domingo, 31 de outubro de 2010

Deixa-me Entrar




O menino e a vampira

O maior feito conseguido pela história de um menino de doze anos, solitário e introvertido que vive em permanente humilhação por um grupo de colegas de escola e da pequena, estranha e misteriosa Abby no filme realizado por Matt Reeves, acaba por ser a prova contundente da existência de uma indústria de cinema em Hollywood. Uma fábrica de fazer filmes que não pode parar, mas onde o dinheiro abunda na mesma medida em que faltam as ideias. De facto, o livro escrito por John Ajvide Lindqvist fora recentemente adaptado ao cinema num filme sueco realizado por Thomas Alfredson. E o que se conclui é que apesar da reverência ao original, de um evidente bem fazer de Matt Reeves bem patente na contenção e sensibilidade pelas histórias fantásticas que envolvem as duas crianças, este «Let Me In» está muito longe do poder visual, estilístico e artístico do já citado «Lat den Rätte Komma in» (2008).
Apesar disso, isto é, de não se perceber bem esta insistência de Hollywood em copiar o bom feito noutras partes do mundo, o filme flui de modo agradável. A realização, que adoptou um tom de respeito formal e artístico ao cinema de terror clássico, fugiu muito positivamente a essa onda de filmes de vampiros que tem invadido as salas de cinema com produtos de consumo fácil para mastigar e deitar fora. De salientar também as boas interpretações dos dois meninos de serviço, Chloë Grace Moretz (Abby, a vampira) e Kodi Smit-McPhee (Owen, o menino solitário), e ainda de Elias Koteas (o perturbado polícia). E para quem não viu o filme original nem leu o livro, acaba por ver premiada a sua ida ao cinema com um inteligente ‘twist’ final que de modo algum é suficiente para contrariar aquela máxima que nos diz que a cópia é invariavelmente pior que o original.

«Let Me In», de Matt Reeves, com Chloë Grace Moretz, Kodi Smit-McPhee e Elias Koteas


A CIDADE



Ben Affleck, um realizador que promete

Doug McRay [Ben Affleck] viveu e cresceu em Charlestown, um bairro de Boston conhecido por formar mais assaltantes a bancos que qualquer outra parte do mundo. E como marginal que se preze, Doug teve toda a sua formação na escola da rua criado por um pai delinquente e abandonado pela mãe ainda muito jovem. Agora, ele e mais três amigos formam um perigoso e muito competente bando de assaltantes não apenas a bancos como a carrinhas de transporte de valores. Mas, neste entremeio, Doug McRay vive o dilema de querer abandonar a única vida que sempre conheceu não o conseguindo fazer preso às ligações afectivas e de hierarquias entre criminosos que criou e não consegue quebrar. E de assalto em assalto, mergulhado na turba da cidade, para complicar ainda mais a sua situação Doug acaba por se apaixonar pela mulher responsável por um dos bancos que assalta.
Depois de «Vista Pela Última Vez…» [2007], Ben Affleck, actor pouco reconhecido e argumentista de valor, volta à realização provando que o cinema é a sua paixão e que talvez tenha encontrado a sua verdadeira vocação. Assim, «The Town» agiganta-se como filme na sua acção frenética, como convém, mas sobretudo por se tornar num filme pleno de tensão e força narrativa onde o equilíbrio entre a emoção de personagens com vida e a crueza do mundo por que estas optaram marca o respeito por um género, o ‘thriller’, como há já algum tempo não se via. De facto, a autenticidade que sobressai das personagens de Doug [Affleck], de James [Jeremy Renner], o seu cúmplice e melhor amigo e de Claire [Rebecca Hall], a gerente do banco que assalta e por quem se apaixona, é um factor que vai muito para além da simples competência e imediatamente pressupõe um talento muito especial para a realização de filmes. E sem querer entrar em comparações indesejáveis até para o jovem realizador Ben Affleck, nos últimos tempos só um homem conseguiu fazer passar para o público essa genuinidade. E esse é tão somente Clint Eastwood.
A um filme com um ritmo narrativo muito vivo, igual espessura dramática das personagens [mesmo daquelas que se afiguram como secundárias na trama] e um importante sentido do detalhe não é alheia a aliança entre a literatura e o cinema. Baseado na obra «Prince of Thieves», de Chuck Hogan, «A Cidade» soube ir beber à literatura aqueles pormenores que muitas vezes algum cinema se esquece de acentuar. Umas vezes por pura arrogância demasiado crentes no valor da imagem e outras por manifesta incapacidade dos seus artesãos. E talvez seja até um cliché olhando para o currículo de Affleck como actor, mas lamenta-se aqui a sua falta de carisma para um papel que a exigia em dose dupla. No entanto, neste capítulo das interpretações Jeremy Renner dá um recital de como bem representar num papel que lhe assenta que nem uma luva. E John Hamm [o agente do FBI que persegue o grupo de assaltantes] desempenha na perfeição a figura do polícia tão determinado a quebrar as leis que os assaltantes impõem como atormentado por uma certa incapacidade em consegui-lo. Uma incapacidade que parece resultar muito mais do talento dos bandidos que da sua própria ineficácia.
Resumindo, «The Town» é muito mais que um filme de polícias e ladrões. É uma obra que nos fala da irreversibilidade de determinados percursos de vida e, quando existe essa vontade, de como é difícil a fuga a um destino que parece estar traçado. E foi no meio da marginalidade e de alguma desordem social que se Affleck foi compondo esta sua poesia do fracasso. De um e de outro lado da barricada.

«A Cidade», de Ben Affleck, com Ben Affleck, Rebecca Hall, Jeremy Renner e John Hamm

Uma Família Moderna




Jogo de aparências

Quando Tommaso diz a Alba, a sua amiga de infância, que ‘os amores impossíveis são aqueles que duram para sempre’ não está apenas a dar eco a uma convicção da personagem. De facto, é a própria essência de Ferzan Ozpetek que se evidencia através do pensamento da personagem principal de «Uma Família Moderna», o mais recente filme do realizador italiano [turco de nascimento]. Ozpetek [ele que dirigiu em 2003 «A Janela em Frente»] acredita na imortalidade dos afectos e é um clássico que permanece fiel à temática principal das suas obras: a homossexualidade e, já agora, fazer do instinto o melhor instrumento para atingir a felicidade.

A história do filme conta-se em breves palavras. Um jovem oriundo de uma família abastada de Lecce [sul de Itália], regressa de Roma onde supostamente estudou Gestão para revelar duas coisas à família: uma que é homossexual e a outra que estudou literatura porque o seu grande sonho é ser escritor e que jamais pretendeu continuar o negócio da família. Para isso vai ter de enfrentar um pai homofóbico e uma cidade prepotente nas suas relações presa ao convencionalismo típico de uma povoação de província. Mas pese o facto de estarmos aparentemente perante o retrato fiel de uma família tradicional, Ozpetek constrói uma divertida teia de enganos e o bom do Tommaso [Ricardo Scarmacio] vai ter que alterar os seus planos vítima de acontecimentos inesperados.

