domingo, 24 de fevereiro de 2013

Bestas do Sul Selvagem

 
 

 

Mississipi selvagem

 

Perdidos numa lixeira pantanosa ao largo de um dique junto ao Rio Mississipi vivem Hushpuppy [Quvenzahané Wallis] e Wink [Dwight Henry], o seu pai doente. Num cenário eminentemente apocalíptico, a ideia da realização de Benh Zeitlin é a de fazer emergir perante a miséria material e a ausência quase total de meios de sobrevivência a riqueza do espírito humano. E para isso nada mais conveniente que o sul dos Estados Unidos, desde sempre vítima da tirania do homem e da própria natureza, e uma menina doce e frágil mas sem nunca perder a determinação. E é nesta busca de equilíbrio entre a fantasia apocalíptica e a realidade dura que «Bestas do Sul Selvagem» vai arrebatando prémios em tudo o que é festival de cinema e atingindo o âmago de espectadores à escala global.

De facto, neste cinema a raiar o encantatório existem pormenores concepcionais que fazem suspeitar da sua própria ingenuidade. E isso é de todo determinante tanto mais que a ingenuidade deliciosa de Hushpuppy como elemento cerebral e emocional da trama é o que de mais sedutor possui o filme. Não que o seu realismo mágico me incomode ou mesmo a ambição visual que este ostenta. Mas num cenário que se quis de pureza e de força humana interior o que se verifica é uma espécie de poema oco que vive da força da banda sonora, do artificialismo visual e de uma mensagem de esperança que não se confirma.

Apesar de tudo, «Bestas do Sul Selvagem» é cinema agradável onde nos toca particularmente a personalidade encantadora de uma menina que na óptica do filme tendo aparentemente tudo afinal não tem nada. Uma menina que sofre e chora como qualquer outra menina da sua idade mas que se recusa a desistir fazendo das fraquezas as suas forças. Não havendo, por esse motivo, qualquer necessidade de a pôr a correr entre fogos postiços com a música como pano de fundo. Não havia qualquer necessidade, repito, até porque em paralelo é-me até bastante simpática a ideia reinante de que é possível vivermos como quisermos tendo ainda assim a solidariedade da comunidade onde estamos inseridos, mesmo que esta viva debaixo de lema igual.

E de facto não podendo tudo, quanto mais forte for o espírito humano maior é a esperança perante as adversidades. E no doloroso caminho percorrido pela pequena Hushpuppy obrigada a atingir precocemente uma maturidade que não seria para a sua idade, fica todo o meu carinho por este filme que pese a sua ambição filosófica se mostra algo vazio de conteúdo revelando-se no entanto visualmente potente.

 

«Beasts of the Southern Wild», de Benh Zeitlin, com Quvenzahané Wallis e Dwight Henry


sábado, 23 de fevereiro de 2013

A coragem do ministro

 
 
 
A licenciatura de Miguel Relvas é uma prova de fraqueza. Sendo a sua obtenção legal ou não, esta tem contra si o facto de não ter por detrás o gosto pelo conhecimento ou sequer o desejo pela preparação em determinada área. Não, a licenciatura de Relvas visava somente atingir um alegado estatuto que na sua forma curta de ver o mundo lhe dava autoridade não percebendo que fazendo-o como fez só denunciou a sua debilidade. Para Relvas a licenciatura protegia-o, dava-lhe coragem, permitia-lhe o à-vontade com que debita agora opiniões que roçam o insulto. A licenciatura de Relvas pode comparar-se àquele café que é bebido em momentos de nervosismo ou ao cigarro que o adolescente fuma à procura de ser confundido com o adulto que ainda não é.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Seis Sessões

 
 
 

 

Virgem aos 38

 

Mark O’Brien [John Hawkes] tem 38 anos de idade e o sonho de se completar como homem. Tendo contraído Poliomielite em criança, Mark está paralisado do pescoço para baixo e vive muito dos seus dias dentro de um pulmão mecânico. No entanto, como qualquer homem Mark tem necessidades sexuais e é capaz de manter relações. Para isso, Mark contrata uma terapeuta sexual [Helen Hunt] que o vai ajudar a libertar-se da ansiedade que o afecta e levar a perder a virgindade.

