terça-feira, 29 de novembro de 2011

A dança dos corpos




O Sol ainda brilha por entre os estores gastos pelo ir e devir de uma vida de altos e baixos. Mas na sala há uma luz forte acesa sobre ambos. Ele está uma pilha de nervos como se fosse a sua primeira vez. Deitado de barriga para cima espera impacientemente por ela e quando ela chega junto dele toca-lhe ao de leve nos lábios. O homem entreabre a boca, não contém o impulso que leva a que as suas pernas rocem as dela, Junto à cintura, já perto da barriga. A mulher move-se um pouco, procura uma posição melhor, mais confortável. Mantém-se nas mesmas posições por momentos com leves oscilações dos corpos. De repente ela quase grita, ouve-se um bramido de júbilo e ele olha-a aliviado. Nas mãos da dentista pode então observar-se já muito cariado o segundo pré-molar superior que ela acabara de extrair ao homem.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Tão profundo como o mar






Tenho para comigo que apesar de ser uma hipótese remota, Agostinho da Silva chegou a ler algo do que escrevo. É que apesar de falar na primeira pessoa do singular, o pensador só poderia estar a referir-se a mim quando suspeitou que muito do que escrevia podia parecer profundo mas por ser tão atrapalhado.

domingo, 27 de novembro de 2011

Nos Idos de Março






A oeste nada de novo

«Nos Idos de Março» podia ser um filme sobre políticos corruptos. Ou sobre como se joga sujo nos bastidores da política a alto nível e de como é tão fácil para gente que se propõe representar o povo cair em tentação ou mesmo trair sem pestanejar. Mas não, o novo filme do multifacetado George Clooney, aqui no papel de realizador, é, como o próprio afirma, um testamento sobre a moralidade em sentido mais generalista. E é fácil concordar com Clooney neste aspecto particular, porque o que acontece na campanha das primárias do Partido Democrata para encontrar um candidato do partido às eleições para Presidente dos Estados Unidos da América, não é diferente daquilo que acontece no nosso dia-a-dia, nas empresas, nas escolas, ou seja, na vida das pessoas. A diferença é que de um político com evidentes responsabilidades, e também daqueles que o rodeiam, se espera que os seus comportamentos sejam pautados por uma moral que deveria ser inquestionável. Mas isso, não sejamos ingénuos, é coisa em que muito poucos já acreditam. E sendo assim, o que de facto fica em risco? Algo que foi tão difícil de conquistar e temo se esteja a esgotar: a própria democracia, o que é trágico.
Ryan Gosling, um dos actores do momento, interpreta o papel de um idealista director de comunicação da campanha do Governador da Pensylvania [Clooney]. Mas isso, o idealismo do rapaz, é só até que perceba que vale tudo menos tirar olhos no mundo em que se move. E perante isto faz a opção que ninguém desejaria mas que sabemos ser a mais fácil, isto é, vai lutar sem clemência com as mesmas armas dos seus adversários. Ou supostos companheiros. A partir daqui o filme foge à solenidade com que vinha a reger-se, a intriga adensa-se e aquilo que julgávamos até então ser um filme sobre a alta política descamba para o ‘thriller’ comum. O problema deste «The Ides of March», título que alude ao assassinato de Júlio César a 15 de Março de 44 A.C., é que o cinismo é tão bem assumido e a traição tão impiedosamente arquitectada que, tal como na rábula do pobre que desconfia de esmola em demasia, o espectador começa a ficar descrente. E a perceber que afinal está numa sala de cinema, despertando assim do torpor relativo à realidade que é suposto o cinema transmitir. E neste ponto reafirmo uma suspeita minha de quase sempre: a de que mais uma vez funcionam contra os filmes as adaptações de peças de teatro. Digo isto porque há no teatro uma pompa interpretativa ligada ao texto e um certo tipo de rigor de cenários dos quais o cinema dificilmente consegue libertar-se.
O que não é de modo algum negociável, é a riqueza do elenco onde pontificam para além de Gosling e de Clooney nomes como Paul Giamatti, Philip Seymour Hoffman e Marisa Tomei. Apesar disso, e das excelentes interpretações com que nos brindam, mesmo que personalizado por gente tão grande já não é novidade para ninguém a amoralidade com que se fabricam governos. E ao mesmo tempo, a indiferença com que os cidadãos olham para os políticos resignando-se ao que julgam ser uma inevitabilidade. De facto, seja num comício em Cincinnati, Ohio, ou em Vale de Estacas, Santarém, o princípio é o mesmo: criar uma imagem de honra e sentido de dever que todos sabem que mesmo que depois de eleitos o tentassem jamais o conseguiriam pôr em prática. E o porquê disto é simples mas dramático, repito. Porque a democracia soçobrou perante a ditadura do poder económico e financeiro. E é apenas isso que «Nos Idos de Março» nos repete até à exaustão acrescentando muito pouco ao que já sabemos. Mas sendo cinema, acredito que acrescenta alguma espectacularidade, uma maior fotogenia e elegância em contraponto à boçalidade que diariamente nos entra casa dentro através dos políticos que temos.

«In The Ides of March», de George Clooney, com Ryan Gosling, George Clooney, Paul Giamatti, Philip Seymour Hoffman, Evan Rachel Wood e Marisa Tomei


sábado, 26 de novembro de 2011

Um Método Perigoso






Apenas diferentes entre iguais

Evitemos ir ao engano, «Um Método Perigoso», o mais recente filme de David Cronenberg, não é um filme para todos. E não o é sobretudo devido à sua fonte de inspiração, o teatro. Mas já lá vamos porque antes há que esclarecer que dizer isto não é dizer mal da realização de um dos maiores cineastas da actualidade, pelo contrário. De facto, «A Dangerous Method», no seu título original, é formalmente irrepreensível e vive de uma dialéctica incessante mas é de uma complexidade intelectual que pode desarmar os menos interessados pelo seu tema de fundo. E qual é a temática do filme que aborda vagamente a relação entre Sigmund Freud e Carl Jung, pais da psicanálise, para se centrar na paixão deste último pela sua belíssima paciente Sabina Spielrein? Indubitavelmente é o labirinto que constitui a mente humana. Em primeira análise a importância da componente psicológica no comportamento social de cada um de nós, homens e mulheres, mas principalmente o peso da questão sexual nas perturbações da mente.
É sabido que a filmografia de David Cronenberg sempre teve uma carga sexual e visceral intensa e o mesmo sucede com este «Um Método Perigoso». Embora, neste filme, seja de realçar a aproximação a um cinema mais convencional que o habitual nos trabalhos anteriores do canadiano. Ainda assim, confirma-se que paixão e morte, sexo, família, alienação e desvios comportamentais estão lá. Principalmente através da doente autodestrutiva e objecto de desejo que é a personagem de Keira Knightley [Spielrein], do impagável e dramático de uma forma assaz cativante Vincent Cassel [na personagem de Otto Gross] e do homem bom e médico brilhante Carl Jung [interpretado por Michael Fassbender] já que Sigmund Freud [por Viggo Mortensen] vive num patamar acima. Ele é o médico defensor da sua tese como tendo uma base científica, é o homem seguro de si, o pensador erroneamente dogmático, o intelectual convencido e convincente.
Sendo um filme sobre a criação da psicanálise no tratamento de doentes mentais, «Um Método Perigoso» é igualmente a história de um amor intenso, de duas almas gémeas que têm a felicidade de se encontrar, mas, desafortunadamente, de se perderem uma para a outra e, a partir deste dado, da forma como cada um dos amantes vai tentar sobreviver ao fracasso desse amor sem nunca desistir da sua paixão. Paixão arrebatadora que os acompanhará para sempre. E aqui mais uma vez a ética se impõe ao desejo dos corpos e um discutível sentido de dever à avassaladora vontade das almas em desespero. Mas se alguma coisa Cronenberg acrescenta àquilo que foram as vidas de homens tão fundamentais para o progresso da humanidade, é a de evidenciar que mais sedutor que perceber quais as complicações que levaram à doença psicológica só mesmo a sagacidade mental de quem não pretende curar obrigando o doente a comportar-se através daquilo que o mundo espera dele, mas antes dar-lhe a perceber que apesar da sua aparente imperfeição há um lugar para si no mundo. E isso nunca através de um rótulo de anormalidade mas sim de aceitação da diferença.
Excelentes as interpretações de Mortensen e de Fassbender, um tudo-nada burlesca a de Keira Knightley. Já Vincent Cassel volta a roçar a perfeição nos poucos minutos em que se passeia pela tela.
A não perder. Sabendo ao que se vai.


«A Dangerous Method», de David Cronenberg, com Michael Fassbender, Keira Knightley, Viggo Mortensen e Vincent Cassel

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Heróis do povo

[John Dillinger por Johnny Depp no filme «Public Enemies»]




É tido como factual que um dos maiores ‘gangsters’ de sempre da América, John Dillinger, defendia que ‘importante não é saber de onde vimos mas sim para onde vamos’. Dillinger morreria numa cilada que lhe foi montada numa ida ao cinema. E já que morreu com um tiro nas costas, o ladrão que o povo amava nunca terá chegado a saber onde terminou a sua caminhada final. É por estas e por outras que se deveria reescrever a história. Um homem assim merecia enfrentar a morte de frente.



quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Castelos de cartas






Dizer que o cinema é o retrato fiel da vida, no caso desta crise económica mundial não passa de um lugar-comum mais gasto que o saldo dos cartões de crédito da generalidade dos portugueses. E quando o especulador Gordon Gekko, no filme «Wall Street», apresentava cada novo negócio como mais vantajoso que o anterior, se deslocava de limusina para as salas de reuniões de escritórios onde reinava a opulência, se usava de truques baixos e, de ego inchado, se ria das suas conquistas e se declarava a si mesmo um vencedor, ninguém deu importância à suspeita de que a maioria se regia pela mesma bitola no topo do mundo. E nós, meros peões neste jogo de artimanhas e enganos, cá em baixo. Provincianos, somos uns provincianos.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

O recordista





Há quem tenha por hábito fechar-se dentro de casa. Pois ao décimo quinto dia deste mês de Novembro é a terceira vez que eu faço o contrário e me fecho fora de casa com as chaves por dentro. Não é certamente um ‘record’ de que me possa orgulhar, mas como bom português estou a ponderar candidatar-me ao Guinness World Records.


domingo, 13 de novembro de 2011

Marisa Monte


[Marisa Monte]






Numa das suas muitas canções de amor, a brasileira Marisa Monte murmura a certa altura que ‘seria bom, quatro paredes, eu, você e Deus.’ E eu a isto só tenho a dizer duas coisas. Primeira, perguntar por que carga de água clama a Marisa Monte por Deus numa situação como a que sugere, e, segunda, lembrar a mim mesmo que a Marisa Monte me foi um dia apresentada [a sua música, para que conste] por uma das mulheres mais fantásticas que tive a felicidade de conhecer. Para mim é mais que isso, para vocês este texto  fica apenas como um mero registo biográfico.


sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Reflexos

[a actriz Scarlett Johansson]




Pediram cafés e sentaram-se os três. Eles dois e ela, todos entre os trinta e os trinta e cinco anos. Aos impropérios que os dois homens trocavam, ela foi respondendo em silêncio. Quando pegou na chávena e a encostou nos lábios vermelhos, foi delicada sem parecer afectada. Parece-se com a Scarlett Johansson mas costuma atestar o Peugeout 307 azul marinho na Área de Serviço da A5 em Oeiras.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Pesadelo



Conheço outro tipo que tem um pesadelo recorrente, o de que se encontra no corredor da morte à espera de ser executada a pena a que foi condenado. De repente toca uma sineta e ele julga chegada a hora. Mas não, é apenas a campainha do despertador que o salva de ser morto. Há dias encontrei-o numa azáfama tremenda na baixa. Andava esbaforido de loja em loja porque o seu despertador avariara e precisava desesperadamente de adquirir outro.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Má sina