Aquilo a que se assiste a partir desta premissa do guião, é a um filme que dificilmente deixará de tocar emocionalmente o espectador. O conflito entre a modernidade e a tradição enquadra-se perfeitamente em personagens que anseiam manter-se fiéis aos seus princípios de sempre mas que se recusam a fechar os seus corações àqueles que amam e cujo sangue lhe corre nas veias. Pelo meio há ainda uma avó extremamente sagaz numa sabedoria que parece ter sido colhida do grande amor que não viveu mas que manteve aceso dentro de si por toda uma vida e uma jovem mulher, Alba [Nicole Grimaudo], irresistivelmente sedutora na sua beleza física, na personalidade rebelde e no modo sensível e solitário com que parece dar asas ao seu carácter extrovertido.

E é assim, com sensibilidade e ironia, que «Mine Vaganti» [no seu título original] se vai construindo e ganhando a batalha da emoção alheio a algum convencionalismo no modo como a realização parece olhar a questão das diferenças na orientação sexual dos homens e das mulheres. Este pormenor está patente sobretudo nas personagens quase caricaturais dos amigos de Tommaso, mas há que reconhecer que o respeito pelas regras dramáticas de um género pode levar a este tipo de rigidez por parte da realização. No entanto, o pormenor é de imediato desculpável quando se percebe que Ozpetek jamais receou cair no excesso quando fazia sentido seguir por essa via. E o que é indiscutível, e verdadeiramente importante, é que «Uma Família Moderna» é não apenas um filme tão divertido quanto emotivo numa aliança entre comédia e drama como resulta num excelente momento de cinema. A não perder.

«Uma Família Moderna», de Ferzan Ozpetek, com Ricardo Scarmacio e Nicole Grimaudo























Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme





 


Crise, disse ele


Em finais dos anos 80, Oliver Stone apresentava ao mundo Gordon Gekko, um investidor de Wall Street ganancioso e sem escrúpulos que rendeu a Michael Douglas o Oscar para a melhor interpretação masculina do ano. O filme foi um sucesso e em 2010, já sem a chama nem a fleuma de outrora, Stone recriou a personagem fazendo-a sair da prisão onde cumprira pesada pena por fraude trazendo novamente Michael Douglas até nós, agora em «Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme». Debalde.


É que para além dos lugares-comuns já sobejamente repetidos sobre o mundo cão, amoral e devorador em que navega a economia global e de uma pomposa explicação dos motivos da actual crise financeira, a realização de Stone oferece-nos pouco mais de que possa orgulhar-se. E mesmo aquilo que nos oferece, embora num embrulho feito de papel finíssimo, arrasta consigo um tal moralismo entranhado nos ossos que dele dizer-se dispensável é curto. Para além disso, poucos delirarão com a condescendência das personagens perante os seus próprios actos e um final de filme tão optimista quanto patético. No fundo, tão anedótico como o ‘cameo’ [chamemos-lhe assim] de Charlie Sheen, ele que foi Bud Fox no primeiro filme da série.


Mas se alguém achar que estou a ser demasiado duro e não se tenha ainda deslocado a uma sala de cinema onde o filme esteja a ser exibido, aproveite agora. Aproveitem e vão vê-lo. Até porque se não gostarem das diatribes de Gekko & Comparsas lembrem-se que se tivessem partido uma perna seria bem pior. E mesmo que partam alguma perna, tenham calma. É que grave, grave, só mesmo se partissem as duas pernas. É esta a filosofia de «Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme».




«Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme», de Oliver Stone, com Michael Douglas, Shia LaBeouf e Carey Mulligan










A ORIGEM









Vamos por partes

As referências

O futuro é já hoje. Aconteceu assim com «Matrix» (1999 e 2003), dos irmãos Wachowski, foi-o entretanto com «Minority Report» (2002), de Steven spielberg, já o tinha sido muito antes com «2001: A Space Odyssey» (1968), de Stanley Kubrick e acontece agora com «A Origem»(2010), de Christopher Nolan. E falar do futuro já hoje relembrando outras obras-primas do cinema, quer dizer duas coisas: que «A Origem» é antes de mais um ‘thriller’ de ficção-científica, elemento comum aos filmes citados, e que na sua inesgotável criatividade e brilhante talento narrativo, Nolan é um cineasta que assume as boas ideias como uma inevitável inspiração de obras anteriores de mestres do mesmo ofício. E este é um sinal de humildade e inteligência que só lhe fica bem.

A matéria de que se fez o filme

A trama do mais recente filme do fantástico realizador inglês não é fácil de explicar nem de seguir na tela. Pese o magnífico carácter visual do filme [isto hoje até é assim muito para o fácil de escrever, basta adjectivar], a narrativa vertiginosa que sobrepõe o pesadelo ao sonho e vice-versa, obrigam a uma atenção suplementar do espectador. Até porque a realização de Nolan é feita de pormenores magistrais que revelam uma produção irrepreensível. Ao nível do ‘casting’, do guarda-roupa, da montagem, dos efeitos especiais e, por que não dizê-lo, na capacidade que existiu para acompanhar a sofisticação do artífice Nolan.


A história

Cobb (um soberbo Leonardo DiCaprio), é um espião que rouba o maior dos tesouros: os segredos guardados no subconsciente dos homens e mulheres que lhes são extorquidos enquanto sonham. Para isso, Cobb possui uma equipa de colaboradores que funciona entre si com a precisão de um relógio suíço. No entanto, dadas as características delicadas do seu trabalho Cobb perdeu tudo o que lhe era querido. E para recuperar o seu mundo, vai ter que aceitar um trabalho que lhe é proposto por Saito (Ken Watanabe), um vilão à escala mundial, e que se afigura como a mais difícil missão que até então levou a cabo. Desta vez não tem que roubar uma ideia, não tem que conhecer um segredo, tem, isso sim, que implantar algo no cérebro de Robert Fisher (Cillian Murphy), um herdeiro multimilionário. Para o tentar, o espião Cobb vai contar com a importante ajuda de Ariadne (Ellen Page), uma estudante brilhante que é treinada para se adaptar ao mundo dos sonhos. É bom no entanto recordar que quando alguém adormece, e sonha, tanto pode contar com sonhos cor-de-rosa ou com um pesadelo de causar enormes dores de cabeça. E o subconsciente de Cobb é povoado pela memória de Lisa (Marion Cottillard), a sua mulher.


