terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Azinhaga de José Saramago





Estava uma tarde clara e fria como o são muitas tardes de Outono quando o meu carro contornou a rotunda que dá início à Azinhaga para quem vem do lado de Lisboa. Noto que dois rapazes guiam três ou quatro cabeças de gado pisando a erva e torneando arbustos até ladearem as estacas de uma vedação para animais. Sou natural do Ribatejo, mas, curiosamente, não me recordava de alguma vez ter estado na terra onde nasceu José Saramago. Deixo o carro seguir o percurso de alcatrão até ao que julgo ser o largo principal da povoação.
Sentado num banco de jardim, qual Pessoa no Largo do Chiado, vislumbro uma estátua de Saramago em plena leitura. Algumas pessoas ladeiam o monumento e pergunto onde é a Rua José Saramago. Silêncio total, trocam-se olhos inquisidores, ninguém me sabe responder. Agradeço e sigo o meu caminho, hesitante. Um jovem de pouco mais de vinte anos, livros debaixo de um dos braços, atravessa a rua um pouco mais à frente. Repito-lhe a pergunta anterior. Olha o vazio, parece puxar pela cabeça, pede-me desculpa, também não sabe. E a de Pilar del Rio, insisto. Pilar del Rio?, devolve-me a pergunta. Sim, confirmo eu, Pilar del Rio. Não, não sei. Ao fundo, uma mulher de meia idade fita-me tranquilamente com um sorriso a baloiçar-lhe nos lábios. Tente a zona nova, trezentos metros à esquerda, quase me gritou. Foi o que fiz.
E lá estavam.
Lá estavam a pequena biblioteca com o nome de José Saramago, a Rua Pilar del Rio de esquina com a Rua José Saramago. Tiro algumas fotos, entro um pouco no interior do edifício da biblioteca e, alguns minutos depois, percebo o alcance das palavras de José Saramago ao referir-se à passagem dos homens e mulheres por esta vida: num momento «está-se ali» e no outro «já não se está». E na Azinhaga, terra natal do único Nobel português da literatura, José Saramago já não está sem que provavelmente alguma vez tivesse estado. Isto, ainda que por lá se perpetue o seu nome em duas ou três homenagens simbólicas.
Já é quase noite quando regresso à estrada consciente da insignificância que o homem se atribui a si mesmo. Acabou-se para José Saramago, subiu à montanha mágica mas já não faz mais livros. Já não está ali. Mas tenho pena, eu que nunca fui seu fiel devoto.



segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Americano











A bela e o matador

Por mais que o neguemos, todos temos um estilo. Próprio ou emprestado de outros. E rapidamente se descobre o de Anton Corbijn, o holandês realizador de «O Americano»: as personagens enigmáticas  e distantes são o seu estilo. Foi assim com «Control», filme sobre Ian Curtis o misterioso músico da banda Joy Division, e repete-o agora com o indecifrável Jack [George Clooney], um assassino a soldo refugiado numa zona montanhosa de Itália. O filme adapta o livro «A Very Private Gentleman», de Martin Booth, e fica a meio caminho entre o ‘Thriller’ clássico e o ‘western’.
Longe de atingir a perfeição, «The American» usa e abusa do carisma de George Clooney para criar uma personagem elegante e sombria que jamais permite que se lhe chegue à alma e desconfiada até da sua própria sombra. Perseguido por uma espécie de máfia sueca, Jack percorre as montanhas do interior italiano num velho Fiat Tempra e divide o seu tempo entre a violência e o sexo. No final, através de Clara [Violante Placido], uma prostituta belíssima, Jack acabará por descobrir o amor e revelar uma humanidade que até então se lhe desconhecia. Como se de um ‘cowboy’ solitário se tratasse, Jack vagueará então entre o amor e a morte sem consciência da debilidade que acarreta a sua condição de homem a abater.
Pese toda a simpatia pelo George Clooney de «O Americano», a verdade é que o filme se perde em imagens formosas mas estáticas e nas personagens da trama que nada acrescentam à história não permitindo a reflexão sem que jamais causem qualquer emoção [o Padre Benedetto é disso flagrante exemplo]. E a prometida tensão  inicial vai-se a pouco e pouco desvanecendo numa obra de narrativa inexplicavelmente lenta e até um pouco pretensiosa. E mesmo o final  a sugerir algum vazio melancólico deixa um sabor a uma certa frustração por se ver esfumar ali mesmo defronte dos nossos olhos a salvação de um homem e o sonho de uma mulher. Mas, de facto, o que acontece é o triunfo do simbolismo sobre os devaneios quiméricos do homem tão presentes nas chamadas obras de autor. Mas nem Corbijn será um autor no sentido que aqui se quer dar ao termo nem a bela e sensual Clara merecia tamanha traição da vida. Uma lástima.

«O Americano», de Anton Corbijn, com George Clooney e Violante Placido


domingo, 28 de novembro de 2010

Auto-estrada 5


[Imagem da autoria de Lilya Corneli]





Costumo encontrá-la todos os dias, logo pela manhã, entre uma torrada e um daqueles sumos condensados ricos em calorias. Estaciona o Peugeot 307 azul escuro, matrícula de 2006, no parque de estacionamento da área de serviço de Oeiras. E sai lentamente, vagarosamente, de dentro do carro percorrendo a pequena distância até ao snack-bar sem nunca tirar os olhos do piso adornado de inúmeras rachas no betão desgastado pela passagem do tempo e das pessoas e carros. Aparenta pouco mais de 30 anos mas carrega no olhar o peso de uma vida a valer o dobro da idade que se lhe percebe. Ontem percebia-se-lhe também um corpo esbelto por debaixo da gabardina clara com que se protegia do frio e da chuva. Os homens não conseguem deixar de reparar nestas coisas numa mulher, é algo que lhes é superior. Pese tamanha melancolia e desapego do que a rodeia, a minha curiosidade aumenta a cada dia ao reparar que os traços finos do rosto, a boca perfeita e a pele suave indiciam que procura disfarçar uma beleza capaz de fazer deter nela o olhar daqueles que se cruzam no seu caminho. Quase nunca lhe ouvi a voz, tão suave e silencioso é o modo como faz o pedido aos empregados do bar. Que nunca são os mesmos. Ontem ouvi-a, escutei-lhe a voz. Passou por mim e, perante o meu espanto, levantou os olhos do chão até se encontrarem com os meus, detiveram-se por instantes na minha surpresa esbugalhada, sorriu e desejou-me bom dia. Mal tive tempo de me recompor e balbuciar o bom dia que trazia guardado para outra ocasião que não aquela. Desviou lentamente o olhar e caminhou de regresso ao carro, olhos de novo nas rachas de betão, e arrancou. Depois de apanhar do chão o jornal que atabalhoadamente deixara cair, só já tive tempo de ver o azul do Peugeot esbater-se algures no tráfego intenso da A5 àquela hora da manhã.