Dir-se-ia que «Seis Sessões» tem uma premissa difícil. Mas aquilo que observamos, num mundo cada vez mais à deriva, é a prova absoluta de que há esperança para o ser humano. Sem cair em moralismos patéticos nem na habitual autocomiseração, o filme de Ben Lewin transforma-se num legado sobre como ser positivista perante a tragédia humana, com sentido de humor e emoção, muita emoção. O que só demonstra a enorme sensibilidade da realização para lidar com uma temática nada fácil à partida.

Ao dizer isto não nego o drama que se vive em «Seis Sessões». Ele existe, como o provam as lágrimas dos protagonistas e as que muitos dos espectadores não negarão testemunhando a emotividade de uma história a todos os títulos admirável e onde o sexo, personagem central da trama, é também ele tratado com uma dignidade só possível para quem o entende da forma mais correcta. Ele, o sexo, é um instrumento de prazer mas é igualmente a essência do amor e um meio essencial para o equilíbrio psicológico dos homens e das mulheres.

Lamenta-se o final óbvio e fácil do filme, mas tudo é perdoado a esta obra onde Helen Hunt surge novamente como uma das maiores actrizes do cinema contemporâneo, sendo, ainda, e quase a completar cinquenta anos de idade, uma mulher de uma irresistível sensualidade num corpo perfeito. Espantosa Helen Hunt, actriz e mulher, como espantosa é a interpretação de John Hawkes - como Mark O’Brien – e de William H. Macy, como padre, confessor e amigo numa das melhores composições que vi fazer a este actor que já leva tantos anos de carreira e uma infindável lista de participações mais ou menos secundárias em títulos relevantes de filmes.

Por tudo isto, «Seis Sessões» dispensa os tão falados prémios da Academia. Mas reclama ser visto. E vendo-o quem fica a ganhar somos todos nós. Nós os espectadores de cinema, mas sobretudo nós os seres humanos habitantes deste mundo onde a humanidade parece cada vez mais confusa nos seus valores e naquilo que realmente importa para a vida. Atrevam-se.

 

«Six Sessions», de Ben Lewin, com John Hawks, Helen Hunt e William H. Macy

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

O cinema das pessoas para as pessoas



Aceito a ambição e o orgulho de quem faz [bom] cinema. É justo, é legítimo. Cinema pode ser mais ou menos elitista, mais ou menos abrangente, mais ou menos pensado, mais ou menos leve. Cinema é arte mas também entretenimento. Mas tal como não pode ser confundido com o circo também não deve ser entendido como uma simples peça de museu. Nem veículo de mera promoção individual. Cinema é feito por pessoas e para as pessoas. Por isso, toda a minha simpatia vai para estes senhores na cerimónia dos Oscar. Eles representam várias vertentes do cinema. Entre elas, a razão, a emoção, a beleza e a história. Um cumprimento muito especial para a fantástica Helen Hunt em «Seis Sessões», muito graças a si um filme difícil mas extraordinariamente comovente.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Psycho

 


Filme emblemático do mestre do ‘suspense’, esta obra representa igualmente uma vertiginosa viagem aos labirínticos tormentos da mente humana. Uma viagem tão sinistra quanto fascinante.

Uma jovem, Marion Crane (Janet Leigh), decide roubar uma elevada quantia de dinheiro ao seu patrão com o intuito de poder ficar definitivamente com Sam (John Gavin), o seu amante. Na posse dos 40 000 dólares do furto, Marion lança-se à estrada. Faz-se noite e chove copiosamente, a mulher acaba por sair para uma estrada secundária e dirigir-se a um motel, o Motel Bates. Ao largo do edifício de hospedagem apenas se vislumbra no topo de uma colina uma mansão de estilo gótico, tão imponente quanto assustadora, mesmo de visão arrepiante. É naquele lugar que vivem Norman Bates (Anthony Perkins), que dirige o motel, e a sua mãe, aparentemente uma senhora já idosa mas de personalidade autoritária e possessiva que oprime o filho.



Esta é a premissa inicial para “Psycho”, obra máxima do cinema de terror onde assume especial relevância a construção do perfil psicológico das personagens, em especial a de Bates numa interpretação magistral de Anthony Perkins. Esta premissa representa, aliás, uma das mais surpreendentes características da realização de Hitchcock ao rasgar todas as convenções até então do cinema do género matando a sua protagonista decorrido somente cerca de um quarto de filme. Em boa verdade, tudo o que sucede até que o espectador é encaminhado para o Motel Bates perde qualquer significado posterior resultando apenas num estratagema para alcançar esse objectivo. É então que se desenvolve o essencial da acção, num desfilar brilhante e ininterrupto de intriga, ‘suspense’ e genuíno terror. Terror esse onde não existe espaço para o elemento sobrenatural já que tudo o que nos inquieta resulta dos mais recônditos labirintos da mente humana. Tudo nele é real, ou seja, passível de acontecer. É quando Lila (Vera Miles), a irmã de Marion, intrigada com o desaparecimento desta, segue na sua busca na companhia de Sam, o amante da irmã. Também no encalço da desaparecida, embora mais preocupado na recuperação do dinheiro, vai o detective Arbogast (Martin Balsam).