O sumo e as ofertas ao espectador

Em suma, «Inception», no seu título original, é um enorme desafio à nossa capacidade enquanto espectadores de cinema de absorvermos muita matéria psicológica retirada das profundezas da mente lançada num mundo alucinante durante o sonho. E é absolutamente gratificante perceber que num espaço muito ligado à percepção que nos surge do poder de racionalização do homem, é a emoção – a emoção, sempre a emoção, que comanda os níveis de motivação para se atingir algo ou impede a sua prossecução porque somos incapazes de viver sem, por exemplo, o amor. Nolan dá-nos ainda a possibilidade de revermos um actor que chegou a ser cabeça de cartaz no passado e que hoje, aos 61 anos, se apresenta como um homem extremamente diferente daquilo que o fez tornar-se conhecido do público. Falo de Tom Berenger mas é bom que se atente sobretudo no desempenho esplendoroso de Leonardo DiCaprio, ele que nem sempre viu o seu trabalho devidamente valorizado. Ainda assim, notem bem no que este rapaz cresceu como actor de cinema. E mesmo com tantas ofertas, a maior de Nolan neste filme tem a ver com os 147 minutos de muito e bom cinema. E a certeza do quão importantes são os nossos sonhos, do quanto eles são fundamentais para atingirmos algo que se define numa palavra que neste texto parece tão descabida mas que no fundo é àquilo a que tudo se resume: a felicidade.

«Inception», de Christopher Nolan, com Leonardo DiCaprio, Marion Cotillard, Ellen Page, outros








[É a esta gente, com Christopher Nolan à cabeça e outros na 'sombra', que se deve «A Origem»]


O Escritor Fantasma




Chamada para a morte


O Iraque e o pantanoso mundo da política internacional têm sido fonte de inspiração para inúmeros filmes. Apesar disso, ainda tendo como pano de fundo o Iraque o verdadeiro ‘thriller’ das convergências políticas e manipuladoras de homens e governos estava ainda por fazer. E se «O Escritor Fantasma» não atinge a plenitude desse estatuto pode no entanto afirmar-se que anda lá muito perto. Com efeito, o aparente convencionalismo da realização de Roman Polanski – ele que não precisa de apresentações, torna-se um dos maiores trunfos de um filme que vive de personagens fortíssimas e de carácter insondável que fazem com que o espectador dificilmente consiga tomar partido por este ou por aquele. E assim o ‘suspense’ vai manter-se até ao fim.


Adam Lang (Pierce Brosnan) é um antigo Primeiro-ministro britânico refugiado numa ilha algures nos Estados Unidos e a braços com o Tribunal Internacional que o quer julgar pela prática de crimes de guerra. A forma como lidou com alegados terroristas iraquianos é o mote. Entretanto, durante o processo de escritura das suas memórias é contratado um novo escritor para as terminar já que o seu antecessor morre acidentalmente numa travessia marítima. O escritor fantasma (Ewan McGregor) viaja então para a mansão de Lang onde pretende concluir o livro e arrecadar 250 000 dólares com o trabalho. Mas rapidamente a personagem de Ewan McGregor percebe que algo de estranho se está a passar e que a morte do escritor que veio substituir poderá não ter sido assim tão acidental. E é a partir daqui que o filme se desenvolve acompanhando McGregor numa perigosa viagem a um mundo cínico, dissimulado e impiedoso que une política e espionagem internacionais.

O melhor do filme tem a ver com a intensidade dramática que é imposta por um guião que vive muito da ocultação de factos e engano nas evidências. Um filme assim, neste modelo com elevado grau de exigência, precisa avidamente de bons actores. E Tom Wilkinson (um sinuoso Paul Emmet, professor universitário e uma das primeiras incursões na investigação que McGregor leva a cabo), Olivia Williams (Ruth, a instável mulher do antigo inquilino do nº10 de Downing Street), Kim Catrall (Amelia Bly, assistente e amante do mesmo) e o próprio Ewan McGregor conseguem-no de um modo quase perfeito. Pena é que Pierce Brosnan esteja muito longe de reunir qualidades para um papel a requerer uma solidez dramática que jamais alcançou e ainda que o filme tenha alguma dificuldade em fazer acelerar o ritmo cardíaco dos espectadores mais cépticos.

Ainda assim, «The Ghost Writer» é um filme que recupera para o cinema o melhor de Roman Polanski e não será nenhum disparate dizer que a sobriedade e rigor com que a sua realização quase proíbe o espectador de se adiantar ao desfecho final da história, fazem lembrar aquele que ainda hoje é o maior mestre no ‘thriller de suspense': Alfred Hitchcock. E como bónus Polanski brinda ainda o espectador com uma mansão claustrofóbica numa ilha rodeada por um mar selvagem e meteorologia invernosa, pequenos e misteriosos hotéis construídos em nenhures e a ambiguidade conflituosa de uma editora de livros dividida entre os factos de uma biografia autorizada e a coscuvilhice ligada a um suposto maior interesse dos leitores. Em resumo, «O Escritor Fantasma» é um filme de insuspeita qualidade.



«The Ghost Writer», de Roman Polanski, com Ewan McGregor, Pierce Brosnan, Kim Catrall, Olivia Williams, Tom Wilkinson, outros



Dia e Noite






Missão Cumprida


Sim, eu sei, nem Tom Cruise é Cary Grant e muito menos James Mangold é Alfred Hitchcock. Mas caso o objectivo de uma ida ao cinema se prenda apenas com o visionamento de alucinação a rodos e mordacidade q.b. num filme que poderia ambicionar muito mais que aquilo que o próprio assume, então venham daí, peçam um alguidar de pipocas e um barril de Coca Cola porque durante duas horas o cinema resolveu rir-se de si mesmo. E nós com ele.

Ainda se lembram de «Missão Impossível II» , de John Woo? Lembram? Então esqueçam porque «Knight and Day» é tudo isso e muito mais em doses de loucura com uma pitada de química entre Tom Cruise e Cameron Diaz, ele que é o espião que combate o crime à escala mundial e ela a bela de serviço. Quanto à trama, um agente secreto acusado de traição, a sua própria organização a persegui-lo, tráfico de armas com direito a touros pelas ruas de Sevilha e uma mulher a caminho do casamento da irmã apanhada no meio do conflito. Onde é que já vimos isto? Fácil, em dezenas e dezenas de filmes. O bom da realização de Mangold é que assume a sua própria condição de mastigar e deitar fora mas com a característica fundamental de ser muito bom enquanto dura.

E se Cameron Diaz anda um pouco a reboque do filme, Tom Cruise toma as rédeas da trama com a qualidade e a sabedoria com que no próprio filme conduz aviões, motas de alta cilindrada, carros, copos de champanhe, armas de tiro de repetição e beijos na menina. Ele é Roy Miller e ela June Havens, nós os espectadores de férias que só querem fazer descansar os neurónios e usufruir de muita e boa diversão. Ala que se faz tarde!


«Knight and Day», de James Mangold, com Tom Cruise e Cameron Diaz






















A MULHER DO VIAJANTE NO TEMPO









Entre contradições e muita confusão também emergem as emoções


Henry viaja no banco de trás de um automóvel quando um violento acidente de tráfego o faz ficar órfão de mãe, ela que conduzia a sua própria viatura. O pequeno rapaz, que será interpretado por Eric Bana na idade adulta, vai no entanto poder voltar a ver a mãe em tempos anteriores ao do próprio acidente. Confusos? Pois continuarão a ficar já que o facto de Henry ser alguém que viaja entre o passado, o presente e o futuro sem conseguir controlar os momentos em que e para onde o faz não é explicado com coerência pela realização do alemão Robert Schwentke. Na verdade, as contradições da trama e a confusão romântica que pairam sobre o filme não ajudam nada a que se goste de uma história de ficção de impossibilidade real. E é aqui que começa o meu problema. Porquê? Porque embora de forma moderada e reconhecendo as inultrapassáveis fronteiras de um objecto de puro entretenimento, eu gostei do filme.

Já escrevi inúmeras vezes que cinema não é uma ciência exacta. E mesmo que percebamos as debilidades de uma realização ou de um argumento que se contradiz a si mesmo ao longo da trama, é possível que haja algo naquele filme que nos toque sobremaneira. A comparação pode até ser disparatada, assumo-o, mas esta linha de reflexão leva-me até ao amor. Quantas vezes nós não olhamos para um casal apaixonado mas aparentemente desequilibrado pelas características de cada um dos seus elementos e não percebemos o porquê de aquele homem ou aquela mulher se amarem. Mas amam-se porque o amor não se explica, acontece. E se o cinema se explica, naquilo em que o amor e o cinema têm muito de comum não há explicação possível: no campo das emoções, no território das sensações.

Voltando ao filme, Henry (Eric Bana, já o referi) inicia uma relação com Clare (Rachel McAdams). Entre saltos temporais e um amor que vive altos e baixos próprios das dificuldades de uma existência intermitente, a verdade é que o amor entre os dois persiste a todas as provas a que é sujeito. Perante isto, é possível que o espectador viaje pelo interior das suas memórias e perceba que caso lhe fosse dada a oportunidade de regressar a um ou outro importantes momentos da sua vida talvez pudesse alterar uma decisão ou um comportamento seus. Ou então não, tal como Clare lhe confessa quando sabe que vai perder Henry, nada mudaria. E é neste campo que o filme pode ter a capacidade de ganhar alguma razão junto de um espectador cujas razões já então nascem apenas das suas próprias emoções. E se assim for, o cinema confuso e contraditório de «A Mulher do Viajante no Tempo» já conseguiu vencer um dos seus grandes objectivos: fazer sonhar. E eu, quer o queira ou não, sou um sonhador. Que fazer!?


«The Time Traveller’s Wife», de Robert Schwentke, com Eric Bana e Rachel McAdams



Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo




Príncipe ou pirata, da Pérsia ou das Caraíbas, uma questão simples de clonagem


 


Acho que vou começar pelo princípio: Mike Newell, o realizador de «Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo», é o mesmo homem que em 2007 esteve por detrás das câmaras no filme «O Amor nos Tempos de Cólera» e quase arrasou por completo uma das maiores obras da história da literatura latino-americana e de um dos seus maiores intérpretes, Gabriel Garcia Marquez. Se juntarmos a isto o nome de um produtor que subverte o cinema em prol do negócio, Jerry Bruckheimer, e percebermos que o filme é a adaptação ao cinema de mais um videojogo, então quase ficamos conversados quanto à qualidade de «Prince of Persia: The Sands of Time». Mas não, desculpem, não me fico por aqui.




Coloque-se agora a questão: que se pode esperar de um filme com tão graves premissas? Eu diria que muito, se soubermos que a história evoca as fábulas das «Mil e Uma Noites» que povoaram o nosso imaginário infantil. E já que se trata da versão para cinema de um videojogo, espera-se igualmente – e no mínimo - acção mirabolante e um vertiginoso ritmo da narrativa. Reconheça-se que o filme até começa bem com as aventuras do pequeno Dastan (que em adulto será corporizado por Jake Gyllenhaal) e a aparição de um anjo que dá pelo nome de Gemma Arterton que no filme se chama Tamina e é a Princesa da esplendorosa cidade de Alamut. Mas uma montagem absolutamente desastrada, personagens secundárias a roçarem a idiotice para dar um tom de comédia ao filme conjuntamente com a desajustada pompa e circunstância à la Bruckheimer, tornam «Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo» num simples objecto de ‘franchising’ e confirmam Mike Newell como um mero tarefeiro ao serviço do pior cinema que se faz em Hollywood.




Ainda assim, há que reconhecer que o filme possui um público alvo como aliás é próprio de qualquer produto comercial a surgir no mercado depois de aturados estudos de mercado. E há ainda quem goste muito desta espécie de cinema, caso contrário ele não existiria. Isto porque, apesar de tudo e dos desastrosos efeitos especiais também, é de cinema que estamos a falar. E se outra razão não houvesse para o percebermos, Alfred Molina e Ben Kingsley estão lá para o provar. O primeiro mais que o segundo, na minha opinião. Mas bem analisada a questão, «Príncipe da Pérsia: As Areias do Tempo» está para o cinema como as canções pimba de Emanuel estão para a música: elas que tão depressa entram como saem do ouvido. Por outro lado, dá pena ver um Jake Gyllenhaall esforçado mas sem um mínimo de carisma para suportar uma personagem que se queria grandiosa e épica. Por tudo isto, volta Johnny Depp, volta «Pirata das Caraíbas», estão ambos perdoados.







«Prince of Persia: The Sands of Time», de Mike Newell, com Jack Gyllenhaal, Gemma Arterton, Ben Kingsley e Alfred Molina




O Segredo dos Seus Olhos



‘te Amo’


Sobre a mesa está pousado um bloco onde falta a letra A, encostada a um canto da sala encontra-se uma máquina de escrever que suprime a mesma letra A, mas apesar de silencioso nos olhos de Irene (Soledad Villamil) pode perceber-se um grande Amor. «O Segredo dos Seus Olhos», filme argentino realizado por Juan José Campanella, foi este ano o surpreendente vencedor do Oscar da Academia de Hollywood para o Melhor Filme Estrangeiro. Mas a surpresa só o é para quem não assista a duas horas de um filme onde o romance, a política e o crime são evocados com sentimento e paixão através de uma cinematografia irrepreensível. O cineasta argentino demonstra nesta obra uma invulgar mestria a lidar com a inquietude existencial do ser humano fiel àquilo em que acredita. Mas para tão grande sucesso, Campanella contou com um invulgar trio de actores cuja actuação só por si valeria todo o visionamento do filme.