José & Pilar





«A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.»

Antes de qualquer outra observação, devo realçar o quão gratificante é ver chegar às salas de cinema do vulgar circuito comercial uma obra documental como «José & Pilar», numa realização de Miguel Gonçalves Mendes.  A equipa do realizador português acompanhou o quotidiano do casal José Saramago e Pilar del Río durante três anos [entre 2006 e 2009] criando uma visão nova e objectiva, desprovida de juízos de valor, sobre o único Nobel português da literatura. Um filme que chega ao público quando as persianas da vida já há algum tempo se fecharam sobre o escritor, o que confere à obra um cariz ainda mais vincadamente emocional. E mais gratificante ainda é ver como o público português aderiu a um retrato filmado que revela uma relação que se agigantou num amor puro e verdadeiro e demonstra ainda uma enorme sensibilidade ao desvendar em Saramago um homem extremamente lúcido e carinhoso desfazendo com isso a imagem de pessoa arrogante que o acompanhou desde que chegou ao topo.

Saramago foi um escritor de enorme sucesso e um homem de vida cheia, daquelas vidas que normalmente apenas habitam os livros. E quando conheceu, aos 63 anos de idade, aquela que viria a ser a mulher da sua vida, a jornalista espanhola Pilar del Rio, uma nova vida se abriu sobre o homem e escritor numa relação que duraria até à sua morte, já em Junho deste ano. E é sobre esse grande amor, sobre a vida do escritor com a sua mulher, que se centra o documentário apropriadamente intitulado «José & Pilar». Filmado sobretudo na ilha de Lanzarote onde o casal construiu o seu lar mas também nas imensas viagens a que o escritor se via obrigado por não saber dizer não aos imensos convites que recebia, o que vemos desfilar na tela é o lado real mas intensamente emocional de um amor que nasceu a partir da busca de uma jovem mulher por um homem grande na sua arte e se foi construindo nas pequenas coisas do dia-a-dia, na intimidade de dois seres humanos que se entregaram profundamente ao amor que os unia.
Ainda assim, é importante verificar como a câmara de Miguel G. Mendes acompanha o processo criativo do escritor e capta as suas angústias e temores mas, sobretudo, as convicções que partilhava com o mundo sem jamais as querer impor. Hoje, José e Pilar convivem de mãos dadas numa esquina da Azinhaga, terra natal do escritor, onde as ruas José Saramago e Pilar del Rio confluem entre si. E na placa toponímica que identifica a rua que homenageia a mulher do escritor, está à vista de todos uma das mais belas mensagens de amor que alguma vez pude ler. Retirada da obra «As Pequenas Memórias», lá está a frase que perpetua um grande amor: «A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar.»
Obrigatório. Para amantes da escrita de Saramago, do homem apaixonado que foi Saramago, para amantes de cinema e para quem, como eu, acredita no amor desprovido de barreiras de diferenças de idade ou outras.

«José & Pilar», de Miguel Gonçalves Mendes, com José Saramago e Pilar del Rio

[Foto tirada na Azinhaga, a 24 de Novembro; há um par de dias atrás]


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A boa educação por Anton Tchekhov


[Rebecca Hall e Scarlett Johansson à mesa em «Vicky Cristina Barcelona»]






Falecido em 1904, o escritor e dramaturgo russo Anton Tchekhov escreveu que a boa educação não está tanto em não derramar o molho sobre a toalha de mesa mas muito mais em ter a capacidade de não notar que outra pessoa o faça. Suspeito que na sociedade actual muito poucos lêem Tchekhov e muitos menos seguem aquilo que tão nobremente defendia.



Preconceito



[New York Movie, 1939 - Edward Hopper]




Confesso que quando era adolescente, e mesmo até um pouco mais tarde já jovem adulto, quando conhecia alguém costumava perguntar a essa pessoa se gostava de cinema. E se a resposta era afirmativa de imediato colocava nova questão. Questão essa sobre que filme ou filmes vistos por essa pessoa a tinham de algum modo marcado ou influenciado. Se é que os havia. Eram perguntas quase ao estilo de “diz-me de que filmes gostas, dir-te-ei quem és”. Ainda hoje faço isso um pouco, embora apenas por brincadeira e nunca como fórmula de busca de conhecimento sobre a personalidade ou carácter do outro. Isto apesar das nossas preferências cinematográficas terem tudo a ver com a pessoa que somos. Com a forma como pensamos, como sentimos, com o nosso percurso de vida, académico, profissional e tudo aquilo que de algum modo nos fez ser o indivíduo em que nos tornámos. E até, por vezes, com aquela pessoa que amámos e que apesar de já nada sabermos dela continuamos a ser influenciados pela sua anterior presença na nossa vida.

A fragilidade do indivíduo

[Man Sitting - Back View - 1964, Wayne Thiebaud]






Anos atrás li um livro de estrutura narrativa grandiosa. Um livro unanimemente considerado como um dos grandes documentos da literatura mundial. Falo de «O Doutor Jivago», de Boris Pasternak. Hoje relembro como a obra é perfeita na demonstração da fragilidade do indivíduo, de como as vivências, os pensamentos e as reflexões de alguém podem estar tão de acordo com alguma inquietude que nos assola e necessariamente afecta os dias.


Jivago, burguês e médico, abandona Moscovo no dealbar de uma revolução. Fá-lo ao perceber que os meios determinam os fins. Isto é, que o bem gerará o bem e a força bruta só poderá gerar o mal. Imerso na violência da história, passeia-se um intelectual de alma solitária que se apaixona tremendamente por uma mulher muito mais jovem que ele. Uma mulher que encontra anos depois de a ter conhecido em Moscovo. Uma paixão intemporal que não irá viver dada a tragédia de que é vítima acabando por morrer de ataque cardíaco depois de sobreviver longo tempo na penúria.


