sábado, 7 de abril de 2012

Florbela





Existência inquieta


Não estará completamente distante da realidade quem acredite que a melhor poesia, aquela que nos impulsiona e rasga a alma, vem também ela de uma outra alma inquieta, de alguém em constante desassossego, de uma mulher ou de um homem em permanente conflito com a sua existência e aquilo que a rodeia. «Florbela», de Vicente Alves do Ó, esqueceu-se deliberadamente da literatura, da poesia, para se centrar nessa mulher assombrada e desencantada que ainda assim buscou avidamente a vida até que não obteve a morte. Não se poderá dizer que a ideia tenha resultado totalmente porque se não fosse a sua poesia emancipada e tão próxima do abismo como o foi a mulher, Florbela Espanca teria morrido na obscuridade de uma época onde os convencionalismos de uma sociedade castradora e controladora não permitiam veleidades de maior às mulheres, quanto mais a uma poetisa muito à frente do seu tempo.

Mas Florbela, tentando driblar a sua desdita, ainda procurou a inserção. Já casada com um médico de Matosinhos [protagonizado por Albano Jerónimo] terá então dito que o mundo já tinha dela aquilo que pretendia: era então uma mulher casada, honrada e, acima de tudo, discreta. Pobre mundo que a tanto obrigas, pobre Florbela Espanca que tinha de se negar a si própria para ser aceite pelos outros. Mas, inevitavelmente, esse seria o princípio do fim para a mulher que já denotava através da pulsão da sua poesia uma irresistível atracção pela morte. Porque como cantou outra desditosa mulher precocemente falecida cerca de um século depois da sua própria morte, para Florbela o amor foi sempre um jogo perdido. Como a vida perdida do irmão Apeles [corporizado por Ivo Canelas] afogando-se, ele e o avião com que procurava tirar os pés da terra e abraçar o sonho, nas águas frias do Tejo. O Tejo que não terá lavado as mágoas da poetisa que foi acometida de uma tristeza que não mais soube ultrapassar. Era então uma Florbela dividida entre o amor sereno e de pés bem no chão do marido de Matosinhos e a loucura apaixonada e apaixonante do irmão. Este que não pertencia a lugar algum em particular mas a todos os lugares onde pudesse assentar a fúria de viver com que procurava driblar o fogo da paixão que lhe consumia as entranhas.

Com nota positiva para o guarda-roupa, os cuidados na reconstituição da época e para o restante elenco, é no entanto imperioso realçar que Dalila Carmo está soberba no papel de Florbela. Aliás, é tanto e tão aflitivo o desespero no seu rosto e, noutra vertente da sua personalidade instável, a ânsia pelo infinito que o seu olhar denuncia que se por um qualquer sortilégio encontrasse a actriz algures numa rua de Vila Viçosa ou de Lisboa teria direito eu mesmo à minha própria assombração da poetisa. E aí talvez não resistisse a dizer-lhe como nós, os homens, fazemos a vida difícil aos vivos mas tratamos tão bem dos mortos. Se não, vejamos: a sua obra foi quase totalmente editada a título póstumo, depois da sua morte a poetisa virou quase mito e os seus poemas são cantados por vozes importantes e até já se converteram em sucesso de vendas [«Ser Poeta», pelos Trovante]. Para culminar, surge agora «Florbela», o filme. Quanto a Vicente Alves do Ó, o dedicado realizador de Florbela, terá cumprido o seu maior e mais importante objectivo. Melhor do seu trabalho não haverá para dizer já que a realização de Vicente do Ó demonstrou que ‘ser poeta é ter cá dentro um astro que flameja (…) é amar-te assim perdidamente, é seres alma e sangue e vida em mim’. E porque foi precisamente assim que viveu e morreu Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, a poetisa Florbela Espanca, vale a pena ver «Florbela».



«Florbela» de Vicente Alves do Ó, com Dalila Carmo, Albano Jerónimo e Ivo Canelas


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