segunda-feira, 23 de abril de 2012

assim assim





Do tudo e do nada

Onde começa e onde acaba «assim assim»? No ser-humano e nas relações, dir-se-ia. Mas não. De facto, num filme que começou por ser uma curta-metragem parece-me que para sua própria elevação por lá devia ter ficado. Sem um fio condutor que ligue o mosaico de histórias [?] que por lá se cruzam, sem sabermos de onde vêm e para onde se dirigem as personagens e o que as motiva, com conversas longas e maçadoras que destilam uma ideia estereotipada e simplista das ligações amorosas e das pessoas, «assim assim» é ainda um filme confuso que quer chegar a todo o lado mas acaba por não chegar a lado algum. Ficam a boa prestação de alguns membros do elenco [a curta aparição de Rita Blanco, por exemplo, mesmo que também eles andem meio perdidos entre bilhetes postais na noite lisboeta] e a falhada boa intenção do realizador Sérgio Graciano de fazer um filme de pessoas para as pessoas, ou seja, para o público em geral. Mas soube a pouco, muito pouco, quase nada.

«assim assim», de Sérgio Graciano



sexta-feira, 20 de abril de 2012

O contador de histórias


[Turkey Pond, 1944 - Andrew Wyeth]




Não conheci até hoje melhor contador de histórias que o meu avô. Sentava-se no cadeirão de vime do varandim da velha casa disfarçada algures no interior das árvores da quinta e sentava-nos a cada um de nós, a mim e ao meu irmão, em pequenas cadeiras ao seu redor. Depois dava uma baforada no seu cachimbo e perguntava se nos lembrávamos do palácio em frente ao Tejo bem junto aos paredões da ponte ferroviária. Claro que nós não recordávamos o dito palácio pela simples razão de nunca ter havido algum por lá. E perante o nosso protesto, ele dizia-nos: ‘pois imaginem que existiam dois palácios, um em cada margem.’ E, muito calmamente, lá nos ia ajudando a edificar os pilares de como se conta uma boa história.




quinta-feira, 19 de abril de 2012

Paixão 1


[Man with a Newspaper (Chevalier X), 1911 - 1914 : André Derain]






Esta manhã um jornal desportivo espanhol titula que ‘o futebol atraiçoou o Barcelona’. Eu não vi o Chelsea – Barcelona mas constou-me que a superioridade dos catalães foi arrasadora. No entanto, estou em total desacordo com o jornalista responsável pela frase que transcrevo. Porque se houve coisa que ontem aconteceu em Londres foi futebol. Até porque o futebol é uma das maiores paixões do homem. E por muito apaixonado que o homem esteja, por melhor que seja o momento dessa paixão, se a espaços existir no jogo um travo de amargura nada saberá melhor que o regresso às vitórias.  


Paixão 2


[Summer Interior, 1909 - Edward Hopper]


Ainda assim, o adepto de futebol dificilmente se conforma com a derrota do seu clube sobretudo se este tiver merecido a vitória. Provavelmente terá a mesma sensação que aquele homem que acabou de perder a mulher amada. Que lhe importa a ele se nos apressarmos a tentar animá-lo dizendo-lhe que o amor tem destas coisas, que há mais mulheres no mundo, blá, blá?... Nada, rigorosamente nada, aquela derrota já ninguém lha tira.



domingo, 15 de abril de 2012

Três






Filosofia alternativa do amor

 

«Três» poderia ser um drama intimista tão interessante quanto estimulante narrando de forma pouco convencional as venturas e desventuras de um triângulo amoroso não tão clássico assim. Desde logo porque se trata da história de um casal que no ano de festejar vinte anos sobre a sua união se apaixona, ele e ela, pelo mesmo homem. E dito isto está também contada a sinopse de um filme realizado por Tom Tykwer, o mesmo de «Corre, Lola,   Corre» [1998] e de «O Perfume- História de Um Assassino» [2006] entre outros. E poderia mesmo.  Até porque há no filme aquele realismo mágico das personagens que tantas vezes é característica exclusiva de algum cinema europeu. Poderia, disse bem, porque, na minha opinião, não é.
E não o é porque a realização de Tykwer, ele que é igualmente responsável pelo argumento, quis explicar em 119 minutos todas as questões ligadas à doença, à velhice e ao amor. E isto para não ser demasiado exaustivo. Assim, passa pelo filme uma panóplia infindável de referências filosóficas, incursões à poesia existencialista, às ciências biomédicas, à medicina e grande diversidade de manifestações culturais. Se juntarmos a isto a informação de que os protagonistas do triângulo amoroso são uma jornalista de televisão especializada em matéria científica [Hanna, a mulher], um cientista genético perito em inseminação artificial [Adam, o amante do casal] e um engenheiro de arte [Simon, o companheiro de Hanna], seja lá o que isso da engenharia de arte for, está tudo dito quanto às pretensões de eruditismo do filme. Mas o que resulta daqui é unicamente uma exposição de ornamentos inúteis numa história de vidas que se bastaria a ela mesma para redundar num grande momento de cinema.
Ainda assim, o filme tem algumas vertentes bem positivas sobretudo no tratamento que faz das personagens. Nomeadamente na subtileza com que faz o enquadramento de cada uma nas questões ligadas à sua sexualidade. A par disso, a realização de Tykwer faz com que essas mesmas personagens se passeiem pelos restaurantes, bares e ruas de Berlim atribuindo um estatuto cinematográfico à capital alemã como tantas vezes vimos fazer com Nova Iorque [através de Woody Allen, por exemplo] ou Paris, por diversos cineastas. E nesta 2ª adolescência que Tykwer permite aos quarentões Hanna, Simon e Adam é de salientar a insistência nos ângulos anatómicos de cada um, nomeadamente na coragem de Sophie Rois [ela que interpreta Hanna]. A amenizar os ouvidos um pouco arranhados pela difícil língua alemã há a meio do filme o soar de «Space Odity», de David Bowie, e, no final, um desenlace pouco surpreendente e algo insípido já que parece ter sido feito a pedido de várias famílias. A ver sem grandes expectativas.