Benjamin Espósito (numa fabulosa interpretação de Ricardo Darin) é um investigador judicial reformado que resolve escrever um livro sobre a história de um violento crime ocorrido trinta anos antes e que lhe alteraria radicalmente a carreira e a vida. Empurrado para a cena da violação e assassínio de uma linda mulher recentemente casada, Benjamin acaba por ficar preso à tragédia a que assiste e, posteriormente, à força do amor que sente no jovem viúvo dilacerado pela perda da companheira. Mas está-se em 1974, a Argentina vive debaixo de um regime arcaico e feudal e apesar de tudo fazer para que o criminoso seja apanhado e punido, Benjamin vai perceber que querer não é poder quando se depende dos outros e de um sistema judicial corrupto. No entanto, o investigador é um idealista e enquanto persegue o assassino vergado pela força do amor de outrem nem se apercebe que lentamente vai perdendo a possibilidade de ser feliz com a mulher que ama.

O facto de se estar perante o processo de criação de um livro, permite ao filme viajar constantemente entre o passado e o presente, a realidade e a ficção. E se os diálogos são um dos seus maiores trunfos, fazendo até vincar um pouco a singularidade do povo argentino, é nos silêncios, naquilo que se não diz, e na expressividade dos olhares que o filme atinge toda a sua plenitude. Verdadeiramente bem trabalhada e a demonstrar o quão coerente pode tornar-se a acção dos homens podendo atingir foros de um dramatismo sem paralelo, a trama policial acaba igualmente por ser um mero pretexto para o que pode ser o vazio total de uma vida sem o objecto da nossa paixão. Nesse amor silenciado, reprimido, são personagens principais Benjamin e Irene mas é fundamental perceber no final do filme o modo como Ricardo Morales (Pablo Rago), o desditoso viúvo, preencheu o vazio da sua vida sem a mulher que lhe foi violentamente roubada. A si e à vida.

Em suma, «El Secreto de Sus Ojos» é um filme notável sobre a existência humana num olhar sensível e inteligente que toca sem ser sentimentalista. E a par disso, como já referi atrás, há todo um festival de bem representar dado por Ricardo Darin (Benjamin), Gillermo Francella (o colega e amigo Sandoval) e Soledade Villamil (Irene). Imperdível.



«El Secreto de Sus Ojos», de Juan José Campanella, com Ricardo Darin, Gillermo Francella e Soledade Villamil




Polícia sem Lei








A redenção impossível


A propósito de «Polícia Sem Lei» poderia vir aqui falar-vos do singular realizador que é Werner Herzog, do ‘novo cinema alemão’ de que faz parte, dizem, ou de Rainer Werner Fassbinder ou Wim Wenders que como Herzog são alemães muito perigosos (um já se foi) e cúmplices com este no crime de fazer cinema pouco ou nada consensual. Mas não, deixo isso para os especialistas ou para as páginas enciclopédicas igualmente importantes na avaliação de uma obra e do trabalho de autores e actores. E também não pela simples razão de que aqui sou um simples cinéfilo, um espectador comum, mas sobretudo não porque seria um desperdício fazê-lo quando pelo filme se passeia um ser humano, um polícia no caso em questão, que persegue deliberadamente a sua própria perdição. Um homem que mata a dor com o prazer ainda que socialmente o faça sob algumas das mais condenáveis formas.

Pois este polícia sem lei, que usa e abusa do poder que lhe é conferido pela sua profissão, corrupto e amoral, acaba por se revelar uma das mais fantásticas personagens do cinema nesta época de contenção e num género que tem muito de ficcional mas que aqui poderia ser bem real, o policial. E se o cinema pode ser designado como uma fábrica de emoções, façam o favor de apertar os cintos uma vez que o estado geral que passa a vigorar assim que «The Bad Lieutenant: Port Of Call - New Orleans» se inicia é o de total insanidade. Insanidade na história que se desenrola e de estupefacção do espectador esmagado pelo delírio auto-destrutivo de uma personagem a contagiar todo o filme.

Mas calma, não corram já para as salas de cinema, sejam um pouquinho mais cautelosos. É que já li algures que este foi o pior filme do ano para uns quantos. É justo, como já sugeri atrás não se trata de um filme consensual certamente e cinema não bate a todos por igual. Mas que para mim foi absolutamente revigorante observar a forma como um polícia a investigar o homicídio de uma família inteira no que aparenta ter sido um ajuste de contas lê o manual de instruções de trás para a frente e ainda rasga umas páginas pelo meio, lá isso foi. E se o filme é muito de um Nicolas Cage histriónico no seu impagável boneco, há que não esquecer a humidade e o calor de uma Nova Orleães de sotaque sulista e a viver um período de negação logo após os efeitos do furacão Katrina a transformar-se numa personagem omnipresente em toda a trama. E ‘last but not least’ que dizer da belíssima e cada vez mais sensual Eva Mendes aqui num papel complexo de uma prostituta incrivelmente sedutora num misto de ingenuidade e admirável capacidade de amar? Meus caros Abel Ferrara, Harvey Keitel e «The Bad Lieutenant» de 1992, o homem até pode ter ido beber inspiração no vosso trabalho, não o nego, mas que valeu a pena lá isso valeu.



«The Bad Lieutenant: Port Of Call - New Orleans», de Werner Herzog, com Nicolas Cage e Eva Mendes







Robin Hood






O herói antes de o ser


Pergunta: quem foi Robin Longstride? Resposta: foi Robin Hood, o justiceiro da floresta de Sherwood que infernizava a vida ao Xerife de Nottingham e irritava o Príncipe John. Diga-se também que Robin Longstride é o filho único de um pedreiro que afinal foi filósofo sentenciado à morte por incitar os pobres e fracos a lutarem e a não desistirem dos seus direitos e sonhos. Mas convém ainda acrescentar, como ajuda suplementar para melhor percepção do fenómeno, que este acaba por ser unicamente o Robin Hood do realizador Ridley Scott, um Robin Hood que surge como simples arqueiro ao serviço de Ricardo Coração de Leão, rei de Inglaterra. Para clarificar ainda mais as coisas, é bom que se diga que estamos afinal a conhecer o homem por detrás da lenda. E que Longstride, um plebeu, por obra e graça do destino acaba por se travestir de fidalgo e ser ele a entregar à rainha mãe a espada de Ricardo I como prova da sua morte ocorrida no cerco a um castelo em terras de França.