O filme, com argumento de Joseph Stefano, é uma consequência do livro de Robert Bloch. No entanto, várias alterações foram promovidas na obra de Hitchcock uma vez que o livro se baseava na história verídica de Ed Gein, um psicopata do Winsconsin que por volta dos anos 50 aterrorizou a pequena localidade campesina onde nascera e vivia. Assim, a acção foi trasladada de uma quinta para um motel e o lúgubre protagonista da história tornou-se num indivíduo fisicamente mais delicado. Neste âmbito, é ainda de realçar a sóbria corporização idealizada por Perkins de uma personagem sinistra que vivia assombrada pelo fantasma da mãe. Nesta realização sublime, são inúmeras e memoráveis algumas cenas de tensão. Verdadeiramente antológicas são a cena do assassinato no chuveiro onde a tensão se adensa com o som dos violinos da fabulosa partitura de Bernard Herrman a acompanharem o percurso do punhal até se enterrar dolorosamente no ventre da vítima, não descurando o pormenor posterior da água envolvida em sangue escoando do banheiro, e a cena do monólogo final. São cenas que perdurarão para sempre indiferentes ao definhar do tempo.



Não sendo, talvez, a obra de Hitchcock mais reputada pelos especialistas, onde filmes quase todos eles da sua fase americana como “A Janela Indiscreta” (1954) e “Vertigo” (1958) possuem um lugar de relevo, “Psycho” é, no entanto, e muito justamente, um dos mais adorados filmes por parte de cinéfilos de várias gerações e o seu maior sucesso comercial. Mas não estão sós, os cinéfilos. Em 1989, a reconhecida revista inglesa “Time Out” questionou 60 realizadores de todo o mundo sobre os 100 melhores filmes de sempre. “Psycho” foi escrutinado na 14ª posição, o que é um dado verdadeiramente estimulante para um filme do género.



Em 1983 e 1986 surgiram as inevitáveis sequelas. Uma levada a cabo por Richard Franklin, a primeira, e a outra pelo próprio Anthony Perkins que protagonizou os dois filmes. Em 1998, Gus Van Sant dirigiu um ‘remake’ que respeitava escrupulosamente o enredo da obra original. Nenhum destes filmes logrou ultrapassar, sequer aproximar-se, do fascínio macabro que o trabalho de Hitchcock alcançou. Para isso muito contribuíram a fotografia de John L. Russel, um sombrio e inigualável preto e branco, e a já referida música de Bernard Herrman composta de instrumentos de cordas. Tecnicamente perfeito e contando com interpretações sem mácula de todo o elenco, “Psycho” é pois um filme deslumbrante onde a espiral de tensão se adensa na aturdida mente do espectador.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Barbara




 

Sobrevivência

 

«Barbara», do alemão Christian Petzold, é um objecto singular no panorama actual dos filmes em exibição no nosso país. Detentor de uma estética naturalista, através de Barbara, uma médica que é desterrada para uma pequena cidade de um ainda mais pequeno hospital junto ao Mar do Norte, Petzold filma a Alemanha comunista de inícios dos anos oitenta. E fá-lo sem cair nunca na grandiloquência das ideias fortes, preocupando-se muito mais com a recuperação moral e emocional de alguém que é vítima de um sistema áspero, totalitário e castrador evitando o caminho mais fácil e tantas vezes visto, o da decadência.

Interpretada por Nina Hoss, que aproveita a sua beleza inata sem recorrer à maquilhagem excessiva, Barbara mostra-se uma mulher aparentemente fechada para o mundo que a rodeia, vivendo tão isolada deste como isolado do mundo moderno vivia o regime da RDA. Para Barbara apenas parece interessar o passar dos dias que a leva a encontros fugazes com o namorado, um alemão ocidental, até ao dia em que iniciará a fuga que a levará definitivamente para junto deste e a afastará da opressão da Stasi, a polícia política que a visita com regularidade. Enquanto isso, vai ganhando proeminência André [Ronald Zehrfeld], o seu chefe no hospital que ao invés de cumprir a sua missão de informador se torna no protector da sua nova colega – ele que é também uma vítima do sistema.

