domingo, 31 de outubro de 2010

O Fabuloso Destino de Amélie [2001]


















Amélia dos olhos doces




Desculpem tão rebuscada citação, mas Voltaire disse um dia que "a delicadeza é para o espírito aquilo que a graça é para o rosto". E Voltaire não teve a felicidade de conhecer Amélie, Amélie Poulain. Amélie, essa, tem um sorriso garoto a baloiçar-lhe nos lábios, um olhar meio malandro a observar o mundo que a rodeia como se a cada momento se preparasse para pregar uma partida a alguém. Vê tudo através de uns olhos grandes, enormes, do tamanho das fantasias que lhe invadem constantemente o cérebro.

No princípio foi assim: Amélie teve uma infância infeliz. Vítima de uma enfermidade que afinal não tinha mas que lhe fora erradamente diagnosticada, a pobre viveu uma meninice arredada do convívio com as outras crianças. Perdeu a mãe e acabou por perder também o pai. Uma porque morreu e o outro porque não quis mais a vida. Jean-Pierre Jeunet, o realizador, começa o seu filme muito ao jeito de «Magnólia», assentando a génese da narrativa num processo resultante do efeito dos acasos que se conjugam formando estranhas coincidências.

Depois: não, uma infância infeliz não tem necessariamente que originar um adulto amargurado. E Jeunet inicia sob este pressuposto uma áurea de teórico positivismo sobre a vida e seus cambiantes que não mais abandonará até final.

E também: falei aqui de Voltaire, chamo agora a este comentário Oscar Wilde. Este afirmou, grosso modo, que "o egoísta não é o que vive como quer mas o que exige que os outros vivam como ele quer". Certo, Sr. Wilde, mas reparo que depois o senhor afirmou também que "o altruísta é aquele que deixa os outros viverem sem interferir nas suas vidas". Errado, nada de mais errado, prova-nos Amélie Poulain.

«Le Fabuleux Destin d’Amélie Poulain», no seu título original, é um filme longe do tradicional rumo do cinema francês. E também do cinema europeu o que eventualmente terá acarretado sobre si o ostracismo do Festival de Cannes. Por vaidade e presunção? Simples incompetência analítica? Talvez não uma ou sequer a outra, uma mera disfunção crítica, quem sabe, um erro crasso, acredito, uma grande injustiça, não duvido. Longe do habitual realismo tão obscuro quanto pessimista do citado cinema europeu, este filme evoca um certo imaginário infantil aqui transportado para a nostalgia de que são formadas as memórias dos adultos. Um filme onde se cruzam histórias de uns, os da ficção, que se fundem nas de outros, os da realidade. Histórias filmadas muito a propósito no típico bairro parisiense de Montmartre. Um filme que é um tributo à cor e à alegria, imensamente rico nas variadas personagens que o percorrem. Personagens de ficção copiadas da realidade que vivem as suas vidas de forma quase resignada, incapazes da ambição da verdadeira felicidade. É Amélie quem se intromete nessas vidas e lhes procura, por vezes com tão pouco, dar um novo sentido. E, embrenhada em tarefas altruístas, nem se apercebe como ela mesma receia dar esse passo na sua vida, como ela mesma tem medo de ser feliz.

E é assim que decorre uma das mais interessantes comédias do cinema francês toda ela passada num clima impregnado de fantasia e brilho. Um filme tecnicamente excelente, recheado de efeitos especiais que permitem um estado de espírito estranho pela suave tranquilidade que a sua visão transmite. Diria ainda que é um filme baseado em bons princípios, em pequenas coisas de que às vezes julgamos poder prescindir no dia-a-dia mas que poderão revelar-se essenciais ao equilíbrio emocional de cada um.

Destaque para Audrey Tautou a actriz que protagoniza Amélie, já que o seu rosto cândido espelha as boas intenções do filme e o seu trabalho de interpretação é excelente. Destaque seguinte para a banda sonora que nunca esquece que é a Paris dos parisienses e não a Paris das capas de revista onde se desenvolve a narrativa. Destaque final, num filme intenso em personagens caricaturais, para aquele indivíduo meio esquizofrénico, meio paranóico, que vive numa das mesas do café onde Amélie trabalha. Um tipo que se entretém a destruir as suas relações amorosas registando num pequeno gravador suspeitas em forma de delírios. Hilariante, no mínimo.

Por vezes sabe bem ver um filme assim.




«O Fabuloso destino de Amélie», de Jean-Pierre Jeunet, com Audrey Tautou e Mathieu Kassovitz



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