Lembrei-me do Dr. Jivago. Do poeta, do homem apaixonado, do idealista. Lembrei-me de como não somos nada em confronto com o decorrer avassalador da vida, perante os acontecimentos sobre os quais não temos mão mas que nos condicionam o dia-a-dia, nos limitam os sonhos, nos fazem ter que recomeçar do zero quando julgávamos ter construído algo. Há em tudo isto muito de material [existe sempre algo de material em tudo] mas, sobretudo, de espiritual e trágico. E enquanto nos questionamos, vamos continuando o nosso caminho. Cansados, de olhar vazio, assemelhando-nos a autómatos, mas lá prosseguimos. No entanto, muitas vezes sem sabermos muito bem qual o rumo que devemos tomar.

sábado, 20 de novembro de 2010

A sexualidade infeliz



[Isabelle Huppert em «La Pianiste»]



No filme em que o austríaco Michael Haneke adapta um livro da sua compatriota escritora Elfriede Jelinek, «A Pianista», Erika Kohut vive uma sexualidade reprimida pela figura da mãe. O seu desequilíbrio emocional leva-a a soltar-se num voyeurismo desenfreado em sessões pornográficas e na observação de casais a terem sexo. Os excêntricos desejos sexuais desta mulher culta, professora de música no Conservatório de Viena, levavam-na a sentir-se refém da crueldade, do amor pela dor fazendo dessa dor o objecto que a fazia sentir prazer e atingir a desejada felicidade. O livro de Jelinek, segundo a própria, tinha muito de autobiográfico. Afinal, estas revelações que a escritora decidiu partilhar de si com o mundo têm tanto de fantástico como de realistas.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O cinéfilo que pintava quadros

[Nighthawks, 1942 - Edward Hopper]







«Nighthawks» é talvez o quadro mais mediatizado de Edward Hopper, pintor realista norte-americano que ficou celebrizado como o poeta da solidão. No quadro citado, e segundo as suas próprias palavras, Hopper refere apenas como uma possibilidade remota o facto deste ilustrar a solidão urbana. «Inconscientemente talvez estivesse a pintar a solidão de uma cidade», referiu a propósito. O pintor era um cinéfilo compulsivo e a perspectiva um tanto ou quanto bizarra que adoptou para «Nighthawks» assim como o jogo de luzes que as suas técnicas de composição permitiram, parecem comprovar essa mesma teoria. Hopper nasceu e morreu em Nova Iorque nos anos de 1882 e 1967.

Amores maiores do que a vida

[Cartas de uma Freira Portuguesa - Milo Manara, via E Deus Criou a Mulher]






«Os meus olhos é que perderam nos teus a única luz que os animava.»





Soror Mariana Alcoforado



Não raras são as vezes em que as grandes paixões permanecem eternas, afundadas na tristeza pela privação do outro, serenadas pelo lento passar do tempo que leva à triste resignação da perda. Soror Mariana Alcoforado, nascida e falecida em Beja nos anos de 1640 e 1723, foi uma dessas infelizes protagonistas de um amor maior que a vida. Apaixonada pelo fidalgo francês Noël Bouton (1636 – 1715), na altura em Portugal ao serviço da Cavalaria Francesa no reinado de Luís XIV, por essa paixão ardente a freira portuguesa quebrou o voto de castidade e propôs-se acompanhar o oficial até ao seu país de origem, não encontrando no entanto reciprocidade nesse desejo por parte do seu amado.



Famosa por escrever 7 fabulosas cartas que deram origem a livros e que pela sua beleza estética e fabulosa componente literária inspiraram poetas, escritores, pintores e outros artistas, decorreu em tempos no Real Mosteiro da Nossa Senhora da Conceição, em Beja, uma exposição que homenageava a religiosa portuguesa, que foi escrivã e vigária do templo, com a reprodução de litografias de Henri Matisse e de documentos originais que retratam a sua muito inflamada paixão que em tempo curto descambaria em saudade e dor. Deixo aqui ficar, com este texto, a minha singela homenagem a uma mulher que morreu não deixando que o seu amor alguma vez morresse em si.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A dor de sentir




 [Suicídio, de Edouard Manet - 1877]





Do livro «Gente Feliz com Lágrimas» [1988], de João de Melo, salta-me à vista este pequeno excerto. “Nos olhos dela, perdura ainda uma solidão compassiva e extenuada, dessas que a vida não consegue explicar. O hábito de ser triste culpabiliza nela a própria ideia de felicidade. Tal como nós, não sabe ser feliz sem lágrimas, nem rir sem o remorso da alegria, e isso vê-se-lhe nos olhos.”

Sorrio. Lembro-me de Camilo Castelo Branco, de si próprio e do seu «Amor de Perdição» [1862], de Van Gogh, do Shakespeare de «Romeu e Julieta» [1595], de Virginia Woolf, de Ernest Hemingway, Kurt Cobain e tantos, tantos outros e detenho-me apenas a tentar interpretar um sentimento voraz que de tão intenso se transforma em apetite que somente o trágico sabor da vida pode saciar.

Medo no cinema

Agarrados à Cadeira na Sala Escura do Cinema



Há tempos a revista Actual, do Expresso, apresentou-nos um interessante trabalho sobre o horror no cinema. Que é como quem diz, sobre os filmes de terror. Confesso que não considero este como um género menor do cinema tal como se escreve no texto da publicação, mas, neste caso particular dos filmes de terror, as minhas exigências enquanto espectador são muito mais elevadas que noutros géneros mais populares, mais próximos de nós, do nosso quotidiano. Isto porque é imperioso que sinta um vislumbre de veracidade na história que se desenvolve na fita muito para além dos aspectos conceptuais da realização. Estes que podem ir desde a excelência dos dècors – que são, claro, essenciais no género cinematográfico – ou da perfeição na caracterização dos actores – também um aspecto fundamental para o sucesso de um filme de terror. Significa isto que um filme de terror que alcance uma consistência dramática capaz de libertar a porção correcta na mistura de tensão e medo no espectador, possui desde logo duas características fundamentais para se tornar num bom filme do género. Mas estas duas não sobrevivem sem uma outra especificidade: a capacidade de atingir uma dimensão de verosimilhança com a realidade ou do que pode estar para além dela. Claro que a tudo isto o meu amigo
António Pascoalinho – um dos maiores se não o maior especialista de filmes do género em Portugal – responderia com um enorme bocejo. Mas, reconheço, até pelo que foi dito atrás, estou a quilómetros do seu gozo especial em 'molhar a sopa' nos jorros de sangue que fazem as delícias dos grandes fanáticos do género em que outro amigo, o Filipe Lopes, também se inclui.



