domingo, 31 de outubro de 2010

O Cavaleiro das Trevas













Humanos, Demasiado Humanos

Heath Ledger morreu alguns meses atrás, já o sabíamos. Mas que o actor australiano, cujo mediatismo subiu em flecha depois de ter protagonizado um dos componentes do par amoroso formado por dois homens em «O Segredo de «Brokeback Mountain», deixara para a posteridade uma portentosa interpretação de Joker em «O Cavaleiro das Trevas», de Christopher Nolan, sabemo-lo agora. Na verdade, o Joker de Heath Ledger revela-se uma figura psicótica, é certo, mas mostra-se sobretudo um ser humano tremendamente inteligente e, por via da inquietude que o atormenta, alguém profundamente assustador na dimensão trágica, caótica e massiva dos crimes que perpetra. Este é um Joker que ri desalmadamente, mas, note-se, um Joker que ri com a força da tristeza que o condiciona, que faz da anarquia o seu mundo, que não quer recompensas, não se sabe para onde vai e que procura fazer humor fabricando uma espécie de ironia trágica no destino alheio. O Joker do falecido Heath Ledger é mau. Mas mau não apenas por estar na sua natureza sê-lo; é mau por estar no seu objectivo lúgubre pretender fazer crer que a maldade está na natureza humana, faz parte da sua essência.



Mas há mais neste suposto «blockbuster» de Verão para além do inquietante Joker de cara esfacelada por duas cicatrizes enormes e uma língua viperina que tão depressa está dentro como fora da boca. Em «O Cavaleiro das Trevas» observamos um filme impressionante pela forma como contorna a vulgar fita de super-heróis vindos da BD, vemos desenrolar-se perante nós uma trama reconfortante no modelo que encarnou para si de filme sério e pensante sobre – lá está – a natureza humana. E neste contexto, o Batman - excelentemente representado por Christian Bale - é apenas mais um ser humano entre tantos. Um (super) herói cujo poder reside nas potencialidades que a riqueza herdada dos pais lhe possibilitam, na educação e formação recebidas e no uso que faz da tecnologia de ponta na luta contra o crime. Nolan, o realizador, foi igualmente buscar para a sua história uma das figuras da história original: Harvey Dent (um Aaron Eckhart competente e imbuído do espírito dramático da realização do inglês). E com a ajuda do Tenente Jim Gordon (Gary Oldman contido como poucas vezes temos oportunidade de assistir nas interpretações do actor), e do próprio Batman, subverte no final do filme o verdadeiro decurso das coisas para evitar evidenciar a defendida – pelo Joker –
inata perversidade da alma humana.



«O Cavaleiro das Trevas» é um filme maior, é a prova da superior capacidade de Christopher Nolan («Memento», «Inmsonia»...) para a realização de filmes, mas é sobretudo uma tese que atesta a força dos autores da BD no seu processo criativo. Eles que não se limitam, como pejorativamente alguns defendem, a fazer uns desenhos engraçados em quadrinhos e a fantasiá-los com argumentos ligeiros a não requererem um muito apurado esforço mental. Com este filme, Nolan tratou brilhantemente uma outra arte que não a sua, a BD. Mas, fazendo aquilo que melhor sabe, foi o cinema quem mais lucrou com o seu excelente trabalho. E se Gotham era até aqui uma cidade amargurada, perseguida por criminosos indizíveis e pouco ou nada condizentes com a condição humana, tudo isso mudou. A partir de «O Cavaleiro das Trevas», Gotham City passa a ser uma qualquer cidade do mundo moderno atolada nos seus próprios pesadelos e nos criminosos que os provocam e fazem deste um mundo por vezes cruel de se viver.



«O Cavaleiro das Trevas», de Christopher Nolan, com Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhall, Gary Oldman, Morgan Freeman e Michael Caine

Sem comentários: