terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Instantâneos, Quatro - Viver



É tão bom sentir que somos parte integrante e activa desta vida a fervilhar.

Instantâneos, Três - Domingo

No Domingo vai casar-se um rapaz. É de boas famílias, tirou o curso de Engenheiro Técnico, já trabalha, a noiva pesa 57 quilos, tem cabelos pretos e carta de condução categoria B. Não lembro o nome do pai dela, a mãe dele é Justina, a mãe dela cabeleireira e esteticista, o futuro sogro dela é agente de seguros, está estabelecido por conta própria, tem somente uma hipoteca sobre o edifício onde montou escritório. Para o casamento convidaram 43 pessoas mas há um casal, que mora em Borba, que não pode vir porque o marido é bombeiro e está de serviço e a mulher é costureira e tem uma encomenda de cortinados para concluir antes do fim-de-semana terminar. A rapariga vai de branco, ele de preto e laço cinzento na camisa branca. Os pais de ambos sentem-se muito felizes e anseiam por netos.

Instantâneos, Dois - Hoje

Hoje alguém me disse que se fosse um filme seria «Disponível Para Amar», ou, no título em inglês, «In The Mood For Love». Hoje vesti um fato cinzento claro, uma camisa azul, uma gravata bordeaux, uns sapatos e um cinto pretos, almocei numa área de serviço de auto-estrada um panado a saber a couro velho e um sumo natural de laranja, paguei nove euros, senti-me pouco à vontade no fato que vesti, fiz duas centenas de quilómetros de automóvel e não recordo a paisagem. Hoje se eu fosse um filme seria «Eyes Wide Shut», ou, no título português, «De Olhos Bem Fechados».

Instantâneos, Um - Ontem



Ontem o frio não diminuiu de intensidade mas o David esteve melhor da asma. Nos jornais as presidenciais perderam importância e já não se falou tanto na crise provocada pela neve nos aeroportos. Um BMW série 5 leva 80 euros de gasóleo e os bilhetes dos transportes públicos vão aumentar. O João foi ao hospital para visitar um tio e deparou com ele embrulhado num lençol, telefonou para a família e deu-se início aos preparativos para o funeral. Antes tinha que se realizar a autópsia e o ar condicionado na sala de espera do hospital estava avariado. No Pacífico um explorador do fundo dos mares voltou à superfície atulhado de riquezas, sofreu uma arritmia cardíaca forte e porque não conseguiu rapidamente transporte para a clínica mais próxima morreu da espera.


segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O amor, por Minnelli







Em 1958 Vincente Minnelli realizou o filme «Deus Sabe Quanto Amei», com Frank Sinatra e Shirley McLaine nos principais papéis. A dada altura, Dave, a personagem corporizada por Sinatra, lê um livro a Ginny (Shirley MCLaine) mas acaba por se sentir incomodado com a incapacidade desta em perceber a história. No entanto, Ginny desarma-o respondendo-lhe na sua enternecedora sinceridade :



'Não, não percebi nada do livro, mas gostei. Também não te percebo e gosto tanto de ti.'



Sempre achei esta frase formidável. Não apenas pela honestidade intelectual e afectiva de alguém como pelo efeito que este comportamento aparentemente simples mas tão revelador de si tem no outro. No fundo, aqui se prova que existe no ser humano uma eterna sedução pelo insondável e pelos pequenos e grandes mistérios da personalidade que fazem cada um de nós tornar-se mais ou menos cativante segundo o olhar de quem nos observa. E não existe nenhum outro jogo de sedução tão eficaz como este em que nos expomos ao outro com espontaneidade e sem artifícios. E é esta extrema capacidade para filmar a mais pura e recôndita essência humana que fez do filme de Minnelli uma obra intemporal.

Culpa








Tem dias em que me sinto uma personagem de um livro de Dostoievski. Se repararmos bem quase todas as suas personagens vivem cravejadas de defeitos. Entre outras inenarráveis categorias, ora são bêbados relaxados, malvados compulsivos ou deploráveis sovinas. Enfim, malandragem sem emenda. Está certo que bebo álcool muito esporadicamente e quase sempre com moderação, que procuro ser correcto com os outros e tenho uma péssima relação com o dinheiro já que nunca é de longa duração. Mas tal como as personagens do escritor russo, cuja humanidade leva à expiação voluntária dos seus pecados, sempre que algo de errado acontece entre mim e outra pessoa tenho a invariável tendência de achar que eu é que fiz algo de mal.



quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Ausência


 

[Não me vês, 2003 - Dário Alves]




 
Estamos tão pouco presentes na vida de algumas pessoas que dificilmente elas notam a nossa ausência. E no entanto nós sabemo-nos ausentes porque gostamos da sua presença.




 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Lost in Translation - O Amor é um Lugar Estranho




[Scarlett Johansson em «Lost in Translation - O Amor é um Lugar Estranho»]
 
 
 
 



 
«Lost in Translation – O Amor é um Lugar Estranho» é um filme de amor. Sim, de amizade e ternura também, claro, mas é sobretudo o amor o sentimento que mais transparece do filme de Sofia Coppola. No entanto, há uma tristeza infinita nesse amor, uma melancolia que permite que o nosso fascínio pelo filme aumente a cada minuto que passa e cresça ainda em nós já depois do final da fita. Talvez porque aquele amor não se tenha concretizado, talvez porque dele saibamos apenas que nada mais restará para além da saudade, das memórias de uma semana marcante passada na cidade de Tóquio. Talvez ainda porque aquele era um amor só possível nas circunstâncias com que a extrema sensibilidade de Sofia Coppola no-lo apresentou. Não, o sentimento nascido entre Bob e Charlotte não permitia que as duas personagens recomeçassem as suas vidas com ele. As vidas de ambos só poderiam continuar depois de, isto é, para além daqueles momentos fugazes mas intensos. E daí a sensação de nostalgia e dor com que ficamos quando Bob segreda ternamente a Charlotte algo que não nos é permitido ouvir. E Charlotte chora. Nesse momento, estamos a olhar aquele par no presente mas sabemos que é já o passado que vislumbramos. Charlotte chora então de saudade. Para aqueles dois não havia futuro em conjunto e é através do conhecimento dessa realidade que sentimos um maior magnetismo pelo filme. Porquê? É impossível sabê-lo. Simplesmente porque continua a ser uma das tarefas mais delicadas a de tentar perceber a alma humana.