Com honrosas excepções, quase todos eles fazem parte da lista que o Expresso disponibiliza no referido trabalho. Mas eis a minha relação de melhores filmes de terror da história do cinema. Fora desta lista ficam sequelas e personagens míticas como o Conde Dracula, Frankenstein,
Freddy Krueger (Pesadelo em Elm Street), Jason Vorhees (Sexta-feira 13), Allien e outros. Por outro lado, dada a sua dimensão trágica e humanista numa figura inumana, Nosferatu (1922), de Murnau, ocupa um lugar de destaque numa listagem restringida aos melhores. Na minha modesta opinião, claro.












[ Nosferatu (1922), de F.W. Murnau - O início]






1 - [The Shining (1980), de Stanley Kubrick - A genialidade do mestre]







3 - [The Birds (1963), de Alfred Hitchcock - Tese de doutoramento do mestre do 'suspense']





4 - [The Exorcist (1973), de William Friedkin - Possuída pelo demónio]





5 - [ The Fly (1986), de David Cronenberg - Apanhado nas teias do seu próprio desejo de evolução científica]




6 - [Rosemary's Baby (1968), de Roman Polanski - Histeria e assombração]





7 - [Halloween (1978), de John Carpenter - Guiados no medo pelos olhos do impiedoso assassino]





8 - [Night of Living Dead (1968), de Georges A. Romero - A morte saiu à rua (numa noite assim)]








10 - [Jaws (1975), de Steven Spielberg - Medo e perturbação]














terça-feira, 16 de novembro de 2010

O exímio fantasista




Invariavelmente pitoresco e sedutoramente colorido, busca referências do passado no sótão das suas memórias, descreve fervores políticos e gentes bizarras, é interventivo socialmente, revela os apelos da sexualidade e tão depressa flutua numa doce áurea de romantismo como imediatamente resvala para a obscenidade.





Sim, seria deveras reconfortante que o parágrafo acima descrevesse a minha ziguezagueante actividade aqui na casa. Mas não, é de Fellini e do seu incontornável «Amarcord» (1973) que falo.

 
 




De má fé

[Poplars on the Epte - 1891, Claude Monet]




Dou um passeio pela blogosfera, leio alguns textos aqui e ali e um pouco ao acaso folheio alguns comentários que são deixados nesses blogues. E fico espantado comigo por continuar a deixar que a natureza humana me surpreenda. Por vezes julgo perceber que alguém que escreve publicamente sobre o que lhe queima a alma deixa entrever um espírito sensível e tão sedutoramente ingénuo e puro. E incomoda-me que receba por parte de outrem observações não só despropositadas como cruéis. É como alguém escreveu um dia. Há pessoas que olham para a floresta e só vêem lenha para queimar.


Elas & Nós

[A actriz francesa Emmanuelle Béart]






A citação vem no jornal Público e pertence ao actor e dramaturgo francês Marcel Achard (1899 – 1974): ‘As mulheres gostam dos homens silenciosos porque acreditam que eles estão a ouvi-las’. Mas essa é a grande culpa do homem. Porque enquanto as mulheres falam nós vamos observando os gestos delicados que fazem com as mãos, os lábios avermelhados do sangue que lhes aquece o corpo em suave sintonia com aquilo que certamente dizem, o sorriso entusiasta perante o nosso olhar atento mas absorto, e, no final, se tivermos sorte, ainda recebemos um abraço. E se mais sorte tivermos, um beijo caloroso. E quando elas nos perguntam o que pensamos dos largos minutos em que falaram arrebatadas pelo valor do discurso, nós que nada ouvimos embora estivéssemos deliciados na atenção que lhes dedicámos, respondemos apenas que nada mais há a acrescentar a tamanha lucidez e eloquência. E recebemos de novo um abraço, este merecido, e, com um pouco de sorte, novo beijo ainda mais quente que o anterior. Mas lá bem no fundo, nós sabemos que elas estão perfeitamente cientes do que se passa nestes momentos e percebem que na nossa fraqueza perante os seus encantos reside o seu triunfo. E para nós, homens, fica reservada a vitória moral.




segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Siddharta, o indiano












Para quem leu o livro, sabe que «Siddhartha» - obra fundamental da literatura de sempre, de Hermann Hesse - é a história de uma procura. De uma procura que alguém leva a cabo e onde o elemento mais importante não é o ponto de chegada mas sim o percurso realizado para lá chegar. Siddhartha é um jovem indiano bem-nascido mas totalmente insatisfeito com a vida que tem. Resolve então partir à aventura na tentativa de encontrar aquilo que o pode completar. Embora, à partida, não lograsse perceber o que procurava. Nessa busca, de anos, experimentou de tudo. Entregou-se à luxúria, ao jogo, tornou-se asceta e interagiu com as mais variadas personagens conhecendo os múltiplos aspectos da vida.



Ou seja, um homem que tinha tudo percebeu que sem passar por privações, sem conhecer o desânimo ou o sabor amargo da derrota, sem ter a necessidade de se reinventar para ultrapassar obstáculos conhecendo a dor e o sofrimento jamais conseguiria identificar a felicidade e lidar com ela caso existisse como um todo. E é um facto que sempre que me acontece algo de menos bom e que de algum modo me provoque sofrimento procuro recordar-me de Siddhartha. Isto para não esquecer que felicidade e tristeza se completam. E que mesmo parecendo um paradoxo, a felicidade e a tristeza atribuem à vida aquele espantoso equilíbrio que todos buscamos no dia-a-dia. Apesar disso, confesso-vos que em momentos menos bons não fosse o enorme respeito que nutro pelos livros e já teria rasgado «Siddhartha» de Hesse. Que se ponha de pé quem não se importa de sofrer para melhor saborear a felicidade.



domingo, 14 de novembro de 2010

O cansaço dos dias

[Pintura de Andrew Wyeth]




Sentia-se demasiado cansado naquele dia. Era tarde e a noite caíra sorrateiramente sobre a cidade, o demasiado calor para a época  anunciava a tempestade e o vento forte fazia estremecer a sombra das árvores numa dança estranha no negrume do pavimento. Deixou-se ficar sentado na noite a ouvir o silêncio poético que antecipava a intempérie. Enquanto escutava, adormeceu. E sonhou. Uma mulher sorriu-lhe no sonho. Estava linda no seu sorriso, aquela mulher. Um cão latiu ao longe, os travões de um carro que parara no semáforo a pouco mais de cem metros de si chiaram, a noite já então fizera esquecer completamente o dia, acordou. A mulher já lá não estava, desvanecera-se no acordar dele. Entretanto, na esquina da rua uma velhinha que há muito enlouquecera pôs-se a cantar.


