de março de 2011

A aventura dos livros

[Edward Hopper, 1963]





Chegava de mansinho, com um sorriso nos lábios que rapidamente dissimulava em tom severo. 'Menino, são horas de dormir; vamos, apaga a luz e fecha os olhos.' E eu, obedientemente, arrumava o livro que estava a ler na clandestinidade do meu quarto, desligava a luz fraca da lanterna e fechava os olhos. 'Não feches a porta, avó.' E ela não fechava. Voltava mais tarde para verificar se estava tudo bem, noite alongada até ao novo dia do ano a fazer-se anunciar no calendário ao bater das doze badaladas. Depois, andava suavemente corredor fora até se deitar na cama onde o meu avô há muito ressonava cansado do dia duro na quinta.

As noites de quarta-feira vivia-as eu em forte ansiedade. É que, às quintas-feiras, a Biblioteca Itinerante da Gulbenkian visitava a minha cidade lá bem no alto do sopapo de terra dominado pelo velho castelo resgatado aos mouros pelas tropas de D. Afonso Henriques. Assim que as aulas terminavam, corria esbaforido com receio de perder a hora. E invariavelmente escolhia os permitidos seis dos muitos livros criteriosamente arrumados em prateleiras numa carrinha cinzenta conduzida pelo afável Sr. Domingos. 'Despacha-te lá rapaz, que está na hora de ir; anda, anda, não és só tu a gostar de ler!' Num tumulto interior, sem soltar um pio, apressava-me a fazer o registo dos livros e corria de imediato para casa dos meus avós. Subia as escadas que davam para o sótão, abria uma janela envidraçada no lado do telhado a dar para uma enorme figueira, sentava-me numa velha poltrona que tinha pertencido ao pai do meu avô e ali ficava a devorar páginas e páginas de encantar até que a tarde arrefecia e as estrelas surgiam no céu já a escurecer.

Quando descia para jantar, caminhava vagarosamente por entre cheiros e cores de lugares longínquos e fascinantes. Deambulava por paisagens que me eram familiares mas onde jamais tinha posto os pés e errava perdido nas vidas apaixonantes de gentes de costumes estranhos, gente apaixonada ou a viver dramas irresolúveis, gente imaginada pelos escritores que eu invejava. Até que a voz melodiosa da minha avó terminava abruptamente com a minha vida de exilado noutros mundos. 'Come a sopa antes que arrefeça,' ordenava-me. 'Faz o que a avó diz, Joaquim!', acrescentava o meu avô com um timbre de voz ao qual era impossível não obedecer.

E os anos passaram na voracidade do tempo. Entretanto, cresci. As calças substituíram os calções, cresceram-me pêlos no rosto, conheci o sabor do amor, concluí os estudos, tornei-me homem. Antes, primeiro a minha avó e poucos anos mais tarde o meu avô, morreram. E o quarto das minhas leituras está agora vazio. Mas as recordações dos meus primeiros passos como leitor permanecem ainda bem vivas em mim. De tempos a tempos relembro a aventura que era a vida naquele tempo folheando no sótão das minhas memórias.





O sorriso

[Sienna Miller via E Deus Criou a Mulher]




Esta manhã desci a calçada junto ao hotel para aí uns cem metros até poder tomar um café numa pastelaria que raramente frequento. À entrada ajeitei a gravata olhando-me no vidro espelhado da porta. Vestira um fato azul-escuro, camisa de um azul bem claro e gravata bordeaux. Senti-me pouco confortável na roupa que escolhera e atribuí culpas à indiferença com que fizera a mala na véspera.  Pedi o café à empregada de balcão, que me pareceu nova no estabelecimento, e esta devolveu a minha saudação matinal com um sorriso mecânico. Tive consciência que terá sido para aí o sorriso número trinta e dois de um cardápio pessoal já muito desgastado. Ainda assim agradeci e devolvi-lhe o sorriso.

Era só isto.



quinta-feira, 24 de março de 2011

As regras do jogo



Comecei por acreditar nas causas dos outros. Mais tarde tornei-me um pouco rebelde motivado pela defesa dessas mesmas causas. Causas que foram perdendo força ao ritmo em que ia percebendo o seu lado menos interessante e pouco visível. Por essa altura, já eu era um rebelde sem causa. Depois inventei as minhas próprias causas e bati-me por elas que nem um perdido. Noutras alturas, em momentos de maior rebeldia, sentei-me um pouco e esperei que a turbulência passasse. Mas não há nada como a emoção de ir a jogo. Jogarei até ao meu último cêntimo.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Elizabeth Taylor




1932 - 2011

Casou oito vezes com sete homens, foi um ícone de Hollywood, protagonizou alguns dos grandes filmes da história do cinema, ganhou dois Óscares, personificava a beleza e o talento, defendeu causas, nunca se escondeu do amor, amou e foi amada, era uma mulher livre. Morreu aos 79 anos mas a sua memória permanecerá imortal, que descanse em paz.


domingo, 20 de março de 2011

Os Agentes do Destino





Por amor de uma mulher

Há uma vertente do cinema que visa quase exclusivamente o entretenimento do espectador, tornando os filmes em mera diversão. Infelizmente, os grandes estúdios têm inundado as salas com propostas perfeitamente ridículas que chegam a atentar a inteligência das pessoas. O cinema tornou-se uma indústria que na maioria das vezes faz tábua rasa da sua condição de arte, a 7ª. Ainda assim, por vezes chegam até nós filmes despretensiosos que para além de funcionarem como bom entretenimento conseguem ir muito para além disso. Ao visioná-los, o espectador diverte-se, emociona-se, sonha e pensa. E é isso mesmo aquilo que George Nolfi conseguiu ao adaptar para filme o conto «Adjustment Team», escrito por Philip K. Dick. «Os Agentes do Destino» é um thriller romântico de ficção científica que agrada bastante pese toda a carga de simbolismo religioso um tanto ou quanto desfasado dos nossos dias.
Antes de ir à trama, diga-se que Philip K. Dick escreveu, entre outras obras suas adaptadas ao cinema, esse memorável «Blade Runner» [Ridley Scott, 1982] e «Relatório Minoritário» [Steven Spielberg, 2002]. Quanto à história deste «Os Agentes do Destino», David [Matt Damon] é um jovem político de sucesso pese ter publicamente associada a si a imagem de um homem inconstante. Já Elise [fantástica e linda Emily Blunt] é uma bailarina simpática, de personalidade de uma leveza encantadora e mulher delicada que conhece David precisamente no dia em que este perde as eleições para o Senado. Para quem não acredita no amor à primeira vista, tem em «The Adjustment Bureau», no seu título original, a prova de que o clique imediato é bem possível. Ficamos também com a certeza, caso tivéssemos dúvidas a respeito, que o livre arbítrio não é uma benesse que cai dos céus mas sim um direito a ser exercido pelos homens e mulheres. Isto porque estava escrito que David e Elise não poderiam ficar juntos, mas o par amoroso não está pelos ajustes e vai lutar pelo seu amor.
Apesar da fragilidade do argumento - que ainda assim possui uma atmosfera de intemporalidade - e, provavelmente, de uma linguagem cinematográfica demasiadamente próxima dos códigos televisivos, o filme é aquilo que já se disse – emociona, faz sonhar e diverte – e possui como extras as interpretações de Matt Damon e Emily Blunt, ele bastante profissional num projecto não muito arrojado e ela numa actuação a dar para o celestial; eu, pelo menos, assim achei. Por outro lado, há toda uma equipa de secundários de luxo liderada por Anthony Mackie [«Estado de Guerra»], John Slattery [«Homem de Ferro 2»] e Terence Stamp [«Valquíria»]. E quando assim é, que mais se pode exigir de um filme que pelo seu lado apenas nos solicita simpatia e boa disposição?



[O bónus de «Os Agentes do Destino»: a lindíssima Emily Blunt como Elise]





«The Adjustment Bureau», de George Nolfi, com Matt Damon e Emily Blunt



sábado, 19 de março de 2011

A modelo fotográfico Iga A.

[Foto daqui.]



