domingo, 31 de outubro de 2010

Nas Nuvens











A condição humana



A crise económica e financeira que afecta o mundo pode não ser má para todos. Na verdade, para Ryan Bingham (George Clooney) os efeitos são positivos. Isto, porque aumentaram as solicitações naquilo que faz profissionalmente e por esse motivo vai manter-se no ar cruzando os céus nos aviões da American Airlines amealhando milhas naquele que é o seu grande projecto de vida: ganhar um cartão muito exclusivo e ter o seu nome inscrito num dos aviões da companhia aérea. E que faz profissionalmente Ryan Bingham? Numa altura em que a palavra de ordem é eliminar desperdícios alguns grandes quadros das empresas são vistos como tal e Bingham é o homem a quem compete dar a triste notícia do seu despedimento e suavizar os efeitos negativos do choque de quem é dispensado substituindo nesse papel os administradores das próprias empresas. O caricato aqui, é a objectividade profissional com que a personagem de Clooney assume as suas funções: ele lê a pessoa e transmite-lhe a forma menos detestável de uma notícia que é em tudo absolutamente odiosa.



Ryan Bingham é também um homem que não tem – por opção – qualquer relação afectiva séria com ninguém. Mas, no filme, acaba por encontrar uma alma gémea, Alex (Vera Farmiga), e ambos cruzam agendas para poderem pernoitar juntos em hotéis impessoais de cidades onde se encontram meramente de passagem. No entanto, o curioso é que Ryan Bingham acaba por não existir sem que o associemos a George Clooney. Ele é um tipo amável, charmoso, educado e atencioso no papel de um homem que o espectador deveria à partida odiar. Mas não e tal deve-se a Clooney. Será isto a prova de ter existido um erro de ‘casting’ por parte de Jason Reitman («Juno», 2007), o realizador? Não, de modo algum, esse é mesmo o grande trunfo do filme. E isso acontece quando a vida de Bingham corre o risco de se alterar radicalmente à chegada de Natalie (Anna Kendrick), uma jovem acabada de sair da universidade, ela que propõe que os despedimentos passem a ser feitos por vídeo-conferência. Não só a mais-valia das qualidades de um homem como Ryan Bingham se perderiam como o seu estilo de vida teria de ser dramaticamente alterado. E é então que as debilidades do ser humano presentes na personagem de Clooney vêm ao de cima e o filme adopta, como referido, a sua mais espantosa qualidade que nos atinge, fere e seduz tudo em dose cavalar: essa qualidade prende-se com a reflexão que a partir de então é desenvolvida sobre a condição humana através da singularidade de um homem que criou um escudo para si mas que fica completamente desprotegido no momento em que perde o controlo da situação. E que vemos acontecer nessa altura? Simples, o trivial. O seu coração endurecido torna-se dócil acabando por deixar que o amor aconteça. No entanto, é possível que Bingham tenha esticado demasiado a corda e a sua opção de viver uma solidão assumida acabe por se tornar numa inevitabilidade da vida. É pois muito provável que Bingham já não consiga evitar tornar-se definitivamente num homem só.



Jason Reitman, o realizador, é um pensador que usa as imagens para debitar ideias. O seu campo de observação é o ser humano e a sociedade onde este se insere. Neste filme, uma comédia apenas na aparência, Reitman recusa-se a dar-nos esperança. Pelo contrário, pela tela passam homens e mulheres despedaçados por um sistema económico alheado das pessoas e um homem (Clooney na sua prestação) que se usa das suas qualidades humanas para fazer o papel de Diabo. Numa narrativa ágil sem pontos mortos e onde sobressai o ‘saber fazer’ do realizador, reflecte-se sobre a fugacidade das relações humanas e a pequenez do homem numa máquina trituradora criada por si. Mas o lado cáustico de Reitman é ultrapassado pela prestação de um George Clooney que se vale do homem que é para construir um perfil psicológico a todos os títulos notável. O perfil de alguém aparentemente seguro de si, sedutor com as mulheres, amável com os homens e irradiando classe por onde passa, mas, afinal, tão amargamente frágil. Onde é que eu já vi alguém assim?





«Up in the Air», de Jason Reitman, com George Clooney, Vera Farmiga e Anna Kendrick

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