 

domingo, 19 de dezembro de 2010

Publicidade enganosa



Como habitualmente, a senhora dá-me o jornal e eu coloco-lhe na mão a moeda de um euro que corresponde ao pagamento. Senhora de si, já avó, simpática, bem disposta, sabe do meu gosto por filmes e informa-me que no dia anterior por apenas mais um euro podia ter levado também um DVD de um clássico do cinema. E sorri. Não lhe digo que já tenho em casa o DVD em questão, faço um compasso de espera enquanto processo dados na busca de uma resposta amável. Saiu-me apenas um ‘foi burrice minha’. ‘Ah, mas o senhor até tem ar de ser uma pessoa inteligente’. Devolvi-lhe o sorriso. Talvez fosse caso para ficar feliz com a apreciação. Mas não, se há coisa de que eu sempre senti repulsa foi de publicidade enganosa. E se, de facto, a senhora tem razão e eu aparento inteligência é puro equívoco e trata-se de um evidente caso de publicidade enganosa.


 

Eis o ser humano




Eva Mendes, ela que a cada dia se torna um ser humano cada vez mais apurado. Nestes casos, e só nestes casos, sou um seguidor das teorias do Anatole.
 
 

O repouso da espécie



 

Um ser humano Anatoliano repousa sob a arrebatada sensibilidade do olhar de Michel Feugeas, autor do eloquente instantâneo sobre a espécie.


As teorias de Anatole

«É preciso ser sensual para ser-se humano.»



Anatole France

A aprendizagem

["Empress Wu", ilustração de George Barr]



 
Conheço-os a ambos. Ele é um homem de quase quarenta anos, aparência de rapaz e uma quase inacreditável ingenuidade. Ela é uma mulher um pouco mais jovem, e jovial, linda, sorridente, sedutora. Quando ela chega o homem-rapaz parece renascer da melancolia com que se dirige para a passadeira ou para o tapete dos abdominais. Ela fala-lhe sorridente, coloca-se a seu lado e deixa que ele continue a apaixonar-se por ela sabendo que nunca o irá amar ou sequer deixar que a relação entre ambos ultrapasse a zona das máquinas ou até o estúdio de Power Jump. Acredito que ela goste dele mas não do modo que ele desejaria. Às vezes passo pelos dois e dou por mim a desejar que ela não gostasse daquele homem bom como gosta já que acabará por fazê-lo sofrer. Mas os homens também saem reforçados nas derrotas. Mesmo naquelas que foram desde logo anunciadas.

 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

A vida dos livros

[Nina Lund]



Confesso que deste livro já não me vêm à memória nem título nem autor. Mas recordo-me bem da história de amor que se desenvolvia numa intensidade por vezes cortante. E entre sentidas palavras de amor acompanhadas de gestos de carinho e querer, dos corpos unidos pela paixão e pelo desejo, havia risos e também lágrimas. E ausências difíceis de suportar. Apesar de tudo, e talvez por esse mesmo motivo recorde aqui uma obra já distante, por cada acontecimento que levou a que um dia a ilusão terminasse sem que tivesse morrido nos dois amantes, senti sempre que o autor proclamava a inocência do ser humano quando apanhado por um sentimento voraz que não se planeia mas ao qual se sucumbe. Também já não lembro muito bem em que condições aquela relação apaixonada terminou. Mas na literatura como na vida, creio que a mulher (neste caso a mulher) trocou a paixão louca e avassaladora por uma vida mais lúcida e realista. Enfim, uma obra que no seu final talvez faça apenas o relato de mais um combate perdido pelo amor.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Histórias de longe mas tão afectivamente próximas

 
 
 
"Tenho de ir aos arredores! À beira do rio onde o meu avô me levava... para pescar? Lembro-me, o meu avô tinha-me levado à beira de um rio, se tínhamos apanhado algum peixe, já não sei, mas lembro-me, tinha um avô, tive uma infância."



in «Uma Cana de Pesca Para o Meu Avô», de Gao Xingjian

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Não estamos sós


[Nicole Kidman em «Os Outros», de Alejandro Amènabar; 'eles' existem e andam algures por aí...]







O meu Avô Anastácio, com o seu cabelo curto e impecavelmente penteado a fazer lembrar um oficial da marinha inglesa, sentava-me no seu colo era eu garoto e dizia-me qualquer coisa ininteligível para mim à altura como:

– As referências, menino, as referências, nunca as percas!

E depois dava mais uma baforada nos cigarros sem filtro que adorava fumar e ele mesmo fazia, virava o olhar para o horizonte sem que se lhe percebesse qualquer referência física onde me pudesse orientar, e ficava assim durante largos minutos sem sequer se lembrar da minha leve existência sobre as suas pernas ossudas.

Um dia, era eu ainda um miúdo, no regresso de uma pescaria à cana no Rio Tejo, noite escura já alongada sobre os campos em redor, eu e o João optámos pelo caminho mais curto de regresso a nossas casas e que se fazia ao longo da linha da Beira-baixa. Esta era, à partida, uma decisão cómoda caso não existisse por ali, a uns bons 500 metros para sul no nosso caminho de volta,  um dos cemitérios da região. Amedrontados mas de peito cheio que dos fracos não reza a história, lá caminhámos contando toros de madeira via-férrea fora. Ia eu para aí nas 87 sulipas em que naqueles tempos assentavam os carris, quando avistei o vulto. Era enorme, tão negro que mal se distinguia na noite escura, e, coisa difícil para um humano vulgar, de pernas muito abertas suportava o corpo nos pés assentes em ambos os carris da linha. O cenário piorava porque ali mesmo ao lado viam-se bem brancas no negrume da noite as paredes que delimitavam o local onde se multiplicavam os sepulcros. O tal cemitério. Lembro-me que o João olhava para mim aterrado, eu olhava para ele não menos atemorizado e… nada. Não sabíamos que atitude tomar. Ficar ali, tentar o recuo perante o assustador inimigo!? Finalmente, e sem movermos um músculo do rosto para pronunciarmos o que quer que fosse, corremos na direcção de uma casa abastada que sabíamos existir algures. Neste entretanto, a coisa foi-se tal como chegou. Sem avisar, sem se perceber de onde veio e muito menos para onde voltou.