Slumdog Millionaire







O Triunfo da Vontade





Será «Slumdog Millionaire», no seu título original, o melhor filme de 2008? Pode até ser, mas ter pelo mais recente trabalho de Danny Boyle um nível de estima tão elevado pode levar-nos à obrigação de tecer variadíssimas considerações sobre o cinema em geral. No entanto, esse não é um dado negativo e é até um dos grandes trunfos da realização de Boyle. Isto, a par da forma inteligente como retrata o drama das gentes que crescem nos bairros da lata de uma metrópole como Bombaím, mas, sobretudo, da história tocante que relata de um jovem de uma pureza e de um carácter ímpares que tem uma única ambição: a de recuperar para si o amor da sua vida. Para isso predispõe-se a participar no concurso local do «Quem quer ser milionário?». Mas como Jamal Malik (Dev Patel) é um simples assistente de Call Center, um slumdog [que poderá traduzir-se como cão (dog, claro) de bairro da lata (slum), pese a tradução do filme insistir em chamar-lhe rafeiro], ao chegar à pergunta que o poderá transformar no grande vencedor do concurso é acusado de aldrabice e levado para a esquadra da polícia para ser cruelmente interrogado. É então que o filme ganha alma e que a narrativa substitui o suspense tradicional por uma fluidez frenética. Nesta ambiência indistinta, é na miséria retratada que os cenários ganham cor e é a música que impulsiona o delírio dos factos chocantes e comovedores inerentes ao percurso de vida de Jamal.



Danny Boyle é o cineasta de «Trainspotting» (1996), mas também de «A Praia» (2000) e de «28 Dias Depois» (2002) filme onde abraça de novo o experimentalismo que é característica fundamental do seu cinema. Em «Quem Quer Ser Bilionário?» o inglês reúne-se de uma equipa de jovens actores amadores recrutados nos bairros da lata de Bombaím. E tem sorte. Não obstante a denúncia que faz dos abusos, do pouco respeito pelos direitos individuais dos cidadãos e até da rivalidade religiosa existente na Índia o filme recusa tornar-se panfletário para abraçar uma causa bem mais do domínio da alma humana que da problemática civilizacional. Jamal está-se nas tintas para o dinheiro que a vitória no concurso lhe pode dar, Jamal quer apenas recuperar a bela Latika (Freida Pinto) por quem sempre se manteve apaixonado. E na pergunta final, Jamal Malik não é – como nunca foi – o concorrente televisivo que está prestes a tornar-se riquíssimo. E nos cafés, nas ruas, nas casas, Jamal representa não um colectivo mas sim a certeza (individual), para cada um dos que o vêem, de que o sonho é possível. Pouco importa se o sonho do dinheiro e da mudança de vida para bem melhor que este pode proporcionar não esteja sequer nos objectivos de Jamal Malik. E, neste aspecto, o jovem indiano funciona até como o anti-herói. Não porque recuse a glória mas porque nem dela tem sequer conhecimento.



Arrisco afirmar que o sucesso de «Slumdog Millionaire» tem tanto de inesperado como de fruto do acaso, do momento. Isto apesar da excelente direcção de actores, da realização apaixonada de Boyle e outras relevantes características cinematográficas. Na verdade, este é o filme certo no momento certo quando a civilização atravessa uma crise que a faz questionar-se sobre o certo e o errado. Afinal, impérios construídos sobre estratégias bem delineadas e que foram conduzidas por homens e mulheres bem preparados caem diariamente. E Jamal Malik, que nasceu e cresceu nos bairros de lata de Mumbai até estes se transformarem na desordenada Bombaím, conseguiu a felicidade apenas à custa de acreditar no amor e de recusar a mentira. Tudo isto sobrevivendo rodeado das mais incríveis barbaridades. E na sua vitória Jamal Malik não é um jovem de sucesso, ele é somente um jovem feliz. Repito a ideia inicial: «Quem Quer Ser Bilionário?» talvez não seja o melhor filme de 2008, sequer um filme grandioso. Mas é feito de muita paixão, de vida, de esperança, de emoção. Afinal um conjunto de sentimentos brilhantemente adaptado para cinema.





«Quem Quer Ser Bilionário?», de Danny Boyle, com Dev Patel e Freida Pinto



quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A mulher

[Rachel Weisz, uma mulher]


Gosto de escrever. A escrita permite que moldemos o mundo sob o nosso ponto de vista e dêmos à vida os contornos que muito bem nos aprouver. Neste âmbito, sempre tive uma ideia romântica da mulher e embora no decurso da vida sejamos assaltados por pensamentos parasitas e ensaiemos alguns passos de dança com corpos estranhos a esse ideal, o perfil dessa mulher – que não está vedado a pequenas variações – está criado, existe.

O rosto dessa mulher é desenhado a traços muito femininos, bem definidos, e deixa escapar uma áurea nostálgica que permite adivinhar a preferência por um sorriso franco que transmite um sentimento em detrimento de uma gargalhada forte que surge apenas como resultado de um reflexo. Dos seus olhos, castanhos, ressalta um delicioso colorido de avelã. Os cabelos, também eles castanhos, a voz, um tom de voz suave que altera apenas de quando em vez para se poder fazer compreender nos momentos em que o ruído dominante a isso obriga. Os olhos brilhantes, sim, os seus olhos castanhos brilhantes, exprimem para o mundo exterior as emoções que procura reter interiormente. Mas procura escondê-los amiúde,  deixando fugir o olhar até o deter em locais vagos e incertos. Tem um corpo lindo, perfeito, é uma mulher elegante. E sofisticada sem que procure trabalhar este pormenor. Mas não necessita fazê-lo, a sofisticação é-lhe inata e emprega-a com toda a naturalidade do mundo. Gosta de se manter em forma, adora um bom livro e é fã de cinema. É de uma delicadeza suave e é encantador o carinho com que interage com os outros. Isto, embora seja directa mesmo que evite ferir a quem se dirige. Pese tudo o que se disse, tem dificuldade em expor mais de si do que aquilo que dá a perceber involuntariamente.

Talvez esta mulher não exista. Ou talvez exista apenas no mundo que a escrita molda. Mas é esta a mulher.





quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Da vida


[«Storytime», ilustração de George Barr]



Nos contos de fadas não há lugar para surpresas desagradáveis e tudo acontece ordenadamente até ao também harmonioso final. De certo modo, se a nossa vida decorresse como nas histórias de infância teríamos a felicidade garantida. Mas como a perfeição não existe, essa seria uma felicidade cozinhada em lume brando onde não há lugar para a ansiedade pelo tempo que se espera, para o desaire ou para a conquista, para o ardor, para a paixão. Assim sendo, deixemos as fadas no seu mundo e aceitemos as vibrações que a vida nos transmite mesmo que por vezes tenhamos que rebobinar as nossas emoções e obrigar-nos a que tudo volte ao seu início.