As más notícias não acabam por aqui já que é minha convicção que parte de leão do semi-fracasso que constitui este «Robin Hood» se dá exactamente pelo exposto anteriormente. Ou seja, porque é bem provável que o espectador vá em busca do ‘seu’ Robin dos Bosques e se depare com um herói muito diferente daquele que conhece. Diferente da lenda e pouco de acordo com os factos históricos, embora esta seja uma questão lateral de somenos importância. E mesmo que quisesse ser benevolente com o filme já que este até tem bem delineados o herói, pela sua coragem e pelo seu carácter, e os vilões não faltando a donzela por quem o protagonista se irá apaixonar, a realização de Ridley Scott revela-se de tal modo convencional que até como simples entretenimento as suas mais de duas horas de duração acabam por fazer diluir um pouco essa importante dimensão do cinema. E o aborrecimento só não é geral graças a um excelente leque de actores, desde Russell Crowe a Max von Sydow passando por Cate Blanchett, e a uma bem urdida teia de conspirações que levam à acção e intriga.

De facto, «Robin Hood» não acrescenta nada de novo ao cinema e é mesmo muito parecido com «Gladiator» (2000). Mas isto numa escala bastante inferior até porque no filme em que Russell Crowe arrebatou o Oscar de Melhor Actor existia um vilão de peso a desequilibrar a balança a seu favor: Joaquin Phoenix. E perante o academismo do trabalho de Ridley Scott, custa a acreditar que em 1982 este mesmo homem tenha realizado um dos títulos fulcrais do cinema de ficção científica: «Blade Runner». Assim, «Robin Hood» perde-se na sua ambição reduzindo-se a um mero produto do cinema comercial de expressão menor. E para sermos justos há que perceber que nem sequer faz qualquer sentido tecer comparações com Errol Flynn e Olivia de Havilland em «The Adventures of Robin Hood» (1938), de Michael Curtiz e William Keighley, esse sim, um Robin dos Bosques de acordo com a lenda e com aquilo que se espera do grande cinema.


«Robin Hood», de Ridley Scott, com Russell Crowe, Cate Blanchet e Max von Sydow

 

















O Sexo e A cidade 2




Ensaio sobre a frivolidade


Para quem tenha visto o primeiro filme, «O Sexo e A cidade 2» não passa de uma repetição exaustiva de esquemas mas que agora surgem banais e sem pinga de inteligência criativa. E a sensação resulta pior para quem tenha visto alguns episódios da série televisiva que deu origem aos filmes, já que nesse caso «Sex and the City 2» não passa do estender de uma longa passadeira de frivolidades e humor fácil. Mais grave ainda, é perceber em como a ânsia mercantilista pode assassinar – e o termo assassinar é tudo menos exagerado - o que foi uma ideia inicial extremamente válida e fresca: elaborar um retrato livre e desinibido da mulher moderna, urbana e independente.

De facto, toda a causticidade e genialidade da série que o primeiro filme recuperava um pouco para o cinema perdeu-se nesta sequela. E a prova disso mesmo é constatar que as amigas Carrie (Sarah Jessica Parker), Charlotte (Kristin Davis), Miranda (Cynthia Nixon) e Samantha (Kim Catrall) são hoje caricaturas baratas de si mesmas numa vida anterior e que até o ‘glamour’ que milhões de mulheres procuram nas suas personagens se transformou em algo tosco e desenxabido. Não o mereciam a série televisiva, as admiráveis personagens que esta criou e muito menos os milhões de fãs que certamente se sentirão um pouco frustrados com o que viram neste filme. Não servirá de factor atenuante para os fãs, mas fácil será de concluir que para quem não seja adepto de «O Sexo e a Cidade» o filme não passa de um enorme bocejo muito mal disfarçado com uma ou outra gargalhada fácil aqui e acoli. Quanto aos primeiros, temo que em resultado das justificadas expectativas com que foram ver o filme possam ter saído da sala de cinema com uma certa sensação de fraude a pairar-lhe sobre a mente.


«Sex and the City 2», de Michael Patrick King, com Sarah Jessica Parker, Kim Cattrall, Kristin Davis e Cynthia Nixon




















9








Às portas do Inferno

No ocaso da vida, um cientista cria nove bonequinhos tecnologicamente movidos e envoltos numa pele feita de um tecido rude. Na sua quase inacreditável expressividade e inocência, esses bonequinhos são o único rasto com vida da passagem do homem pela Terra. Num futuro indefinido e apocalíptico reina a desolação e as máquinas, suprema e terrível criação do ser humano, continuam a sua destruição sendo que o alvo principal é agora o pequeno grupo de bonequinhos de serapilheira liderados pelo 9. Visualmente espantoso mas carente de um argumento sólido que desse outro impacto às preocupações sobre o carácter destrutivo da ambição humana, assim acontece «9», o filme.

«9» começou por ser uma curta-metragem de animação nomeada aos Óscares há um par de anos. Com o apoio do genial Tim Burton, o realizador Shane Acker conseguiu convencer os estúdios a produzirem uma longa-metragem suportada no mesmo material. E se a indústria do cinema de animação dá dois passos à frente em termos formais e de matéria-prima para a sua execução, a verdade é que enquanto unidade fílmica, «9» resulta contraditório. Trabalhando a decadência do ser humano enquanto espécie, nas referências aos nazis e ao carácter dogmático da religião parecem residir os alvos principais da fúria da realização. No entanto, a narrativa revela-se demasiado metafórica apesar da simplicidade das suposições a que obriga o espectador.

Mas é pena. Isto porque «9», feito de máquinas e bonecos de trapo, é um dos filmes mais humanos que vi nos últimos tempos. E em momento algum esquece que para se criar algo de bom tal terá que ser feito com… alma. E eu concordo em absoluto. É na alma de cada um que reside o maior poder. O resto resume-se unicamente a convenções e grilhetas que o homem inventou para se proteger na sua debilidade. Mas tal como as máquinas em «9», que se rebelaram contra o homem, também o sistema já não o serve. Oprime-o.



«9», de Shane Acker, com Elijah Wood, Christopher Plummer, outros





Greenberg







Crónica indie de uma ida febril ao cinema


Suponho que ir ao cinema quando se está a meio de uma gripe não seja bom para quem vai e muito menos para a apreciação do filme. Mas como sou avesso a ficar de ‘molho’ desde que me consiga arrastar de casa, arrastado lá fui. «Greenberg», de Noah Baumbach, é um produto típico do chamado cinema independente norte-americano e tem tudo aquilo que à partida se espera deste género de cinema. Pessoas de alguma forma estranhas, relações problemáticas e gente feia. Para além disso, Greenberg é corporizado por um Ben Stiller de tal maneira esquelético que impressiona pela sua magreza.

