domingo, 31 de outubro de 2010

Precious












Flor à beira do pântano



Década de oitenta, ghetto de Harlem, Nova Iorque, uma jovem negra de 16 anos que sofre de obesidade doentia está grávida do seu segundo filho. E quem é o pai de ambos? O seu próprio pai biológico. Mas esta é só parte da miséria em que a jovem Precious vive. Para além dos abusos sexuais de que é vítima por parte do pai, também a mãe (Mo’Nique), uma mulher monstruosa, se aproveita da filha a todo e qualquer nível, incluindo a usurpação dos subsídios do estado a que Precious tem direito, exploração desta no trabalho doméstico e, como se não bastasse, também se aproveita sexualmente da pobre adolescente. Se juntarmos a isto uma opção conceptual por parte da realização cujos recursos estilísticos privilegiam a realidade em detrimento do cinema espectáculo facilmente concluímos que «Precious», de Lee Daniels, é um grito (para não dizer berro) de alerta preenchendo com todo o propósito uma das funções do cinema: a denúncia.



Toda a história se constrói ao redor de pormenores sórdidos que a narrativa faz questão de sugerir evitando muito acertadamente o exibicionismo gratuito e a tentativa de arrancar do espectador uma lagrimazinha fácil. Por outro lado, a interpretação sóbria da actriz que dá corpo a Precious, Gabourey Sidibe, acaba por contribuir para o realismo cru, e cruel, de uma condição vivida nas fronteiras mais mórbidas do ser humano. Para sobreviver à crueldade da vida a que é forçada, Precious sonha com uma realidade absolutamente desconexa da sua e a uma distância inatingível para alguém a viver uma conjuntura tão desfavorável quer pela pessoa que é como pelo meio sociocultural que a rodeia. Pode até parecer uma barbaridade dizê-lo, mas aqui se prova que até o sonho não está acessível a todos. E sem querer desvendar a história a quem ainda o não viu, como se a prová-lo quase no final do filme o destino volta a pregar mais uma perversa partida a Precious.



Sendo um filme de causas, é interessante verificar as presenças de Mariah Carey (ela é a funcionária da segurança social) e de Lenny Kravitz (o enfermeiro John) num filme que teve a bênção da todo-poderosa Oprah Winfrey. E se a esperança para Precious é um simples exercício de retórica, para outras Precious, no feminino ou no masculino, talvez ainda se vá a tempo de agir. E essa terá sido a razão fulcral para a realização de um filme onde há ainda lugar para abordar ao de leve o preconceito homossexual através da lésbica e muito bonita Ms. Rain (Paula Patton), ela, professora numa escola alternativa, que é a primeira a dar a mão a Precious. Mas um filme, deve dizer-se, que caminha perigosamente à beira do abismo sem no entanto chegar a despenhar-se. E ainda bem que assim é, concluo.





«Precious», de Lee Daniels, com Gabourey Sidibe, Mo’Nique, Paula Patton, Mariah Carey e Lenny Kravitz

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