Autor maldito

[Kate Winslet e Geofrey Rush numa das cenas de um filme sobre o polémico Marquês de Sade]



Doantien Sade, que ficou conhecido para o mundo como o Marquês de Sade, viveu em França nos finais do século dezoito e inícios do século dezanove. Tendo levado uma vida dedicada à luxúria, Sade, aristocrata e libertino, foi desde sempre um autor maldito. Isto, talvez porque os homens em vez de procurarem compreender o que não entendem preferem imediatamente acusar e condenar, embora, sejamos justos, neste caso se entendam sem dificuldade as razões para tanta aversão. Apesar disso, e das suas práticas, Doantien Sade era um homem de convicções e ideias claras e podia mesmo fazer minhas algumas das palavras que deixou para a posteridade. Sem comentários adjacentes, destaco dois desses pensamentos que se podem ajustar ao conceito com que vou edificando este blogue. Dizia o célebre autor francês que ‘antes de ser um homem da sociedade sou-o da natureza’ e ‘dirijo-me às pessoas capazes de me entenderem, essas podem ler-me sem perigo’.

Mas um dos ideais que provavelmente mais contribuíram para a sua própria concepção de vida e que, se mais não houvesse, só por si justificaria todo o efeito negativo e mesmo pejorativo atribuído ao sadismo pode retirar-se da sua convicção de que ‘a primeira lei que a natureza lhe impôs foi a de gozar à custa de qualquer um’. Foda-se lá o gajo.


Allen Stewart Konigsberg






Ou seja, Woody Allen.



Sobre o seu «A Rosa Púrpura do Cairo» (1985), o cineasta declarou ter-se limitado a dar ênfase aos “encantos do imaginário em oposição à dor de viver”. Woody Allen é o realizador por excelência dos filmes protagonizados por anti-heróis com grandes dificuldades em adaptar-se ao mundo sobrevivendo à realidade enfrentando-a através de uma atitude de gozo de cariz masoquista. Mas o admirável no mais nova-iorquino realizador de cinema é a sua espantosa capacidade de fazer comédia a partir de conjunturas aparentemente banais do quotidiano dos homens e das mulheres mas que são afinal o ponto de partida para situações bem dramáticas na vida real.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Descartes e a infância de Cristina

[Seated Girl (Fränzi Fehrmann) - 1910, altered 1920 - Ernst Ludwig Kirchner]


Fui admitido na então escola primária já com sete anos. E apenas três meses depois já tomara contacto com a complexidade da filosofia de Descartes. Pedro era o melhor aluno da sala, lia como um sacerdote, falava como um sofista e sabia a tabuada de trás para a frente. Mas não jogava à bola connosco no recreio, não tinha uma fisga para partir as lâmpadas da rua onde vivia o Sr. Ambrósio - o aborrecido do nosso professor - e de tanta inércia física tornara-se muito pesado. Apesar das suas inúmeras qualidades, para nós o Pedro não existia. Pensava mas não existia. Ao invés tínhamos a Cristina, sempre tão sorridente, sempre tão afável, tão dada às nossas brincadeiras inocentes. Era linda como uma princesa saída do mais soberbo conto de fadas e não havia rapaz que não a desejasse mimar, beijar as suas faces rosadas, que não sonhasse com ela. Quando eu a olhava, me fixava naquele rosto rosado de saúde e de vida, sentia que me faltava o chão debaixo dos pés, que perdia o sentido das coisas e mal me aguentava nas pernas delgadas e compridas. Naqueles momentos, o mundo parava em meu redor e nele só cabia a Cristina. Não era muito boa aluna e tempos mais tarde teve até que repetir o terceiro ano. Não, não pensava muito, mas existia.




Tributo



Era um intelectual de fazer inveja, mas quem o visse de boné a tapar a calvície e jornal invariavelmente no bolso do casaco a subir a Avenida da Liberdade em direcção à Lusomundo ou uma qualquer outra avenida para mais um visionamento de imprensa dos quais era um dos mais assíduos, diria que era apenas mais um anónimo como tantos outros a deambular pela cidade. Enquanto esperava pelo início das projecções, falava acaloradamente de cinema de igual forma com novos e velhos, mais ou menos reputados. Idolatrava John Ford , era o mais antigo programador da cinemateca e integrava o quadro de críticos de cinema do «Expresso». Vai hoje a enterrar, mas o seu exemplo perdurará e os seus escritos e pensamentos sobre cinema não deixarão que alguma vez abandone o mundo dos vivos. Obrigado, Manuel Cintra Ferreira, até sempre.


A era do projecto


[Mental (Project?), Gilbert and George]




Há dias tive uma torneira avariada cá em casa. Telefonei a um canalizador meu conhecido e enquanto lhe passava o cheque para pagar o trabalho feito, o tipo esclareceu-me que teria que arranjar outra pessoa para este tipo de tarefas porque ele se tinha metido num projecto de exploração de um bar. Achei que me ficava bem e dei-lhe os parabéns. Na sexta-feira de manhã tentei marcar uma reunião de trabalho para 2ªfeira às cinco da tarde, mas a pessoa com quem eu preciso reunir não está disponível a essa hora porque se tinha metido num projecto de ginásio. Cumprimentei-o pela iniciativa e resignei-me a nova data para conversarmos. O Álvaro, que era o meu informático de serviço, desligou-se dos computadores porque finalmente conseguiu iniciar um projecto de teatro numa companhia independente. Desejei-lhe sorte, obviamente.

Não há a menor dúvida, vivemos na era do projecto.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A avó de alguém

[Imagem retirada da Internet]






O meu carro não estranha, percorre veloz o alcatrão da A1. Direcção sul, paro na área de serviço de Pombal, entro no restaurante. Assim que me encontro no interior do estabelecimento vejo uma senhora a olhar fixamente para mim. Vestes austeras, rosto sofrido, cabelos brancos bem cuidados, olhos cansados a lembrarem uma juventude perdida. Tem certamente mais de oitenta anos de idade, dirige-se para o local onde me encontro. E fala-me. Pedro, Pedro, por onde tens andado, filho? E lança-me o braço apertando com a sua a minha mão. Não, é confusão sua, eu não sou o Pedro, respondo-lhe. Ela retrai-se, dá um passo atrás, contempla-me dos pés à cabeça. Não és o Pedro?, balbucia entristecida. Não, tenho pena pelo seu engano, não sou o Pedro. Tento ser carinhoso, ela insiste. Não és o Pedro? E sabes onde o Pedro está?  Não tenho tempo de lhe responder, uma outra senhora, talvez uma irmã, talvez uma simples amiga, pede-me desculpa e sugere à senhora que partam. Fiquei a olhá-las e ao autocarro onde entraram até que este desapareceu ao longe na faixa negra da auto-estrada. Talvez a senhora fosse finalmente ao encontro do Pedro que tanto ansiava encontrar.