Volto eu agora às referências do meu avô Anastácio, ele que foi uma referência para mim. Morreu anos atrás e nunca cheguei a contar-lhe este incidente. Por um lado com receio de não ser levado a sério mas também porque usara emprestada sem seu conhecimento a cana de pesca que ele mais gostava. Hoje pergunto-me como teria ele agido perante uma situação como a descrita. Quero acreditar que se dirigiria até junto do vulto não identificado, se apresentaria educadamente à figura e, sem pejo algum, oferecer-se-ia para lhe fazer um dos seus cigarros antes de se sentarem os dois nos carris a fumar sossegadamente e a comentar como as águas do rio, de tão calmas, andavam bem más para a pesca à vara solta. Como afinal ele tanto apreciava.



quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Noites longas



[Hotel Lobby,1943 - Edward Hopper]






Gosto de hotéis.

Gosto do momento de chegar e de olhar a azáfama dos restantes hóspedes a entrar e sair, aprecio a amabilidade com que sou recebido pelos funcionários da recepção. Sorriem-me, fazem-me sentir bem, ajudam a que me sinta à vontade num local que não é naturalmente de paragem no meu dia-a-dia. Gosto, sobretudo, quando me desloco em trabalho, dos hotéis de cidade. E ainda mais durante o Inverno. Chego, tomo um duche, saio para jantar e, se não tenho companhia, regresso rapidamente e deito-me a folhear o jornal, um livro, a saltitar com o comando do televisor de canal em canal ou, quando estou predisposto a isso, ligo o portátil, visito-vos, escrevo um pouco ou simplesmente navego de sítio em sítio sem destino pré-definido.

Mas é depois de todo esse ritual que aprecio ainda mais os hotéis. Sobretudo os de cidade. É quando chega a hora de dormir e o sono não chega. Nesses momentos, é reconfortante ter à mão o serviço de quartos sempre disponível com tudo aquilo que vulgarmente não temos em casa e que os hotéis têm. E mesmo que cheguemos à porta do quarto para a abrir quando nos vêm servir o que encomendámos, estejamos ou não despenteados, olhar estremunhado e modos a denotarem enfado, lá estão invariavelmente o mesmo sorriso, a mesma simpatia, a eterna boa disposição. Gosto de hotéis. E, em trabalho, gosto sobretudo de hotéis de cidade.

O sono que se espera, desespera e não chega, o afastar dos lençóis e as passadas lentas até à janela para uma mirada sobre as luzes da cidade. A memória de mim, a memória de ti, disto, daquilo, de aqui e de além, os olhos abertos na insónia que se sofre e não deseja.
Nunca se deseja uma insónia. Mas é nos hotéis de cidade, e em pleno Inverno, que melhor se suportam.

Lembro-me da última que tive. De cada detalhe, de cada movimento na noite. Recordo-me também como e de onde chegou e, até, quanto tempo durou. Durou até que fechei os olhos sem me dar conta e só os ter aberto já de manhã ao som irritante do toque do despertador do telemóvel. Mas lembrava tudo na noite de insónia. Lembrava o vento lá fora a abanar furiosamente os ramos das árvores na avenida, as sombras ondulantes nos passeios desertos onde apenas alguns filhos da noite, desavisados, se protegiam como podiam das bátegas fortes que encharcavam as ruas. E olhei, olhava-os, à espera, apenas à espera. E nem quando já tarde finalmente me deitei, me senti só e errante na cidade adormecida.

Gosto de hotéis. Quando viajo em trabalho, prefiro os de cidade. E se estiver uma noite tempestuosa, tanto melhor. A chuva, o vento e as sombras frenéticas distraem-nos nas noites de insónia. E recordo-me de ti, de mim, daqui e de além.

Mulheres

 [Violante Placido, estrela reluzente no filme «O Americano» , de Anton Corbijn]




«A minha vida torna-se cheia com pequenos grãos que me vão saciando a vontade e o sonho. Um dia vou conseguir tornar a minha utopia real. Passo a passo. Beijo grande.»



Eu sei que sim. Sempre soube. Um beijo.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Cela 211







Marcado para morrer


Juan Oliver [Alberto Ammann] é um cidadão comum que parece levar uma vida controlada e feliz. A sua mulher está grávida, o casal vive um invejável idílio amoroso e o jovem tem um novo emprego indo ocupar um lugar de guarda prisional na cidade onde ambos vivem. Contudo, a vida, essa mesma vida que julgamos poder controlar sem interferência alheia, nem sempre decorre como a programamos e, por vezes, as situações mais dramáticas ocorrem de forma totalmente imprevisível. E sem que as possamos tomar nas nossas mãos, tornamo-nos em algo próximo de meras vítimas do acaso. É, pelo menos, esta a premissa de «Cela 211», filme espanhol realizado por Daniel Monzón, que se aventurou num género – o drama prisional – sem os meios dos grandes estúdios mas com a capacidade de criar uma espiral de tensão que apenas vai culminar com o despoletar da tragédia.

«Cela 211» é cinema denúncia, claramente. Mas é sobretudo um filme duro e dramático sobre a realidade da vida nas prisões onde o mais abominável criminoso mostra poder reger-se por um código de honra capaz de envergonhar muitos daqueles que detém o poder. Sobretudo quando quem ‘manda’ trata de querer esconder da opinião pública os podres de um sistema que vive à base de esquemas e troca de favores não havendo, nestes casos, inocentes entre os envolvidos. Todos são culpados, seja por acção ou simples omissão. E se Juan Oliver é o protagonista desta história por tudo o que lhe acontece e por estar no centro das más decisões de colegas, negociadores sem honra e políticos sem escrúpulos, acaba por ver em Malamadre [numa impressionante interpretação de Luís Tosar] a personagem que lhe rouba quase todos os créditos na composição de um condenado tão capaz da maior brutalidade como incapaz da mais pequena traição. Este líder de uma comunidade de reclusos, entre políticos, polícias e marginais acaba por se revelar como o mais coerente de todos os homens envolvidos no motim que ele mesmo comanda compondo uma personagem hipnótica e carismática. Quanto ao pobre Juan Oliver, acaba por se ver arrastado para os mais ferozes acontecimentos pela negligência de uns e ineficácia de outros.