Numa narrativa discreta mas eficiente, «Barbara» vai-se revelando aos poucos cinema maduro onde importa muito mais o lado humanista de uma sociedade deprimida pelo regime que a atormenta que propriamente a denúncia dos seus carrascos. Ainda assim, faltam picos de emoção e uma verdadeira trama a este cinema introspectivo, quase intimista, que aproveita a atmosfera rural para se impor ainda mais como um fresco numa tela que convida à contemplação sem necessidade de exercer a reflexão. O mais grave no filme acaba afinal por se quedar numa dúvida importante ao observarmos a aproximação afectiva de Barbara a André. Isto é, a de saber se o namorado ocidental de Barbara seria o seu verdadeiro amor ou um simples meio de fuga a uma vida que julgava não querer mais. Mas essa é uma resposta que o silêncio emocional de Barbara jamais nos poderia fornecer.

 

«Barbara», de Christian Petzold, com Nina Hoss e Ronald Zehrfeld

 

Argo

 
 
 

 

Argo, um filme real

 

Pela sua premissa, «Argo» era aquele filme que não me suscitava muito interesse ver. De facto, a história de um resgate pelos serviços secretos de alguns diplomatas americanos em solo iraniano aquando da chegada de Khomeini ao poder em finais dos anos setenta, parecia-me algo requentada por ser um tema demasiado gasto. Nada de mais errado. Depois de «Vista Pela Última Vez» [2007], mas sobretudo após «A Cidade» [2010], com este seu recente trabalho, Ben Affleck demonstra ter encontrado o seu meio natural: a realização de filmes.

De facto, «Argo» está espantosamente dirigido e aquilo que poderia ser uma banal história de espiões infiltrados nas convulsões políticas um pouco por todo o mundo, transforma-se num espantoso ‘thriller’ onde o drama e o humor caminham de mãos dadas numa espiral de tensão que cola o espectador à cadeira da sala de cinema do primeiro ao último segundo do filme. E tanto assim é, que falar na fotografia irrepreensível, na espantosa direcção artística e outros atributos técnicos só faria com que nos perdêssemos do essencial: o excelente momento de cinema que uma realização poderosa de Ben Affleck proporciona aos amantes da 7ª arte.

E é ao som de Rolling Stones, Van Halen, Led Zeppelin e Dire Straits que «Argo» se agiganta como que iluminando a fabulosa interpretação de Alan Arkin [o produtor Lester Siegel] e, por outro lado, relembrando estrondosamente mestre Hitchcock, tal não é o nível de ‘suspense’ que a história atinge conseguindo obter do espectador de cinema o carinho e a excitação que só está ao alcance dos grandes filmes. Parabéns, Tony Mendez, o espião que conseguiu o feito de resgatar os seis diplomatas de Teerão, e parabéns, Ben Affleck, o homem que fez com que a realidade virasse ficção de alto nível. Assim, sim!

 

«Argo», de Ben Affleck, com Ben Affleck, Alan Arkin e John Goodman

 