Gosto muito de a ver trabalhar.


sexta-feira, 18 de março de 2011

O génio do mestre

    
Eyes Wide Shut


      O Dr.Bill [Tom Cruise] segue incapaz de se deter na sua ânsia de transgressão. Acaba num enorme e sumptuoso palacete onde decorre uma cerimónia profana e os sacerdotes se mascaram procurando, talvez, esconder a sua vergonha. Tentam-se sensações limite quando tudo já não basta. Belas mulheres ostentando corpos causadores de desejo profundo  deambulam pelas salas num passo irrepreensivelmente elegante. Vem-nos à memória a "Vénus" de Botticelli. Nas cenas de orgia imaginamos um ritmado bailado clássico. A música divide-nos entre uma ópera clássica ou música de câmara de inspiração céltica. Tudo se assemelha a um grandioso espectáculo erudito e a senha que o Dr.Bill é obrigado a fornecer à segurança remete-nos para isso mesmo. Através de Fidelio, a única ópera composta por Beethoven. 

     Momentos de fulgor do mestre a que nos apetece simplesmente agradecer. Não apenas pelo desfilar de lindíssimas mulheres ou pelo rigor da encenação, mas sobretudo pelo excelente e inolvidável momento de cinema.


terça-feira, 15 de março de 2011

O Emprego do Tempo


[DVD]



Um homem refém de si mesmo 




      Era inevitável que o cinema se debruçasse sobre os contornos trágicos do tristemente célebre, em França, caso Romand. Curiosamente, estrearia primeiramente nas nossas salas uma abordagem cinematográfica do dramático acontecimento posterior a «O Emprego do Tempo». Nesse filme, com o título original de «L’Adversaire»(2002), Nicole Garcia seguiu com bastante fidelidade aquilo que o escritor Emmanuel Carrère descreveu em livro sobre o que realmente aconteceu. Lembre-se que depois de mentir durante quase vinte anos à sua família e amigos sobre um curso que nunca tirou e um emprego que nunca teve, um homem, justamente Jean-Claude Romand, esquivara-se à confissão da dolorosa verdade assassinando toda a sua família. Já neste filme, datado de 1999, o realizador Laurent Cantet interessa-se pelo ocorrido apenas como meio de inspiração para a reflexão. E se bem que a importância do núcleo familiar se mantém intacta no seu filme, Cantet estende essa influência à relação do seu protagonista com o mundo do trabalho. Ou não tivesse sido já essa a principal preocupação presente na sua anterior obra sugestivamente intitulada «Recursos Humanos». Como curiosidade, refira-se que sendo essa a sua primeira longa-metragem, Cantet ganharia com o filme o César do cinema francês destinado a premiar uma primeira obra.
     
     Realce-se desde logo a importância do factor psicológico como elemento catalisador da acção ao longo do filme. Porque quando existe uma consciência, a mentira torna-se um fardo demasiado pesado de suster e a perturbação pode tomar conta de quem reiteradamente vive sob os seus desígnios. Se não, repare-se: quando Vincent (Aurélien Recoing) perde o seu emprego, não tem coragem para revelar o facto à sua família. Instado a explicar-se sobre pequenos pormenores acerca de uma hipotética mudança de emprego, que representava um salto qualitativo na sua carreira profissional, Vincent vai-se atolando cada vez mais no equívoco que criara. Durante meses ele é o executivo que às semanas se ausenta para o seu trabalho numa repartição da ONU, em Genebra. Mas, na verdade, mais não faz que confundir-se com quem efectivamente lá trabalha, conduzir sem rumo definido durante longas horas, passar o tempo em áreas de serviço e parques de estacionamento, desaparecer por dentro de florestas e montanhas. Os esquemas a que se obriga para fazer face às obrigações financeiras de pai de família levam-no ainda a trair e a fazer parte de esquemas de corrupção e marginalidade, adensando-lhe a angústia em que cada vez mais se enterra.
     
