domingo, 31 de outubro de 2010

Anticristo












O falso profeta



Desde «Dogville» (2003) que a minha visão do trabalho de realização cinematográfica de Lars von Trier se alterou radicalmente. Para mim, o dinamarquês, criador juntamente com Thomas Vinterberg do manifesto Dogma 95 em prol de um cinema mais puro, realista e menos comercial, passava a mero provocador e usava o seu cinema como um meio para atingir esse fim que em alguns é positivo mas em si é nefasto. E em «Anticristo», Lars von trier ultrapassa todos os limites da razoabilidade edificando uma obra – de arte, a sua arte, não a nego – a todos os títulos violenta cruzando o masoquismo com o sadismo tendo ainda a ousadia de assumir publicamente que esta foi a forma que encontrou para ultrapassar a sua própria depressão, o que faz com que apeteça perguntar que culpa têm o cinema e o espectador do seu estado doentio. Como resultado, o que se observa nesta espécie de catarse para si próprio através da dor emocional, da agonia física e de uma estilização visual tão aberrante quanto excessiva é a prova da misoginia de que sempre deu conta nos seus filmes.



Não existe amor na relação entre Ele (William Dafoe num papel a que se adequa na perfeição) e Ela (Charlotte Gainsbourg numa interpretação absolutamente corajosa). O que se vê é sexo animalesco onde até o desejo parece andar arredio e o acto serve apenas para ajudar a expiar uma profunda e dolorosa existência feita apenas de dor a partir do momento em que o filho de ambos morre acidentalmente enquanto estes se perdiam numa constrangedora cena de sexo. Depois da tragédia, ela adoece psicologicamente e ele, psiquiatra, resolve que a melhor terapia será levar a mulher a enfrentar os seus medos. E com esse propósito em mente viajam até uma cabana perdida no interior de uma frondosa floresta, onde, lá chegados, acontece do bom e do bonito. Através de uma câmara nervosa bem ao jeito do movimento que fundou, Lars von Trier filma então a mais abjecta das vivências que até hoje observei num casal, atingindo uma dimensão de terror visual que faz com que este filme seja de difícil aconselhamento a quem quer que seja dada a incomodidade que provoca.



Surrealista e estilizado de um modo absolutamente pretensioso, «Antichrist» nunca poderia tornar-se na homenagem ao cineasta russo Andrei Tarkovski como o realizador dinamarquês pretendeu. Ainda assim, realce para algumas imagens monocromáticas com a música de Händel como pano de fundo e a cena final das mulheres no bosque num simbolismo que evoca uma espécie de redenção que sabe a pouco, muito pouco. Noutros artistas a doença psicológica de que padeceram levou a que edificassem obras belíssimas que são a prova da grandiosidade humana. Em Lars von Trier não. Nele, na sua arte, reinam o pessimismo, o mal-estar e um reiterado olhar doentio e amargo sobre o seu semelhante. E não, eu não assino por baixo.







«Antichrist», de Lars von Trier, com Charlotte Gainsbourg e William Dafoe

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