Crónicas de amor e ódio


[A modelo fotográfico Iga A. - Gosto de a ver trabalhar]



Tenho pouco tempo para me deixar ficar em puro estado de indolência. Estes raros mas muito agradáveis momentos de inércia normalmente dão-se entre as onze, onze e picos da noite e prolongam-se até por volta da uma, uma e trinta da manhã. Mantenho convicta e orgulhosamente a televisão desligada a não ser que a modelo fotográfico Iga A. se apresente ao serviço num qualquer desses canais por cabo. Por via disso, é nas páginas da Internet que a minha vigilância se vai perdendo numa sonolência que me leva à cama e ao dia seguinte num upgrade de força e motivação que me faz encarar a vida com um renovado sorriso de esperança na espécie humana, na preservação da flora, na pujante vida animal, num Benfica novamente dominador ou até em ti mulher bonita que me lês algures em Mountain View, Califórnia, e inundas os gráficos do ‘Sitemeter’ aqui da casa. E nas várias leituras que faço, choca-me como alguns homens e mulheres, sobretudo elas, se entretêm a destruir a gloriosa memória de amores que se desvaneceram mas que num tempo definido das suas vidas os fizeram rejubilar, sonhar, viver. O amor não o merece por muito que as pessoas mudem. E um dia haverá em que todos iremos olhar para os dias então longínquos em que viajámos nos braços da paixão para constatarmos que valeu a pena. E é bom que celebremos a alegria mesmo que agora, como eu dizia, se perceba que para alguns a tristeza ande tão próxima da raiva.

A história por detrás da lenda




Para além do momento da concepção da maior rede social do planeta, «A Rede Social», de David Fincher, é o relato dramático de uma tragédia pessoal: a de um rapaz que tem tudo a que não dá importância, o dinheiro,  a sagacidade de uma mente invulgarmente capaz e um poder quase sem limites, mas que perde provavelmente aquilo que o faria mais feliz: o seu único amigo real e Erica, a sua namorada. Fincher constrói ainda um filme onde estão bem patentes a amizade, a traição, a desolação e a alienação que acompanham o mais jovem multimilionário do mundo, precisamente Marck Zuckerberg, o criador do Facebook essa tal rede virtual de amigos de vertiginosa propagação universal.

Crítica completa a «A Rede Social» no «Porto de Escala»

A Rede Social



Mark Zuckerberg
Adicionar como Amigo


«A Rede Social» fala-nos do momento da concepção da maior rede social do planeta, o Facebook. Só este pormenor, por si só, seria catalisador da atenção de milhões e milhões de utilizadores de tão importante plataforma digital, mas, ao mesmo tempo, colocava o realizador David Fincher perante um problema de aparente difícil resolução: como iria este contornar a questão de dar algo mais aos espectadores de cinema que a muita informação sobre Marck Zuckerberg (o autor da rede) e sobre o próprio Facebook já disponível um pouco por toda a parte? Mas a primeira resposta a esta dificuldade foi dada por Aaron Sorkin, o argumentista, que embora se tenha baseado na obra «The Accidental Billionaires», de Ben Mezrich, trabalhou os dados muito à sua maneira com vista à obtenção de um objectivo final, a satisfação dos espectadores. E sem desvendar já tudo, a solução está aí e agradará provavelmente a todos aqueles que apontam o dedo a muitos dos utilizadores da Internet: pelo que o filme mostra, Zuckerberg é para Sorkin um jovem com dificuldade para se relacionar socialmente, de genialidade obsessiva e vingativo. No entanto, entre a verdade dos factos e aquilo que é a dramatização ficcional dessa realidade, está aí um filme poderoso que não deve deixar de ser visto por quem quer que seja, utilizadores ou não do Facebook.
David Fincher tem somente 48 anos de idade mas possui já no currículo alguns dos filmes da vida de muito boa gente («Sete Pecados Mortais» 1995, «Clube de Combate» 1999 e  «Zodiac» 2007 estão nesta lista) assim como outros títulos não menos importantes («Allien 3» 1992, «O Jogo» 1997, «Sala de Pânico» (2002) e «O Estranho Caso de Benjamin Button» 2008). Daí que deste americano nascido no Colorado se espere sempre o melhor. E com «The Social Network», no seu título original, Fincher constrói um filme onde estão bem patentes a amizade, a traição, a desolação e a alienação que acompanham o mais jovem multimilionário do mundo, precisamente Marck Zuckerberg, o criador do Facebook essa tal rede virtual de amigos de que todos falam e de vertiginosa propagação universal.
Há no entanto uma história de vida por detrás da lenda. E essa, a história de vida, começa precisamente quando Erica (Rooney Mara) diz a Zuckerberg (Jesse Eisenberg) que um dia ele irá ficar sozinho por ser um cretino, enquanto prepara ela mesma o rompimento da relação que até então mantinha com o jovem. Daqui para a frente, através de fragmentos dos diversos acontecimentos e até à consolidação de Zuckerberg como o genial criador do Facebook, Fincher conduz a câmara à velocidade da inteligência superior do estudante de Harvard sem nunca esquecer a estranheza e complexidade da sua personalidade. E mais do que dar a perceber que a chave para um bom negócio é a correcta identificação das necessidades das pessoas ou que as elites reagem com agressividade quando vêem o seu poder ser colocado em causa, «A Rede Social» de David Fincher é o relato dramático de uma tragédia pessoal: a de um rapaz que tem tudo aquilo a que não dá importância, o dinheiro,  a sagacidade de uma mente invulgarmente capaz e um poder quase sem limites, mas que perde provavelmente aquilo que o faria mais feliz: o seu único amigo real (um excelente Andrew Garfield) e a já citada Erica, a sua namorada.
Será que o criador do Facebook é aquele rapaz que quase sem fazer por isso ou mesmo involuntariamente se revela um autêntico cretino? E que apesar do seu brilhantismo é um jovem solitário incapaz do amor e da amizade? Ou será que os criadores de «The Social Network», nomeadamente o seu argumentista, quiseram através de Marck Zuckerberg caracterizar uma comunidade que ama e faz amizades tanto quanto destrói relacionamentos à distância de um clique? São perguntas necessárias intelectual e emocionalmente mas que para o deve e haver final nas contas do filme pouco importarão. Até porque estes foram factores importantes para que este seja um filme fácil de se gostar. É que na sua desorientação perante algo que criou mas cuja realidade parece ultrapassá-lo, Zuckerberg acaba por se revelar um ser humano como qualquer outro.Apesar dos muitos amigos no Facebook, frágil perante a solidão que o envolve. E a pergunta final é óbvia, por acaso será que alguém conhece por aí uma história parecida com esta?