      Há, desse modo, uma clara vertente psicológica a nortear o criterioso argumento do filme. E isso sucede desde o primeiro minuto, já que Vincent perde o seu emprego porque tem para com os seus deveres profissionais uma relação desencantada, de parcos estímulos, quase como se o constrangimento de ter de fazer o que o não realiza ou estimula se torne num calvário renovado a cada novo dia. E isso leva-o ao absentismo e à recusa, que por sua vez o conduz ao desemprego. Mas a cobardia de Vincent, que a câmara de Cantet não esconde mas também nunca faz questão de evidenciar – pelo menos de modo acusatório, leva-o a mentir. E é pelo repetido acumular dessa mentira que a sua vida se torna num insustentável fardo. E Vincent acaba refém de si mesmo preso na teia que a sua própria debilidade tece.
       E no filme a tensão adensa-se na conjugação de tempos e espaços que a realização manipula exemplarmente. Os dias passados na estrada conduzindo sem destino, o contínuo adormecer dentro da viatura e o amanhecer esperando apenas que a noite chegue novamente são elementos filmados com um domínio perfeito de métodos e técnicas. Por outro lado, a aposta em Aurélien Recoing, um actor normalmente distante deste universo dos filmes, revelou-se acertada. Porque o perfil do actor, ou do homem por detrás dessa capa, parece confundir-se com cada uma das facetas que a sua personagem vai adoptando ao longo da história na tentativa de se imiscuir discretamente num universo que não é o seu. E se em «L’Adversaire» Nicole Garcia não fugiu nunca da verdade dos factos e, mesmo sem acusar, expôs o lado hediondo dos actos praticados, em «L’Emploi du Temps» Laurent Cantet preferiu reflectir sobre as motivações psicológicas de um homem vítima das suas próprias características de personalidade. E para aqueles que se preocupam ou gostam de se confrontar com histórias da vida em que a alma humana sucumbe de forma trágica às obrigações sociais, este é um filme a não perder. Até porque o homem permanece como o ser mais enigmático e imprevisível à face da terra.


«L’Emploi du Temps» [DVD], de Laurent Cantet, com Aurélien Recoing

segunda-feira, 14 de março de 2011

Bancarrota

[Pedro Passos Coelho e José Sócrates - Foto Expresso online]



Estão simultaneamente longe e perto um do outro. Na força de um sonho, de um projecto político, sabem que não existe espaço para se darem as mãos, para se unirem na sua paixão pelo poder. Entretanto, no meio de todas as exigências dos círculos em que se movem e das cautelas conspirativas próprias do jogo político, guardam o espaço e o tempo necessários para viverem a chama que os une. E o país lá vai permanecendo suspenso pelos maus presságios que a realidade lhe transmite. Até à bancarrota?



A realidade a copiar a ficção?






«[…]No termo deste encontro esgotante, Kichizo deixar-se-á estrangular pela sua companheira que o castra num gesto último de mortificação.»

Excerto da sinopse de «O Império dos Sentidos», de Nagisa Oshima, Japão, 1976, in «Os Filmes Chave do Cinema», de Claude Beylie


Pensar em viver ou viver a pensar?

[Large Interior, 1983 - Lucian Freud]





Por vezes deparo-me com alguns pensamentos vindos de jovens com idades por volta dos vinte anos e menos que me assustam também pela profundidade mas sobretudo pela sua temática. Não que não ache capaz da filosofia mais intensa uma pessoa ainda tão jovem, pelo contrário. Mas sim porque entendo que há determinado tipo de constatações sobre o quotidiano, sobre a vida, que só deveriam merecer a nossa preocupação lá mais para a frente no nosso percurso por cá. E não se trata de pertencer a uma geração rasca, à rasca, ou, característica tão portuguesa, do desenrasca. Trata-se apenas de achar que a vida deveria ser permitida a cada ser humano segundo o estágio em que se encontra da mesma. Até porque há determinados assuntos políticos e até pessoais que vistos um dia mais tarde não chegarão a passar de meras minudências.

Sem palavras...