Confesso que desde «Os Condenados de Shawshank» [1994], de Frank Darabont, não via um drama prisional tão intenso e dramático como «Cela 211» na sua assustadora proximidade com a realidade. E apesar dos já referidos poucos recursos de que Daniel Monzón dispôs, este não se coibiu de apresentar cenas de uma brutalidade sem limites filmando-as como inexcedível competência. E se a maior fraqueza deste filme está na escolha de Alberto Ammann para um papel – o de protagonista – que requeria outro tipo de atributos dramáticos, a verdade é que a sensação maior com que o filme atinge o espectador reside na amostragem da debilidade do ser humano perante acontecimentos tão contundentes como imprevisíveis. E tudo se agrava perante esses acontecimentos se alguém acaba por ter a infelicidade de se tornar num mero peão de um tabuleiro jogado por homens detentores do poder muito pouco preocupados com as vidas humanas em contraponto com a imagem que pretendem fazer passar para a opinião pública.

Em suma, «Cela 211», que também distingue o criminoso comum do criminoso que age em nome de ideais políticos [os presos da ETA, a organização separatista basca]  é um drama sólido e rigoroso que não deve deixar de ser visto por ninguém. Mas muito especialmente a não perder por quem gosta de cinema que se faz calçado em  botas de biqueira de aço.


«Celda 211», de Daniel Monzón, com Alberto Ammann e Luís Tozar



terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Oito anos







[A modelo fotográfico Iga A., presença assídua cá na casa; gosto muito de a ver trabalhar]





Ontem, manhã bem cedo, janela aberta a dar para um pequeno jardim onde imperam os vultos das árvores, senti nos meus ouvidos um inesperado sussurro da memória. Ao folhear um livro escrito pelo punho de John Steinbeck, quiçá em busca de inspiração para não necessitar decretar algum tempo de exílio do exercício da escrita, deparei com uma factura da FNAC do Colombo com a data de 30 de Julho de 2002. Oito anos atrás, portanto. O momento, provavelmente irrelevante em si no decurso da minha existência por cá, fez-me recordar-te, recordar-vos, lembrar quem passou pela minha vida, quem eu nunca mais vi, quem então fazia parte dela, quem foi fazendo, quem já não faz. Foi como se de repente sentisse a alma a acordar e a necessidade de reviver intimamente oito anos em que tanto aconteceu e perceber que valeu a pena, que vale a pena. E que a saudade não é somente um sentimento triste de perda ou sentimento de falta mas é também um sentir convicto de que nada acontece por acaso. E a verdade é que todas as pessoas que passaram pela minha vida, mesmo que nunca mais as tenha visto ou delas não tenha tido mais notícias, se mantém por cá, que possuem um lugar que é seu ainda que agora bem arrumadas em pequenos cantos da emoção e da razão. Da memória. Sim, a minha vida nunca parou, continuou, mas não vos esqueci, como nunca esquecerei, porque sem ti, sem ela, sem vocês, a minha existência empobreceria. E vulgarizava-se.

A factura, essa, tem o valor de 85.32 euros. Nove euros e noventa e cinco pela banda sonora de «In The Mood for Love», o espantoso filme de Wong Kar Wai muito antes de ter rumado à América para fazer «My Blueberry Nights – O Sabor do Amor», dezasseis euros e quarenta e nove por uma colectânea dos Doors à procura de «Light My Fire» e do talento desregrado e suicida de Jim Morrison, dezasseis euros e quarenta e quatro por «Blue Velvet» e pelo peculiar mundo de sedução de David Lynch, doze euros e noventa e cinco ainda por David Lynch em «O Homem Elefante» e, finalmente, o restante para o filme de um pequeno ‘robot’, qual Pinóquio pelo amor de pai, em busca do amor de mãe e de se tornar um menino de verdade em «A. I. Inteligência Artificial», de Steven Spielberg.


domingo, 5 de dezembro de 2010

Madrid, ponto de passagem

[Hotel Room, 1931 - Edward Hopper]



Estive de novo em Madrid. Madrid é uma cidade enorme rodeada de auto-estradas de circunvalação recheadas de tentáculos cujo negrume alcatroado a liga aos mais diferentes pontos da Espanha. Madrid não tem mar como outras grandes cidades mundiais, mas tem um enorme aeroporto internacional que a une às outras grandes urbes espanholas e ao mundo inteiro e é ainda ponto de partida e chegada para uma enorme rede de comboios de alta velocidade que percorre todo o país de Cervantes.

Atocha, La Castellana, Cibelles, Moncloa, Prado, são, entre tantas outras, marcas indissociáveis da cidade. Mas existe em Madrid um museu que também faz parte dos roteiros obrigatórios da cidade embora me pareça passar um pouco despercebido. É um espaço cultural que merece uma visita bem atenta às suas enormes galerias e dá pelo nome de Thyssen Bornemisza. Voltei lá nesta curta visita e pude observar expostas algumas das maiores expressões de criatividade da pintura mundial desde Degas a Miró, de Picasso a Monet, de Velásquez a Van Gogh e muitos outros grandes nomes da pintura mundial e suas várias tendências artísticas.
Apesar disso, há quadros que sabemos existirem no Thyssen Bornemisza mas cuja presença por lá continua a surpreender-nos quando nos deparamos com eles. Um é famosíssimo, pertence ao americano Edward Hopper, pintor por excelência da solidão urbana, e retrata uma mulher só num quarto de hotel, com as malas – supõe-se – ainda meio por desfazer (Hotel Room, 1931). Mas, ao mesmo tempo que me surpreendo com a visão do original da pintura por ali, fica a pairar em mim a forte sensação de que não haverá melhor quadro para descrever a impressão que me invade de cada vez que visito Madrid.