«The Social Network», de David Fincher, com Jesse Eisenberg, Andrew Garfield, Justin Timberlake e Rooney Mara



sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O velho e o mar







Poucos serão os que não conhecem a obra-prima de Ernest Hemingway, «O Velho e o Mar». Nesse pequeno livrinho onde se conta a história de um pescador cubano a pescar sozinho, e há mais de oitenta dias sem conseguir um único peixe até que se depara com um enorme peixe-espada, a narrativa é tão simples e ao mesmo tempo tão cativante que o desespero de ambos na luta pela sobrevivência, peixe-espada e pescador, acaba por se tornar num espantoso ensaio sobre a condição humana. E à chegada ao porto não é difícil imaginar a ambiguidade do sorriso do velho e pobre pescador, ele que dominou a sua presa mas dela lhe restaram apenas o rabo, a espinha e a cabeça. Apesar do seu dramático triunfo, Santiago sorri na inevitabilidade daquilo que faz e que é, afinal, a razão para continuar a sentir-se útil, vivo. E não é por acaso que durante o seu isolamento nas águas do golfo em busca do sustento, o velho homem questiona a sua condição de pescador para logo a seguir concluir que nasceu para aquilo mesmo. E essa é muitas vezes a diferença entre a literatura e a vida. Porque na literatura mesmo os homens e mulheres que falham o fazem perseguindo o seu destino. E são, de certo modo, pessoas felizes porque fazem aquilo para que desde sempre se sentiram predestinadas. O facto faz-me pensar na vida real, aquela que vivemos fora dos livros. Porque muitas vezes criado pelos próprios, um conjunto de condicionantes obriga a que muitos de nós vivamos e trabalhemos bem longe daquilo que nos faria de certo pessoas bem mais realizadas. E, já agora, mais felizes.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Do grave que é e das perguntas à queima-roupa

[Gas - 1940 - Edward Hopper]


Enquanto esperava a minha vez de pagar o combustível, uma mulher de cerca de trinta anos dirigia-se ao caixa em tom lastimoso queixando-se de mais uma semana de trabalho que estava difícil de terminar. Sentindo a minha presença, olhou na minha direcção e mesmo sem me conhecer de lado algum perguntou-me se haveria coisa pior. Respondi quase sem a olhar e sem pensar muito: 'sei lá, um grave edema pulmonar!?' Ficou calada. Aparentando um ar desconfiado, deu meia volta e saiu para a rua. Estou certo que concordou comigo.


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O preço



[O escritor Philip Roth]





Leio algures num sítio da blogosfera uma citação de alguém que diz que jamais devemos justificar-nos; isto porque os nossos inimigos recusam-se a acreditar-nos e os verdadeiros amigos não precisam (de justificações)’. Este pensamento leva-me até um livro maior de Philip Roth, «A Mancha Humana». Pela obra vagueiam duas personagens a reinventarem-se por força da rejeição da sociedade em que estão inseridos. Uma, Coleman Silk, procura libertar-se do estigma racial engendrando para si uma nova identidade; e outra, Fauna, procura na relação amorosa com Silk uma nova oportunidade de redenção e esperança. Não seria necessária a leitura do livro para perceber que algo do género possui um risco elevado de insucesso e de trágico. Daqui se conclui que a única forma de lutar contra a hipocrisia residirá na busca por fazer prevalecer a verdade do que nos individualiza como seres humanos. Mas não sejamos ingénuos, seja qual for a opção que se tome haverá sempre um preço a pagar.

Herói sem Estrela



Julgo que tinha acabado de chegar à idade adulta quando tive a feliz oportunidade de assistir em sessão privada a «O Comboio Apitou Três Vezes». Desde então, uma cena do filme – um western com uma carga psicológica profunda e de certo modo em rompimento com os cânones de então do género – ficou-me retida na mente através do profundo respeito que senti pelo Xerife Will Kane.



Kane é o Xerife da cidade de Hadleyville. São 10.30 da manhã e no comboio prestes a chegar à cidade viaja um fora-da-lei anteriormente condenado à prisão através da sua acção de agente da autoridade. Enquanto os figurões do pequeno burgo e restante população se acobardam e abandonam o local, um irmão e dois cúmplices já aguardam na estação pela chegada do bandido sedento de vingança. Só, tremendamente só, Kane desobedece aos apelos até da própria mulher e decide enfrentar o perigo. Ás 12.15 horas já tudo acabou tendo conseguido derrotar os marginais. À vista da cidade que acorre a si para o felicitar, Kane, impassível, silencioso, retira do peito a estrela de Xerife e atira-a ao chão com sintomática indiferença renunciando ao cargo. E é este o momento chave do filme, a cena invejável para a qual é necessária uma coragem digna de um ser humano grandioso, o gesto que persiste em me invadir o subconsciente.



Naquele momento, ao atirar a estrela de Xerife ao chão e renegar o estatuto de herói, Kane demonstra toda a solidão de um homem a viver acima das suas forças em nome de um colectivo cobarde e oportunista que o não merece. O que Kane faz, no fundo, é retomar o seu papel na sociedade assumindo a fragilidade do ser humano incapaz de continuar a cumprir uma tarefa que o desgasta a si e que se revela apreciável apenas ao olhar alheio. Na altura vi o gesto de Will Kane como algo de exultante que me agitou ideais e fez rever preconceitos. Mas hoje, tantos anos passados sobre a primeira visão do filme, penso na personagem protagonizada por um Gary Cooper admirável e sinto-me pequeno perante a grandeza da sua atitude. Para agravar ainda mais a questão, observo como cada vez mais ridícula uma sociedade – a actual – onde este tipo de homens não tem lugar. O destaque de hoje, sabemo-lo bem, vai inteirinho para uma bem definida classe de vencedores.