[Fonte: Público online]

segunda-feira, 7 de março de 2011

Um Funeral à Chuva





SS*

Este fim-de-semana resolvi descobrir igualmente «Um Funeral à Chuva», de Telmo Martins, fenómeno recente no panorama cinematográfico português. A sinopse conta-se facilmente e faz lembrar tão levemente quanto a queda aparatosa de um elefante esse filme mítico que dá pelo nome de «Os Amigos de Alex» [1983], de Lawrence Kasdan. Mas do pormenor não vem mal ao mundo assim como a trivialidade das conversas entre os sete antigos colegas de universidade que se reencontram para o funeral de um deles que morreu prematuramente e daí resolverem fazer um rescaldo das suas vidas e retomar a ligação e amizade entretanto perdidas assim como o ‘dèja vu’ das situações em que incorrem. Não, não viria mal ao mundo se Telmo Martins and friends conseguissem tornar o seu projecto recheado de nobres intenções, reconheça-se, num filme agradável. E já agora, que isto de pedir não custa, com uma narrativa fluida uma vez que a complexidade existencial se afoga rapidamente numas quantas cervejas acompanhadas de um charro aqui e outro acolá.
Mas se há filme em que seria de todo agradável tecer os mais rasgados elogios, seria este «Um Funeral à Chuva». Porque não teve subsídios e, a acreditar nos próprios, nem custos para a produção que conseguiu alavancar-se no apoio de diversas empresas e entidades. Mas também, ‘last but not least’, porque o filme tem as pernas da actriz Sandra Santos. Umas pernas lindas que a câmara de Telmo Martins capta avidamente desde o tornozelo até aos minúsculos calções que a sua personagem usa durante quase todo o filme. Um filme que tem duas horas e dez minutos de duração, diga-se. Por outro lado, há ainda a Covilhã e a Serra da Estrela, a nostalgia da universidade, das praxes académicas e das bebedeiras. Mas, confesso, as pernas da Sandra Santos filmadas por Telmo Martins ficaram-me na retina e são do mais memorável que o cinema português do género nos ofereceu até hoje. E agora que as temos esqueça-se as mamas da Rita Pereira nos Emmys ou as ditas da Cláudia Vieira em «O Contrato» [2009], de Nicolau Breyner. Mas, facto penoso neste caso, um filme não pode ser só pernas e as mulheres são muito mais que pernas e mamas. No cinema como na vida. Nós, os homens, como bem diz o Vitor Norte em «O Contrato», é que ‘somos uns gajos do caralho’.

*Sandra Santos

«Um Funeral à Chuva», de Telmo Martins, com Sandra Santos, outros


Amores maiores que a vida: Modigliani e Jeanne

[Female Nude, 1916]





 Amar-te-ei assim, perdidamente...

Errante, exagerado, apaixonado, Amedeo Modigliani nasceu em 1888 e viveria apenas 35 anos. Italiano de nascimento, natural da cidade de Livorno, a sua pintura levá-lo-ia até Paris onde conheceu Jeanne, uma jovem – de 18 anos – estudante de arte. Jeanne seria o grande amor da vida de Modigliani, mas este, insatisfeito por natureza, capaz apenas da felicidade circunstancial, saltaria de cama em cama e de mulher em mulher deixando Jeanne [e o filho que nasceria do amor de ambos] entregue à sua própria fragilidade e a uma depressão que a consumia. Já perto da morte, o pintor expressionista voltaria para os braços de Jeanne morrendo pouco depois de tuberculose imerso no frio Inverno parisiense. E a jovem amante, que antecipara em desenho o seu próprio fim enquanto o homem da sua vida se esvaía em suores febris, grávida de nove meses acabou por ser recuperada para casa da família de onde, da janela de um 5º andar e de costas para a rua, se precipitou para a morte. Modigliani foi enterrado no cemitério de Père-Lachaise. Jeanne foi-o num outro cemitério perdido algures na cidade das luzes e somente nove anos depois se juntariam na campa de Père-Lachaise.