É que ao contrário de Paris, Roma ou Londres, exemplos não ao acaso de outras três grandes cidades europeias, em Madrid parece sentirmos sempre que estamos lá de passagem. E se em Paris, Londres ou Roma nos apetece desfazer as malas, ficar por ali, envolver-nos na multidão, tornarmo-nos um deles, em Madrid já não. A mala fica por desfazer e vamos usando o estritamente necessário da bagagem que nos acompanha por não conseguirmos esquecer que vamos – e queremos - partir. E mesmo de visita a um outro famoso museu, o Centro de Arte Rainha Dª Sofia, perante uma outra obra incontornável da cultura global, a Guernica, de Picasso, não conseguimos desenvencilhar-nos da sensação de solidão que nos transmite Madrid e que o quadro de Hopper tão bem expressa.

Afinal, talvez «Hotel Room» de Edward Hopper esteja no local certo: a imensa cidade de Madrid que nos envolve e impressiona na sua grandeza mas não nos conquista afectivamente. Falo por mim, claro.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Da justiça e do sistema judicial

 
 
'Não encontramos justiça no sistema judicial. Este limita-se a aplicar a lei.'


In «Reservation Road – Traídos Pelo Destino»

A homilia

[Folles Amours, montagem fotográfica de Lucien Clergue, o 'poeta da fotografia']






Em «A Dúvida» [filme de 2008], numa das suas fantásticas homilias o padre Flynn [Philip Seymour Hoffman] conta a história de uma mulher que tendo lançado um boato desprezível sobre alguém acaba por se arrepender e busca o perdão junto do padre seu confessor. O padre não lhe concede de imediato o perdão e instiga-a a subir ao telhado da casa onde habita com uma almofada de penas numa mão e uma faca na outra com o objectivo de rasgar o travesseiro ao vento. Quando a mulher regressa ao confessionário e lhe dá conta da missão cumprida, o padre não a perdoa desde logo optando por perguntar o que lhe restou do gesto. Uma imensidão de penas, responde-lhe pesarosamente a pecadora. E perante a nova missão de que o padre a encarrega, a de voltar ao local e apanhar todas as penas, a desconsolada mulher responde-lhe que isso é impraticável já que estas se espalharam de tal modo que não é de todo possível reverter o mal feito.
Hoje lembrei-me do padre Flynn e da sua homilia. Porque os fins não justificam os meios e a intolerância, a incapacidade de perdoar e, por que não dizê-lo, a maldade não podem nunca sobreviver a coberto da sensação de impunidade reinante numa sociedade que há muito perdeu a noção do bom senso.






O que ficou por dizer

[A actriz Rachel Weisz]




Foram muitas, tantas as noites em que um homem e uma mulher fizeram amor numa cama de quarto de hotel. Ela, silenciosa, deixava que as suas mãos lhe vincassem a pele com toda a força do prazer que experimentava no seu corpo encaixado no dele. O homem apercebia-se invariavelmente do momento em que o corpo dela estremecia de êxtase colado ao seu. Com desejo mas ainda mais ternura levava algum tempo até que fizesse resvalar o seu corpo trémulo imobilizando-se arfante ao lado do dela na cama de lençóis brancos e transpirados. Beijavam-se uma e outra vez sem que pronunciassem uma única palavra. Naqueles momentos as palavras eram-lhes dispensáveis, traiçoeiras. Talvez por isso lhes tenha ficado tanto por dizer.



terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Azinhaga de José Saramago





Estava uma tarde clara e fria como o são muitas tardes de Outono quando o meu carro contornou a rotunda que dá início à Azinhaga para quem vem do lado de Lisboa. Noto que dois rapazes guiam três ou quatro cabeças de gado pisando a erva e torneando arbustos até ladearem as estacas de uma vedação para animais. Sou natural do Ribatejo, mas, curiosamente, não me recordava de alguma vez ter estado na terra onde nasceu José Saramago. Deixo o carro seguir o percurso de alcatrão até ao que julgo ser o largo principal da povoação.
Sentado num banco de jardim, qual Pessoa no Largo do Chiado, vislumbro uma estátua de Saramago em plena leitura. Algumas pessoas ladeiam o monumento e pergunto onde é a Rua José Saramago. Silêncio total, trocam-se olhos inquisidores, ninguém me sabe responder. Agradeço e sigo o meu caminho, hesitante. Um jovem de pouco mais de vinte anos, livros debaixo de um dos braços, atravessa a rua um pouco mais à frente. Repito-lhe a pergunta anterior. Olha o vazio, parece puxar pela cabeça, pede-me desculpa, também não sabe. E a de Pilar del Rio, insisto. Pilar del Rio?, devolve-me a pergunta. Sim, confirmo eu, Pilar del Rio. Não, não sei. Ao fundo, uma mulher de meia idade fita-me tranquilamente com um sorriso a baloiçar-lhe nos lábios. Tente a zona nova, trezentos metros à esquerda, quase me gritou. Foi o que fiz.
E lá estavam.
Lá estavam a pequena biblioteca com o nome de José Saramago, a Rua Pilar del Rio de esquina com a Rua José Saramago. Tiro algumas fotos, entro um pouco no interior do edifício da biblioteca e, alguns minutos depois, percebo o alcance das palavras de José Saramago ao referir-se à passagem dos homens e mulheres por esta vida: num momento «está-se ali» e no outro «já não se está». E na Azinhaga, terra natal do único Nobel português da literatura, José Saramago já não está sem que provavelmente alguma vez tivesse estado. Isto, ainda que por lá se perpetue o seu nome em duas ou três homenagens simbólicas.
Já é quase noite quando regresso à estrada consciente da insignificância que o homem se atribui a si mesmo. Acabou-se para José Saramago, subiu à montanha mágica mas já não faz mais livros. Já não está ali. Mas tenho pena, eu que nunca fui seu fiel devoto.



segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Americano











A bela e o matador

Por mais que o neguemos, todos temos um estilo. Próprio ou emprestado de outros. E rapidamente se descobre o de Anton Corbijn, o holandês realizador de «O Americano»: as personagens enigmáticas  e distantes são o seu estilo. Foi assim com «Control», filme sobre Ian Curtis o misterioso músico da banda Joy Division, e repete-o agora com o indecifrável Jack [George Clooney], um assassino a soldo refugiado numa zona montanhosa de Itália. O filme adapta o livro «A Very Private Gentleman», de Martin Booth, e fica a meio caminho entre o ‘Thriller’ clássico e o ‘western’.
Longe de atingir a perfeição, «The American» usa e abusa do carisma de George Clooney para criar uma personagem elegante e sombria que jamais permite que se lhe chegue à alma e desconfiada até da sua própria sombra. Perseguido por uma espécie de máfia sueca, Jack percorre as montanhas do interior italiano num velho Fiat Tempra e divide o seu tempo entre a violência e o sexo. No final, através de Clara [Violante Placido], uma prostituta belíssima, Jack acabará por descobrir o amor e revelar uma humanidade que até então se lhe desconhecia. Como se de um ‘cowboy’ solitário se tratasse, Jack vagueará então entre o amor e a morte sem consciência da debilidade que acarreta a sua condição de homem a abater.
Pese toda a simpatia pelo George Clooney de «O Americano», a verdade é que o filme se perde em imagens formosas mas estáticas e nas personagens da trama que nada acrescentam à história não permitindo a reflexão sem que jamais causem qualquer emoção [o Padre Benedetto é disso flagrante exemplo]. E a prometida tensão  inicial vai-se a pouco e pouco desvanecendo numa obra de narrativa inexplicavelmente lenta e até um pouco pretensiosa. E mesmo o final  a sugerir algum vazio melancólico deixa um sabor a uma certa frustração por se ver esfumar ali mesmo defronte dos nossos olhos a salvação de um homem e o sonho de uma mulher. Mas, de facto, o que acontece é o triunfo do simbolismo sobre os devaneios quiméricos do homem tão presentes nas chamadas obras de autor. Mas nem Corbijn será um autor no sentido que aqui se quer dar ao termo nem a bela e sensual Clara merecia tamanha traição da vida. Uma lástima.

«O Americano», de Anton Corbijn, com George Clooney e Violante Placido


domingo, 28 de novembro de 2010

Auto-estrada 5


[Imagem da autoria de Lilya Corneli]





Costumo encontrá-la todos os dias, logo pela manhã, entre uma torrada e um daqueles sumos condensados ricos em calorias. Estaciona o Peugeot 307 azul escuro, matrícula de 2006, no parque de estacionamento da área de serviço de Oeiras. E sai lentamente, vagarosamente, de dentro do carro percorrendo a pequena distância até ao snack-bar sem nunca tirar os olhos do piso adornado de inúmeras rachas no betão desgastado pela passagem do tempo e das pessoas e carros. Aparenta pouco mais de 30 anos mas carrega no olhar o peso de uma vida a valer o dobro da idade que se lhe percebe. Ontem percebia-se-lhe também um corpo esbelto por debaixo da gabardina clara com que se protegia do frio e da chuva. Os homens não conseguem deixar de reparar nestas coisas numa mulher, é algo que lhes é superior. Pese tamanha melancolia e desapego do que a rodeia, a minha curiosidade aumenta a cada dia ao reparar que os traços finos do rosto, a boca perfeita e a pele suave indiciam que procura disfarçar uma beleza capaz de fazer deter nela o olhar daqueles que se cruzam no seu caminho. Quase nunca lhe ouvi a voz, tão suave e silencioso é o modo como faz o pedido aos empregados do bar. Que nunca são os mesmos. Ontem ouvi-a, escutei-lhe a voz. Passou por mim e, perante o meu espanto, levantou os olhos do chão até se encontrarem com os meus, detiveram-se por instantes na minha surpresa esbugalhada, sorriu e desejou-me bom dia. Mal tive tempo de me recompor e balbuciar o bom dia que trazia guardado para outra ocasião que não aquela. Desviou lentamente o olhar e caminhou de regresso ao carro, olhos de novo nas rachas de betão, e arrancou. Depois de apanhar do chão o jornal que atabalhoadamente deixara cair, só já tive tempo de ver o azul do Peugeot esbater-se algures no tráfego intenso da A5 àquela hora da manhã.

José & Pilar





«A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.»

Antes de qualquer outra observação, devo realçar o quão gratificante é ver chegar às salas de cinema do vulgar circuito comercial uma obra documental como «José & Pilar», numa realização de Miguel Gonçalves Mendes.  A equipa do realizador português acompanhou o quotidiano do casal José Saramago e Pilar del Río durante três anos [entre 2006 e 2009] criando uma visão nova e objectiva, desprovida de juízos de valor, sobre o único Nobel português da literatura. Um filme que chega ao público quando as persianas da vida já há algum tempo se fecharam sobre o escritor, o que confere à obra um cariz ainda mais vincadamente emocional. E mais gratificante ainda é ver como o público português aderiu a um retrato filmado que revela uma relação que se agigantou num amor puro e verdadeiro e demonstra ainda uma enorme sensibilidade ao desvendar em Saramago um homem extremamente lúcido e carinhoso desfazendo com isso a imagem de pessoa arrogante que o acompanhou desde que chegou ao topo.

