terça-feira, 9 de novembro de 2010

Descartes e a infância de Cristina

[Seated Girl (Fränzi Fehrmann) - 1910, altered 1920 - Ernst Ludwig Kirchner]


Fui admitido na então escola primária já com sete anos. E apenas três meses depois já tomara contacto com a complexidade da filosofia de Descartes. Pedro era o melhor aluno da sala, lia como um sacerdote, falava como um sofista e sabia a tabuada de trás para a frente. Mas não jogava à bola connosco no recreio, não tinha uma fisga para partir as lâmpadas da rua onde vivia o Sr. Ambrósio - o aborrecido do nosso professor - e de tanta inércia física tornara-se muito pesado. Apesar das suas inúmeras qualidades, para nós o Pedro não existia. Pensava mas não existia. Ao invés tínhamos a Cristina, sempre tão sorridente, sempre tão afável, tão dada às nossas brincadeiras inocentes. Era linda como uma princesa saída do mais soberbo conto de fadas e não havia rapaz que não a desejasse mimar, beijar as suas faces rosadas, que não sonhasse com ela. Quando eu a olhava, me fixava naquele rosto rosado de saúde e de vida, sentia que me faltava o chão debaixo dos pés, que perdia o sentido das coisas e mal me aguentava nas pernas delgadas e compridas. Naqueles momentos, o mundo parava em meu redor e nele só cabia a Cristina. Não era muito boa aluna e tempos mais tarde teve até que repetir o terceiro ano. Não, não pensava muito, mas existia.




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