«Drei», de Tom Tykwer, com Sophie Rois [Hanna], Sebastian Schipper [Simon] e Devid Striesow [Adam]



sábado, 7 de abril de 2012

Florbela





Existência inquieta


Não estará completamente distante da realidade quem acredite que a melhor poesia, aquela que nos impulsiona e rasga a alma, vem também ela de uma outra alma inquieta, de alguém em constante desassossego, de uma mulher ou de um homem em permanente conflito com a sua existência e aquilo que a rodeia. «Florbela», de Vicente Alves do Ó, esqueceu-se deliberadamente da literatura, da poesia, para se centrar nessa mulher assombrada e desencantada que ainda assim buscou avidamente a vida até que não obteve a morte. Não se poderá dizer que a ideia tenha resultado totalmente porque se não fosse a sua poesia emancipada e tão próxima do abismo como o foi a mulher, Florbela Espanca teria morrido na obscuridade de uma época onde os convencionalismos de uma sociedade castradora e controladora não permitiam veleidades de maior às mulheres, quanto mais a uma poetisa muito à frente do seu tempo.

Mas Florbela, tentando driblar a sua desdita, ainda procurou a inserção. Já casada com um médico de Matosinhos [protagonizado por Albano Jerónimo] terá então dito que o mundo já tinha dela aquilo que pretendia: era então uma mulher casada, honrada e, acima de tudo, discreta. Pobre mundo que a tanto obrigas, pobre Florbela Espanca que tinha de se negar a si própria para ser aceite pelos outros. Mas, inevitavelmente, esse seria o princípio do fim para a mulher que já denotava através da pulsão da sua poesia uma irresistível atracção pela morte. Porque como cantou outra desditosa mulher precocemente falecida cerca de um século depois da sua própria morte, para Florbela o amor foi sempre um jogo perdido. Como a vida perdida do irmão Apeles [corporizado por Ivo Canelas] afogando-se, ele e o avião com que procurava tirar os pés da terra e abraçar o sonho, nas águas frias do Tejo. O Tejo que não terá lavado as mágoas da poetisa que foi acometida de uma tristeza que não mais soube ultrapassar. Era então uma Florbela dividida entre o amor sereno e de pés bem no chão do marido de Matosinhos e a loucura apaixonada e apaixonante do irmão. Este que não pertencia a lugar algum em particular mas a todos os lugares onde pudesse assentar a fúria de viver com que procurava driblar o fogo da paixão que lhe consumia as entranhas.

Com nota positiva para o guarda-roupa, os cuidados na reconstituição da época e para o restante elenco, é no entanto imperioso realçar que Dalila Carmo está soberba no papel de Florbela. Aliás, é tanto e tão aflitivo o desespero no seu rosto e, noutra vertente da sua personalidade instável, a ânsia pelo infinito que o seu olhar denuncia que se por um qualquer sortilégio encontrasse a actriz algures numa rua de Vila Viçosa ou de Lisboa teria direito eu mesmo à minha própria assombração da poetisa. E aí talvez não resistisse a dizer-lhe como nós, os homens, fazemos a vida difícil aos vivos mas tratamos tão bem dos mortos. Se não, vejamos: a sua obra foi quase totalmente editada a título póstumo, depois da sua morte a poetisa virou quase mito e os seus poemas são cantados por vozes importantes e até já se converteram em sucesso de vendas [«Ser Poeta», pelos Trovante]. Para culminar, surge agora «Florbela», o filme. Quanto a Vicente Alves do Ó, o dedicado realizador de Florbela, terá cumprido o seu maior e mais importante objectivo. Melhor do seu trabalho não haverá para dizer já que a realização de Vicente do Ó demonstrou que ‘ser poeta é ter cá dentro um astro que flameja (…) é amar-te assim perdidamente, é seres alma e sangue e vida em mim’. E porque foi precisamente assim que viveu e morreu Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, a poetisa Florbela Espanca, vale a pena ver «Florbela».



«Florbela» de Vicente Alves do Ó, com Dalila Carmo, Albano Jerónimo e Ivo Canelas