Saramago foi um escritor de enorme sucesso e um homem de vida cheia, daquelas vidas que normalmente apenas habitam os livros. E quando conheceu, aos 63 anos de idade, aquela que viria a ser a mulher da sua vida, a jornalista espanhola Pilar del Rio, uma nova vida se abriu sobre o homem e escritor numa relação que duraria até à sua morte, já em Junho deste ano. E é sobre esse grande amor, sobre a vida do escritor com a sua mulher, que se centra o documentário apropriadamente intitulado «José & Pilar». Filmado sobretudo na ilha de Lanzarote onde o casal construiu o seu lar mas também nas imensas viagens a que o escritor se via obrigado por não saber dizer não aos imensos convites que recebia, o que vemos desfilar na tela é o lado real mas intensamente emocional de um amor que nasceu a partir da busca de uma jovem mulher por um homem grande na sua arte e se foi construindo nas pequenas coisas do dia-a-dia, na intimidade de dois seres humanos que se entregaram profundamente ao amor que os unia.
Ainda assim, é importante verificar como a câmara de Miguel G. Mendes acompanha o processo criativo do escritor e capta as suas angústias e temores mas, sobretudo, as convicções que partilhava com o mundo sem jamais as querer impor. Hoje, José e Pilar convivem de mãos dadas numa esquina da Azinhaga, terra natal do escritor, onde as ruas José Saramago e Pilar del Rio confluem entre si. E na placa toponímica que identifica a rua que homenageia a mulher do escritor, está à vista de todos uma das mais belas mensagens de amor que alguma vez pude ler. Retirada da obra «As Pequenas Memórias», lá está a frase que perpetua um grande amor: «A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.»
Obrigatório. Para amantes da escrita de Saramago, do homem apaixonado que foi Saramago, para amantes de cinema e para quem, como eu, acredita no amor desprovido de barreiras de diferenças de idade ou outras.

«José & Pilar», de Miguel Gonçalves Mendes, com José Saramago e Pilar del Rio

[Foto tirada na Azinhaga, a 24 de Novembro; há um par de dias atrás]


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A boa educação por Anton Tchekhov


[Rebecca Hall e Scarlett Johansson à mesa em «Vicky Cristina Barcelona»]






Falecido em 1904, o escritor e dramaturgo russo Anton Tchekhov escreveu que a boa educação não está tanto em não derramar o molho sobre a toalha de mesa mas muito mais em ter a capacidade de não notar que outra pessoa o faça. Suspeito que na sociedade actual muito poucos lêem Tchekhov e muitos menos seguem aquilo que tão nobremente defendia.



Preconceito



[New York Movie, 1939 - Edward Hopper]




Confesso que quando era adolescente, e mesmo até um pouco mais tarde já jovem adulto, quando conhecia alguém costumava perguntar a essa pessoa se gostava de cinema. E se a resposta era afirmativa de imediato colocava nova questão. Questão essa sobre que filme ou filmes vistos por essa pessoa a tinham de algum modo marcado ou influenciado. Se é que os havia. Eram perguntas quase ao estilo de “diz-me de que filmes gostas, dir-te-ei quem és”. Ainda hoje faço isso um pouco, embora apenas por brincadeira e nunca como fórmula de busca de conhecimento sobre a personalidade ou carácter do outro. Isto apesar das nossas preferências cinematográficas terem tudo a ver com a pessoa que somos. Com a forma como pensamos, como sentimos, com o nosso percurso de vida, académico, profissional e tudo aquilo que de algum modo nos fez ser o indivíduo em que nos tornámos. E até, por vezes, com aquela pessoa que amámos e que apesar de já nada sabermos dela continuamos a ser influenciados pela sua anterior presença na nossa vida.

A fragilidade do indivíduo

[Man Sitting - Back View - 1964, Wayne Thiebaud]






Anos atrás li um livro de estrutura narrativa grandiosa. Um livro unanimemente considerado como um dos grandes documentos da literatura mundial. Falo de «O Doutor Jivago», de Boris Pasternak. Hoje relembro como a obra é perfeita na demonstração da fragilidade do indivíduo, de como as vivências, os pensamentos e as reflexões de alguém podem estar tão de acordo com alguma inquietude que nos assola e necessariamente afecta os dias.


Jivago, burguês e médico, abandona Moscovo no dealbar de uma revolução. Fá-lo ao perceber que os meios determinam os fins. Isto é, que o bem gerará o bem e a força bruta só poderá gerar o mal. Imerso na violência da história, passeia-se um intelectual de alma solitária que se apaixona tremendamente por uma mulher muito mais jovem que ele. Uma mulher que encontra anos depois de a ter conhecido em Moscovo. Uma paixão intemporal que não irá viver dada a tragédia de que é vítima acabando por morrer de ataque cardíaco depois de sobreviver longo tempo na penúria.


Lembrei-me do Dr. Jivago. Do poeta, do homem apaixonado, do idealista. Lembrei-me de como não somos nada em confronto com o decorrer avassalador da vida, perante os acontecimentos sobre os quais não temos mão mas que nos condicionam o dia-a-dia, nos limitam os sonhos, nos fazem ter que recomeçar do zero quando julgávamos ter construído algo. Há em tudo isto muito de material [existe sempre algo de material em tudo] mas, sobretudo, de espiritual e trágico. E enquanto nos questionamos, vamos continuando o nosso caminho. Cansados, de olhar vazio, assemelhando-nos a autómatos, mas lá prosseguimos. No entanto, muitas vezes sem sabermos muito bem qual o rumo que devemos tomar.

sábado, 20 de novembro de 2010

A sexualidade infeliz



[Isabelle Huppert em «La Pianiste»]



No filme em que o austríaco Michael Haneke adapta um livro da sua compatriota escritora Elfriede Jelinek, «A Pianista», Erika Kohut vive uma sexualidade reprimida pela figura da mãe. O seu desequilíbrio emocional leva-a a soltar-se num voyeurismo desenfreado em sessões pornográficas e na observação de casais a terem sexo. Os excêntricos desejos sexuais desta mulher culta, professora de música no Conservatório de Viena, levavam-na a sentir-se refém da crueldade, do amor pela dor fazendo dessa dor o objecto que a fazia sentir prazer e atingir a desejada felicidade. O livro de Jelinek, segundo a própria, tinha muito de autobiográfico. Afinal, estas revelações que a escritora decidiu partilhar de si com o mundo têm tanto de fantástico como de realistas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O cinéfilo que pintava quadros

[Nighthawks, 1942 - Edward Hopper]







«Nighthawks» é talvez o quadro mais mediatizado de Edward Hopper, pintor realista norte-americano que ficou celebrizado como o poeta da solidão. No quadro citado, e segundo as suas próprias palavras, Hopper refere apenas como uma possibilidade remota o facto deste ilustrar a solidão urbana. «Inconscientemente talvez estivesse a pintar a solidão de uma cidade», referiu a propósito. O pintor era um cinéfilo compulsivo e a perspectiva um tanto ou quanto bizarra que adoptou para «Nighthawks» assim como o jogo de luzes que as suas técnicas de composição permitiram, parecem comprovar essa mesma teoria. Hopper nasceu e morreu em Nova Iorque nos anos de 1882 e 1967.