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O Mentor




Bebedeira monumental

Há quem diga que faz parte da essência das obras-primas agradar muito a uns e desagradar a outros. E, nessa linha de raciocínio, talvez «The Master» seja a mais recente obra-prima de Paul Thomas Anderson a quem eternamente se agradece «Magnolia»[1999], esse extraordinário filme que retratava um mosaico de gentes coincidentes entre si. Talvez, repito, mas reconhecendo nele um filme de autor, ambicioso e com um excelente elenco – que o tem, não nego – não passa ainda assim de uma aborrecida proposta de cinema onde imperam o mau gosto e a reflexão abstrusa em que infelizmente caem grande parte dos retratos de época.
Como dizia, «O Mentor» é um ensaio sobre a América do pós-guerra juntando dois protagonistas que sendo diferentes entre si se atraem por oposição. Um deles, Freddie Quells [Joaquin Phoenix],um veterano de guerra com problemas graves de foro neurológico, a viver escravo dos instintos mais básicos de si enquanto ser humano, descontrolado e desenraizado da sociedade e outro, Lancaster Dodd [Phillip Seymour Hoffman], oportunista, explorador das fraquezas psicossociais da época e dependente da estrutura social onde ele mesmo pretende fazer-se líder espiritual. Nesta relação aparentemente simples ao olhar desavisado mas complexa na narrativa do filme, se constrói uma análise que se quis aprofundada e filosófica da sociedade norte-americana dos anos cinquenta. Uma época que deu origem a movimentos mais ou menos esotéricos como a Cientologia e se debateu com questões sociais gravíssimas como a integração dos chamados traumatizados da guerra.
A questão aqui é a de procurar perceber se o mensageiro [leia-se, a realização] conseguiu fazer com que a mensagem [o filme] chegasse em boas condições ao destinatário [o espectador]. E no meu caso particular, revejo-me um pouco nas bebedeiras de Quells [Phoenix]. Isto é, sinto que não me diverti enquanto bebia e no final dei comigo a contas com uma ressaca dolorosa. Até porque mesmo no melhor que o filme tem, as interpretações, fica-me a dúvida se o mérito que se lhes reconhece está inteiramente de acordo com a química conseguida na plateia. Em suma, suspeito que «O Mentor» seja um importante pretexto para exaltação de virtudes por parte de quem se revele fã firme do cinema de Paul Thomas Anderson mas muito pouco satisfatório para quem vê cinema a descoberto dos nomes daqueles que o fazem. Passo.

«The Master», de Paul Thomas Anderson, com Joaquin Phoenix, Philip Seymour Hoffman e Amy Adams

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Lincoln


 

 

Um líder e o seu povo

 

Que me desculpem o sentimentalismo, mas quando é clinicamente declarada a morte de Abraham Lincoln e a realização apresenta o discurso do então Presidente dos EUA celebrando a 13ª Emenda – que elimina a escravatura na América, é debaixo dos aplausos dos espectadores na sala de cinema que surge o genérico final de «Lincoln», o filme. E certamente que muitos dos presentes tiveram de fazer um esforço para conter a emoção. Isto porque não foi decerto por acaso que Abraham Lincoln, um homem grande e desajeitado fisicamente que vindo do interior de um país ainda em construção, se alcandorou a um estatuto ímpar no coração do povo norte-americano.

«Lincoln», de Steven Spielberg, evoca um dos períodos mais conturbados da passagem de Abraham Lincoln pela presidência da América em plena Guerra da Secessão e que duraria até à hora da sua morte, assassinado enquanto assistia a uma peça de teatro. Neste período, Lincoln tenta e consegue aprovar a 13ª emenda da constituição americana que determina a abolição da escravatura no país e debate-se ao mesmo tempo com as centenas de milhares de mortos por uma guerra fratricida do norte contra o sul. E isto numa interpretação magistral de Daniel Day-Lewis concedendo a Abraham Lincoln uma candura e uma força que poderiam ser difíceis de obter dada a extraordinária dimensão da personagem histórica.

Atravessado por dilemas de ordem pessoal, social e política, «Lincoln» é ainda um filme onde o debate interno que realiza acaba por ser transversal a toda a humanidade já que falamos de dois elementos fundamentais do ser humano: a questão racial e a democracia como sistema político. E estas, para lá da já citada interpretação de Daniel Day-Lewis mas também de Tommy Lee Jones, Sally Field, James Spader e David Strathairn, entre outros, acabam por se transformar no elemento catalisador de toda a acção fazendo deste um filme onde os diálogos têm uma riqueza transcendente sendo de realçar o fantástico guião que serve a história. E se outro mérito não tivesse, «Lincoln» recorda-nos o que é o dever de servir o povo e porque é que a democracia, pese ser espezinhada pela pobre classe política de hoje, continua a ser o único sistema político capaz de conceder às pessoas uma vida onde a liberdade e a dignidade não sejam meros elementos de retórica para uso de poucos a pretexto dos restantes.

«Lincoln», ou Abraham Lincoln como preferirem, concede-nos ainda a possibilidade de relembrarmos que grandes homens na posse de boas virtudes e grandeza de carácter já foram eleitos para cargos onde hoje vemos tantas vezes estampada a mediocridade. E em que o objectivo da governação está direccionado para as pessoas e não para os números, o défice, ou, se me permitem o mau feitio, a merda que lhe queiram chamar.

 

«Lincoln», de Steven Spielberg, com Daniel Day-Lewis, Sally Field, David Strathairn, James Spader, Tommy Lee Jones, outros