Conheço um tipo que tinha um sonho. E quando esse sonho se concretizou passou o tempo a destruí-lo. O pior mesmo é que foi preciso chegar a um elevado estado de desorientação para atingir a lucidez.

domingo, 6 de novembro de 2011

Um meio sorriso

[O resplandecente meio sorriso da modelo fotográfico Iga A. ]





Há perguntas que desarmam as pessoas com uma acidez tal que as evitamos fazer em sociedade a não ser por mera brincadeira. Por exemplo, experimentem ir tomar café com alguém e no meio do nada perguntar a essa pessoa se é feliz. Arriscaria dizer que a outra pessoa não iria achar muita piada à questão ou tentaria fintá-la da melhor maneira. E por que é que isto acontece? Porque a nossa sociedade nos impõe a felicidade não somente como prova de sucesso mas como se essa fosse a palavra passe para fazermos parte dela. Assim, quase que somos obrigados a demonstrar felicidade mesmo que a não sintamos neste ou naquele momento particulares.
 Falando por mim, admito que me sinto especialmente seduzido por um meio sorriso de mulher, por um olhar enigmático, por uma expressão melancólica. E continuo a achar que alguma timidez ou mesmo complexidade de personalidade são na maior parte das vezes sintomas de um estado de espírito, de uma forma de estar bem interessantes e que não resultam nada do facto dessas pessoas andarem de algum modo com a cabeça toda fodida, se é que o meu calão é suficientemente esclarecedor.
Com tudo isto, quero deixar claro que não tenho nada contra quem se sente em baixo e vai ao psiquiatra para que este lhe receite a medicação que lhe vai permitir comprar um pouco de felicidade para se sentir melhor. Pelo contrário, quero apenas dizer às pessoas de meios sorrisos e de olhar meio perdido que algures por aí está o outro meio sorriso que as completa, que tarde ou cedo o seu olhar vai encontrar-se na cumplicidade de outro olhar. E sim, puta que pariu [pardon my french], é essa a felicidade que realmente importa.


sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Conhecer cinema



Se há uma coisa que sempre me fez espécie desde que me alistei como cinéfilo desta vida e comecei a discutir e escrever sobre filmes, é a de constatar que quando questionados sobre quais são os filmes da sua vida grande parte dos jovens cita obras já quase centenárias, passe o exagero. E desculpem o meu cepticismo mas parece-me que o fazem como se isso os legitimasse como experts na matéria. Estão no seu direito, claro, mas tem sido feito muito e bom cinema nos últimos anos e perceber isso é tão importante como conhecer os filmes que marcam a história da 7ª arte.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Conversa de café


[Homens no café, de José Lutzenberger]




Um grupo de homens já perto ou na idade da reforma conversava animadamente no café quando entrei para tomar o pequeno-almoço. Um deles defendia-se do que parecia ser uma acusação do resto do grupo afiançando que gostava muito de mulheres. «Então por que é que nunca te conhecemos nenhuma?», teimava alguém no grupo. E a resposta não tardou. «Porque nunca apareceu nenhuma de que gostasse.»


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Geniais, livres e... trágicos


[Jackson Pollock, o próprio]




Demasiado humanos?

Hoje enquanto revia «Pollock» na Fox Movies não pude evitar a mesma sensação que me invadiu à data de estreia do filme. A de que muitos dos artistas que encontramos através da sua arte se perderam eles mesmos na vida. É assim como se ela, a sua vida, a vida deles, não passasse de um conjunto de circunstâncias infelizes que resultaram numa conjugação feliz. Feliz para nós que desfrutamos da ideia que tinham de um mundo que à sua época nunca os soube compreender. E quanto mais inquieta e trágica tenha sido a vida do artista, mais seduzidos ficamos pela sua obra. O que me leva a uma conclusão que de facto é óbvia: a de que todos nós somos em certa medida problemáticos numa característica inerente à condição humana. Eles, os artistas, apenas tiveram a coragem de procurar viver uma liberdade que muitos nem sonham existir.