Amores maiores do que a vida

[Cartas de uma Freira Portuguesa - Milo Manara, via E Deus Criou a Mulher]






«Os meus olhos é que perderam nos teus a única luz que os animava.»





Soror Mariana Alcoforado



Não raras são as vezes em que as grandes paixões permanecem eternas, afundadas na tristeza pela privação do outro, serenadas pelo lento passar do tempo que leva à triste resignação da perda. Soror Mariana Alcoforado, nascida e falecida em Beja nos anos de 1640 e 1723, foi uma dessas infelizes protagonistas de um amor maior que a vida. Apaixonada pelo fidalgo francês Noël Bouton (1636 – 1715), na altura em Portugal ao serviço da Cavalaria Francesa no reinado de Luís XIV, por essa paixão ardente a freira portuguesa quebrou o voto de castidade e propôs-se acompanhar o oficial até ao seu país de origem, não encontrando no entanto reciprocidade nesse desejo por parte do seu amado.



Famosa por escrever 7 fabulosas cartas que deram origem a livros e que pela sua beleza estética e fabulosa componente literária inspiraram poetas, escritores, pintores e outros artistas, decorreu em tempos no Real Mosteiro da Nossa Senhora da Conceição, em Beja, uma exposição que homenageava a religiosa portuguesa, que foi escrivã e vigária do templo, com a reprodução de litografias de Henri Matisse e de documentos originais que retratam a sua muito inflamada paixão que em tempo curto descambaria em saudade e dor. Deixo aqui ficar, com este texto, a minha singela homenagem a uma mulher que morreu não deixando que o seu amor alguma vez morresse em si.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A dor de sentir




 [Suicídio, de Edouard Manet - 1877]





Do livro «Gente Feliz com Lágrimas» [1988], de João de Melo, salta-me à vista este pequeno excerto. “Nos olhos dela, perdura ainda uma solidão compassiva e extenuada, dessas que a vida não consegue explicar. O hábito de ser triste culpabiliza nela a própria ideia de felicidade. Tal como nós, não sabe ser feliz sem lágrimas, nem rir sem o remorso da alegria, e isso vê-se-lhe nos olhos.”

Sorrio. Lembro-me de Camilo Castelo Branco, de si próprio e do seu «Amor de Perdição» [1862], de Van Gogh, do Shakespeare de «Romeu e Julieta» [1595], de Virginia Woolf, de Ernest Hemingway, Kurt Cobain e tantos, tantos outros e detenho-me apenas a tentar interpretar um sentimento voraz que de tão intenso se transforma em apetite que somente o trágico sabor da vida pode saciar.

Medo no cinema

Agarrados à Cadeira na Sala Escura do Cinema



Há tempos a revista Actual, do Expresso, apresentou-nos um interessante trabalho sobre o horror no cinema. Que é como quem diz, sobre os filmes de terror. Confesso que não considero este como um género menor do cinema tal como se escreve no texto da publicação, mas, neste caso particular dos filmes de terror, as minhas exigências enquanto espectador são muito mais elevadas que noutros géneros mais populares, mais próximos de nós, do nosso quotidiano. Isto porque é imperioso que sinta um vislumbre de veracidade na história que se desenvolve na fita muito para além dos aspectos conceptuais da realização. Estes que podem ir desde a excelência dos dècors – que são, claro, essenciais no género cinematográfico – ou da perfeição na caracterização dos actores – também um aspecto fundamental para o sucesso de um filme de terror. Significa isto que um filme de terror que alcance uma consistência dramática capaz de libertar a porção correcta na mistura de tensão e medo no espectador, possui desde logo duas características fundamentais para se tornar num bom filme do género. Mas estas duas não sobrevivem sem uma outra especificidade: a capacidade de atingir uma dimensão de verosimilhança com a realidade ou do que pode estar para além dela. Claro que a tudo isto o meu amigo
António Pascoalinho – um dos maiores se não o maior especialista de filmes do género em Portugal – responderia com um enorme bocejo. Mas, reconheço, até pelo que foi dito atrás, estou a quilómetros do seu gozo especial em 'molhar a sopa' nos jorros de sangue que fazem as delícias dos grandes fanáticos do género em que outro amigo, o Filipe Lopes, também se inclui.



Com honrosas excepções, quase todos eles fazem parte da lista que o Expresso disponibiliza no referido trabalho. Mas eis a minha relação de melhores filmes de terror da história do cinema. Fora desta lista ficam sequelas e personagens míticas como o Conde Dracula, Frankenstein,
Freddy Krueger (Pesadelo em Elm Street), Jason Vorhees (Sexta-feira 13), Allien e outros. Por outro lado, dada a sua dimensão trágica e humanista numa figura inumana, Nosferatu (1922), de Murnau, ocupa um lugar de destaque numa listagem restringida aos melhores. Na minha modesta opinião, claro.












[ Nosferatu (1922), de F.W. Murnau - O início]






1 - [The Shining (1980), de Stanley Kubrick - A genialidade do mestre]







3 - [The Birds (1963), de Alfred Hitchcock - Tese de doutoramento do mestre do 'suspense']





4 - [The Exorcist (1973), de William Friedkin - Possuída pelo demónio]





5 - [ The Fly (1986), de David Cronenberg - Apanhado nas teias do seu próprio desejo de evolução científica]




6 - [Rosemary's Baby (1968), de Roman Polanski - Histeria e assombração]





7 - [Halloween (1978), de John Carpenter - Guiados no medo pelos olhos do impiedoso assassino]





8 - [Night of Living Dead (1968), de Georges A. Romero - A morte saiu à rua (numa noite assim)]








10 - [Jaws (1975), de Steven Spielberg - Medo e perturbação]