Stiller é Greenberg, um homem já entrado nos quarenta anos mas que parece nunca ter saído dos vinte. Saiu, isso sim, de um manicómio (vá lá, desculpem, diz-se hospital psiquiátrico) e desde Nova Iorque viaja até Los Angeles onde vai passar uns dias a casa do irmão, este de bem com a vida a fazer na altura uma viagem com a família até ao Vietname. Greenberg é um tipo neurótico e egocêntrico que não consegue passar mais de cinco minutos com alguém sem conseguir arranjar um conflito. Ora isto para quem vem de visita a antigos amigos e acaba por se relacionar com a empregada do irmão não é lá muito saudável. E entre gente que bebe como se não houvesse amanhã, barriguda e profundamente desmazelada com o seu aspecto meio ‘hippie’ e um bonito cão a sofrer de uma doença sofisticada, sem que pouco ou nada aconteça lá se vai fazendo o filme de Baumbach, ele que tem no seu currículo «A Lula e a Baleia»(2005) e «Margot e o Casamento»(2007).

Se esta fosse uma normal crítica de cinema, claro que seria de bom tom evocar o cinema europeu como referência de «Greenberg», nomeadamente Eric Rohmer, mas a verdade é que uma das coisas boas da febre é permitir esta leveza na hora de comentar um filme. Que, diga-se em abono da verdade, pouco ou nada acrescenta às vidas de cada um e como momento cultural ou de simples entretenimento também não possui méritos por aí além. Ou seja, admito que «Greenberg» seja muito para fãs do cinema independente norte-americano mas ainda assim não deixa de ser mais do mesmo. Apesar de tudo, vou tentar rever o filme quando sair em DVD já sem febre e com uma bebida e uns aperitivos a acompanhar.




Greenberg, de Noah Baumbach, com Ben Stiller



Dorian Gray











O retrato tremido de Dorian Gray







 


Mesmo sendo pouco conseguidos, há filmes que podem valer a pena. Não só porque levantam questões importantes e intemporais sobre a natureza humana e até relativamente às opções de vida que cada um toma, mas também porque relembram grandes obras da literatura de sempre. Não é, no entanto, o caso de «Dorian Gray», do britânico Oliver Parker. E não o é porque se trata de um mau produto, de um produto de consumo imediato que de modo algum faz justiça à obra «O Retrato de Dorian Gray», de Oscar Wilde. As razões são várias e prendem-se desde logo com questões técnicas como o desajustado aparato da montagem e uma fotografia pomposa que se baralha na fidelidade estética ao romance ao pretender imprimir ao filme uma áurea de terror gótico. Outra das razões tem a ver com a infelicidade do ‘casting’ quanto ao actor que veste a pele de Dorian Gray. Apesar disso, e como se essas não fossem por si razões suficientes para o fracasso, o que falha sobretudo é a ineficácia na exploração da inquietude e dos tormentos por que a personagem principal irá passar depois da sua longa caminhada até à total decadência moral em busca do prazer sem limites. Como já falhara antes na amostragem da adulteração da personalidade de um jovem cândido e ingénuo alcançada através das ideias perversas de quem joga com a vida dos outros.


 


A história é conhecida, Dorian Gray (Ben Barnes), um jovem aristocrata, chega a Londres depois da morte do avô e conhece o pintor Basil Hallward (Ben Chaplin) que imediatamente se sente seduzido pela beleza singular do rapaz. Basil não só cria a sua maior obra ao pintar o retrato de Dorian como apresenta este a Lord Henry Wotton, um fidalgo cínico que o alicia para a sua visão do mundo onde apenas o que importa é o prazer. A par, como forma de pressão sobre o jovem, vai enfatizando o carácter efémero da maior virtude de Dorian Gray: a sua beleza física. Em contraposição, o pintor Basil age de modo paternalista com Gray pese toda a carga erótica e de desejo que este desperta em si. E enquanto Wotton corrompe definitivamente a personalidade do rapaz transformando-o num libertino perverso sem sentimentos que não sejam os da satisfação dos seus próprios prazeres, este mantém-se estranhamente jovem. E é no retrato do quadro pintado por Basil que se vai sulcando toda a dor que Dorian Gray vai semeando à sua passagem.


 


A melhor forma que Parker arranjou para retratar o desregramento e libertinagem em que Dorian Gray caiu foi a insistência em caricatas cenas de orgia. E quando o eterno jovem resolve dar um novo curso à sua vida, a inquietude que o atormenta é mostrada de forma muito redutora em rápidos ‘flasbacks’ dos seus mais infames actos anteriores. Infelizmente, o actor que corporiza Dorian Gray limita-se a cumprir uma missão sem rasgo e sem a capacidade de atribuir espessura dramática à personagem. Assim, cabe a Colin Firth pegar nas rédeas do filme conseguindo transmitir-lhe alguma carga psicológica sobre um dos mais recorrentes temas de reflexão do homem através das suas diferentes formas de arte: o da eterna juventude. Por outro lado, é à sua personagem que cabe a maior crítica ao espírito hedonista da época vitoriana. Mas até nas maiores reflexões o que fica é a esmagadora conclusão sobre a vida por mais simples que esta possa revelar-se: é que a existir para alguém, a imortalidade não é mais que uma condenação ao degredo se não houver quem acompanhe essa pessoa na sua existência. E no amor.



Filme prescindível.



Um Lugar Para Viver










O sentido da Vida



Sejamos honestos, Sam Mendes não é propriamente um estudante de cinema a apresentar uma tese de licenciatura e o estatuto que granjeou como realizador de cinema não lhe permite o relaxamento criativo que se observa neste dificilmente classificável «Um Lugar para Viver». Mendes, que ganhou primeiramente fama no teatro, mais propriamente no West End londrino, especializou-se no cinema como cronista de uma certa desolação quotidiana tal como o atestam «American Beauty» (1999), com o qual ganhou o Oscar, e o mais recente «Revolutionary Road» (2008). Daí que não seja de estranhar que aborde novamente uma temática ligada a famílias disfuncionais e casais em busca do sentido da vida. Mas se como comédia o filme perde importância em termos de intervenção psicossocial dadas as personagens demasiado caricaturais, como melodrama vive de situações inverosímeis e rebuscadas numa tentativa fútil de validar os dilemas do casal central da trama.



A própria premissa de que o filme parte é desde logo um pouco patética. Um casal de trintões descobre que vai ter um filho e aos seis meses da gravidez de Verona (uma excelente Maya Rudolph) vem também a saber que os pais de Burt (John Krasinski também em bom nível) vão partir para a Europa deixando-os a sós no Colorado onde viviam lado a lado. A partir daqui, Burt e Verona resolvem iniciar uma viagem por quase toda a América do Norte em busca de amigos e familiares que possam servir-lhes de farol para uma vida nova com a filha que está para nascer. E a intenção é mudarem-se definitivamente para junto dos eleitos. A ideia já por si soa um pouco a disparatada, mas olhando a imaturidade e pouca preparação dos dois trintões perdoa-se o que em condições normais seria de todo improvável. O problema é que nas visitas que fazem em locais tão distantes como o Canadá ou a Flórida, os dois só vão encontrar famílias desestruturadas, ‘hippies’ aburguesados e completamente descompensados intelectual e emocionalmente e até um casal que durante o dia adopta crianças como quem muda de camisa e à noite frequenta bares de ‘striptease’. E é claro que na sua quase infantilidade Burt e Verona saem a ganhar e acabam por descobrir o já referido sentido da vida. Pena é que não haja no filme uma única pessoa de comportamento social minimamente aceitável.