Crazy Heart




Um homem singular

Tenho ouvido e lido muito boa gente desabafar que escreve bem melhor quando está triste. A confissão não me é estranha e a resposta é-nos dada por «Crazy Heart» [2009], o filme que permitiu a Jeff Bridges arrebatar o Óscar de melhor actor em 2010. De facto, tal como nos sussurram os sons da música country, pedra basilar da cultura popular norte-americana, não tenho dúvidas de que quanto mais amarga é a vida, mais doce é a canção.
Quer na sala grande do cinema ou no leitor de DVD cá de casa, vejo vários filmes por semana. Mas quis o destino que só agora, confrontado com a foto do rosto sofrido de Bridges [depositada num escaparate da secção de DVD’s de uma conhecida loja de livros e filmes] de queixo um pouco acima da viola que toca enquanto supostamente entoa  uma canção, resolvi que era chegado o momento de perceber por que razão Colin Firth lhe vira ser retirado o Óscar pela sua interpretação exímia em «Um Homem Singular». Firth,  também ele devastado por um grande amor perdido algures nas mais inesperadas casualidades da vida. E em boa hora o fiz, porque «Crazy Heart» é cinema sem artifícios, é a ficção a sobrepor-se à realidade, é autenticidade, é sensibilidade e intimismo.
«Crazy Heart» é ainda a história de um homem, de um músico, perdido na incapacidade de olhar para trás. E de ao olhar o homem glorioso que foi, seguir em frente sabendo que há sempre algo de valoroso para desfrutar e dar aos outros pese ter-se perdido algo num percurso de vida por vezes sinuoso. Mas, entre a areia dos quilómetros e quilómetros de deserto que atravessa diariamente para actuar em bares manhosos e submerso pelo torpor do álcool com que vai enganando a sua dor, a vida dá nova oportunidade a Bad Blake [Jeff Bridges]. Essa oportunidade surge através do amor correspondido por Jean [Maggie Gyllenhall], uma mãe solteira muito mais jovem que ele. Como seria de esperar, porque quando a ficção é boa resulta no espelho fiel da realidade, Bad Blake deixa escapar aquele que se percebe ser o grande amor da sua vida e quando faz aquilo que deveria ter feito desde logo é já demasiado tarde para ambos.
Pobres os espíritos de quem decidiu enviar directamente para DVD este filme tocante sobre a fragilidade do indivíduo. Uma debilidade que surge da insatisfação de que é feita a sua própria massa, da incapacidade para em determinado momento perceber qual é o caminho a seguir. E Jeff Bridges foi exemplar na corporização de um homem com estas características especiais, de alguém que caminha sempre em desequilíbrio tanto podendo a qualquer momento subir aos céus, às estrelas, como estatelar-se no solo, descer ao inferno. Dir-se-ia que «Crazy Heart» nasce de uma história já vista, pouco original. Eu diria que nasce de nós, do ser humano imperfeito que somos. E diria também que, em «Crazy Heart», Jeff Bridges é… um homem singular.

Crazy Heart», de Scott Cooper, com Jeff Bridges, Maggie Gyllenhaal, Robert Duvall e Colin Farrell

terça-feira, 1 de março de 2011

A Náusea







Descontente com a vida, solitário e desenraizado, homem fisicamente feio e perdido no que considera o absurdo da existência, desgastado pela dúvida e pela consciência de si, historiador e biógrafo, assim descreve Jean-Paul Sartre a personagem principal do seu livro «A Náusea» (1938). Embora experimente alguma relutância ao confessá-lo, admito ter dias em que me sinto precisamente como Antoine Roquentin, o menino de que aqui se fala.

Memória





Timothy Ryback deu uma entrevista ao jornal Público sobre o seu livro «A Biblioteca Privada de Hitler» e, entre outras coisas, diz que ‘a civilização ocidental está assente na noção de que a leitura, a educação, a literatura, nos dão mais conhecimento e fazem do mundo um sítio melhor. E com Adolf Hitler acontece exactamente o contrário. Este homem usou a literatura, usou a história, usou a filosofia para inspirar algumas das mais horríveis acções já cometidas por seres humanos’. Para concluir declara suspeitar que ‘Hitler não era a única pessoa má com uma biblioteca.’
Pois é, mas eu não suspeito, tenho a certeza. E alguns deles têm até um aspecto tão descontraído e sorridente que metem medo. Tal como é assustadora a frase promocional retirada do Washington Post e que a capa do livro exibe orgulhosamente dizendo que este é ‘Absolutamente cativante… fascinante e perturbador’. É que nada do que diga respeito ao energúmeno que foi Hitler pode assemelhar-se às emoções referidas como cativantes ou fascinantes. E falar deste homem serve apenas como pretexto para que não deixemos que a memória possa alguma vez ser apagada.