segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Porto

[Torre dos Clérigos - Armando Aguiar]







Porto grave e sério



Caía uma chuva miudinha sobre o Porto, naquela noite.



Desde o hotel, com acento francês, em Gaia, conduzi o meu carro e deixei que deslizasse lentamente até quase metade da Boavista. Na Arrábida olhara a foz à minha esquerda, o beijo das águas do rio na boca do mar; lá ao fundo, à direita, altaneira, a Torre dos Clérigos, mais abaixo o Palácio de Cristal, a ribeira junto ao curso de água, e, centenária, férrea, ao longe a perder de vista, a Ponte de D. Luís, o casario em cada ponta dos dois tabuleiros. Distraído na contemplação de ti, Porto, ocupei duas faixas do pavimento enegrecido. Buzinaram-me. Uma, duas, três vezes, deixei de as contar, teriam sido quatro? Não, talvez fossem apenas três.



Na Boavista jantei no restaurante Cufra.



Foi acomodado nos seus bancos compridos, assentos vermelhos cor de vinho, que confortei o estômago e passeei o olhar pelas gentes em redor. Em redor vi gentes da gente do Porto, visitantes, convidados da invicta cidade, os funcionários trajados de azul, vi mulheres que entraram, mulheres que saíram, homens que saíram, homens que entraram, casais divertidos, silêncios escondidos, olhares retraídos, sorrisos francos, sorrisos de ocasião, copos cheios, uma mão na mão, copos de cerveja, bocas que mastigavam, copos vazios, francesinhas em vaivém incessante, ruídos abafados, uma televisão ligada. No futebol.



Aprendi a amar o Porto, a senti-lo de modo especial. Há algo de poético nas suas ruelas estreitas, nas calçadas gastas pelo pisar incessante de sapatos de saltos altos, rasos, meio salto, saltos gastos, novos, a luzir, cansados, desbotados. O Porto é uma cidade com história e de muitas histórias por contar. O Porto é grave e sério, como alguém escreveu e outro cantou. A cidade guarda no seu âmago o fogo vivo da excitação dos amantes das noites claras, bem regadas, chovia ontem, bebidas, noites animadas, era uma chuva miudinha a que caía; o Porto que vive com sofreguidão a correria do dia. Nas ruelas de luz bela e sombria, cantemo-lo. É uma cidade com alma, uma urbe misteriosa, sedutora de tão feliz na sua aparência triste e pesada. Porto empedernido, Porto de igrejas, museus e do vinho nas caves de Gaia.



No regresso ao outro lado, a neblina, a cidade a ajeitar-se nos lençóis dos seus residentes e hóspedes.



Já em pleno hotel, uma recepcionista sorriu pela enésima vez mostrando um sorriso dedicado, mas que - fiquei triste por ela - mais parecia retirado de um catálogo de vendas. Sim, fiquei triste por ela. Um elevador em queixume veio abaixo, foi acima, andar 7, piso da garagem, andar 12, restaurante buffet, andar 7 de novo, lobby. Carreguei no botão, levou-me do zero ao 14, agradeci-lhe, disse obrigado, a resposta surgiu num clique metálico de fechar de portas. No quarto ignorei a TV que me deu as boas vindas pelo meu nome próprio escrito em letra Bookman Old Style, deitei-me, falei longamente ao telefone, encostei a cabeça na almofada, senti o vazio, senti também que adormecia.



Adormeci.







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