Enquanto brincou aos filmes em «Um Lugar para Viver», Sam Mendes gozou de liberdade criativa e até se integrou num mundo que nunca foi o seu, o do cinema independente. Deu ainda um toque intimista à sua realização e misturou num casal alguma ingenuidade com amor confrontando-o com figuras ainda mais excêntricas e outras completamente doidas. Não conseguiu no entanto evitar alguma falha de ritmo da acção que se deve a uma estrutura dramática desconexa já que muitas das cenas quase parecem curtas metragens diferentes entre si. Apesar disso, e do facto de haver pouca verdade neste seu filme, no deve e haver final observamos um ‘road movie’ bastante agradável de se ver e hilariante a espaços que não deve deixar de ser aconselhado a quem gosta de filmes… no cinema. Isto porque «Away We Go» tem bons actores e respeita uma linguagem cinematográfica que a televisão não tem capacidade para transmitir. Quanto a Sam Mendes, que venha o novo James Bond, próximo projecto do realizador. Um filme que vem mesmo a calhar, já que nas histórias do espião ao serviço de sua Majestade abundam as mulheres bonitas e Mendes acabou de se separar de Kate Winslet. A ver vamos se Rachel Weisz não volta para os braços do compatriota.



«Away We Go», de Sam Mendes, com John Krasinski e Maya Rudolph

Green Zone






A Farsa


Antes daquilo que vá aqui dizer logo a seguir, devo confessar que me apetece muito pouco escrever uma crítica convencional sobre «Green Zone: Combate Pela Verdade». A razão é simples, é que o mais recente filme de Paul Greengrass colocou-me de novo frente a frente com todos aqueles motivos que me fizeram um cinéfilo inveterado, compulsivo ou, se preferirem, um tolinho dos filmes. E isso faz-me desejar libertar somente a alma. Ou tudo aquilo que por ela passa neste momento.




Através de uma banda sonora extraordinariamente adequada à história, de uma montagem vertiginosa que me fez ficar agarrado à cadeira da sala de cinema do primeiro ao último segundo, com este seu filme o realizador britânico Paul Greengrass não só provocou em mim um turbilhão de emoções como ainda me fez recordar que a manipulação da informação tanto pode destruir a vida de uma só pessoa como provocar uma guerra lançando milhões de seres humanos no desespero e no caos. Repito, bem lá no fundo eu tinha a certeza que gostar de cinema só poderia ser algo de muito bom e libertador. E ao sair da sala de cinema há poucas horas atrás – escrevo este texto às primeiras horas da madrugada de Domingo - só não gritei bem alto o meu júbilo por pudor. Mas não se pense que em mim só havia alegria. Havia euforia, sim, mas também raiva e desespero. E só um grande filme como «Green Zone» indubitavelmente é poderia levar-me a esta miscelânea de sensações e à quase perda de controlo sobre mim mesmo.



Todos sabemos que os aliados, com os EUA à cabeça, invadiram o Iraque sob o pretexto de que o exército iraquiano tinha na sua posse poderosas armas químicas de destruição massiva. Hoje sabemos também que nunca foram encontrados esses famosos arsenais nos desertos daquele país do médio oriente. Mas é na tentativa de encontrar esse armamento que em 2003, poucas semanas após a invasão do Iraque, o Sargento-chefe Roy Miller (Matt Damon) e a sua equipa são enviados para o Iraque. Depois de várias informações tidas como seguras se revelarem totalmente falsas, Miller não só começa a desconfiar que algo ali não bate certo como se apercebe de alguma sabotagem com vista a inviabilizar o seu trabalho. Pela história passeiam-se ainda Clark Poudstone (Greg Kinnear), um alto funcionário norte americano que se revela um facínora e um impiedoso manipulador, Martin Brown (Brendan Gleeson), um agente da CIA recto e de bons instintos, e ainda Lawrie Dayne (Amy Ryan), uma jornalista demasiado ingénua e muito influenciável por fontes que não questiona.



Como pode facilmente perceber-se, baseado no livro de Rajiv Chandrasekaran e com guião de um dos mais importantes argumentistas de Hollywood, Brian Helgeland (ele que trabalha regularmente com Clint Eastwood e escreveu o argumento para «Robin Wood», de Ridley Scott, fita ainda por estrear), o filme explora a autêntica farsa que americanos e ingleses montaram como desculpa para invadirem o Iraque e deporem Saddam Hussein. Daí que muito mais que um filme de guerra, «Green Zone» é um ‘thriller’ que tem como pano de fundo a guerra no Iraque. Uma guerra que ainda hoje, sete anos depois da invasão, se prolonga. De câmara na mão, o que ajuda à acção trepidante a que assistimos, Greengrass dirige não só uma fabulosa equipa de actores como até o espectáculo pirotécnico que idealizou resultou numa impressionante beleza estética. Se é que se pode afirmar algo do género quando olhamos uma cidade a ser destruída pelas bombas inclementes que matam tudo o que mexe em seu redor sem diferenciar culpados ou inocentes. E se há verdades que doem, esta que o filme sugere, embora não possa ser considerada uma verdade total porque faltam elementos que provem o embuste, dói exactamente por isso mesmo: dói porque dificilmente serão julgados e condenados os grandes culpados da morte de milhares e milhares de cidadãos iraquianos e muitos militares do lado dos aliados.



Termino este texto voltando ao seu princípio porque é por filmes como este «Green Zone» que ao longo dos anos me tornei um apaixonado por cinema. Isto, pese o grande objectivo de Paul Greengrass ao realizá-lo, suponho, comigo não tenha funcionado. Isto é, não senti que tenha resultado como catarse para a culpa que a humanidade deve necessariamente sentir sempre que inventa uma guerra onde morrem tantos de nós. Ainda assim, o filme valeu e de que maneira como grande momento de cinema. Um filme, aliás, que ninguém deve perder. E não sendo meu hábito fazê-lo, não resisto neste caso à óbvia comparação com «The Hurt Locker». Sendo um filme de guerra que tem igualmente como cenário o Iraque e tendo sido vencedor de uns quantos Óscares, o filme de Kathryn Bigelow não passa de uma brincadeira de meninos confrontado com «Green Zone». Denso, interventivo, vertiginoso, esteticamente irrepreensível, brilhantemente protagonizado e fundamental é assim este imperdível «Green Zone: Combate Pela Verdade».

«Green Zone», de Paul Greengrass, com Matt Damon, Brendan Gleeson, Greg Kinnear e Amy Ryan