domingo, 28 de novembro de 2010

Auto-estrada 5


[Imagem da autoria de Lilya Corneli]





Costumo encontrá-la todos os dias, logo pela manhã, entre uma torrada e um daqueles sumos condensados ricos em calorias. Estaciona o Peugeot 307 azul escuro, matrícula de 2006, no parque de estacionamento da área de serviço de Oeiras. E sai lentamente, vagarosamente, de dentro do carro percorrendo a pequena distância até ao snack-bar sem nunca tirar os olhos do piso adornado de inúmeras rachas no betão desgastado pela passagem do tempo e das pessoas e carros. Aparenta pouco mais de 30 anos mas carrega no olhar o peso de uma vida a valer o dobro da idade que se lhe percebe. Ontem percebia-se-lhe também um corpo esbelto por debaixo da gabardina clara com que se protegia do frio e da chuva. Os homens não conseguem deixar de reparar nestas coisas numa mulher, é algo que lhes é superior. Pese tamanha melancolia e desapego do que a rodeia, a minha curiosidade aumenta a cada dia ao reparar que os traços finos do rosto, a boca perfeita e a pele suave indiciam que procura disfarçar uma beleza capaz de fazer deter nela o olhar daqueles que se cruzam no seu caminho. Quase nunca lhe ouvi a voz, tão suave e silencioso é o modo como faz o pedido aos empregados do bar. Que nunca são os mesmos. Ontem ouvi-a, escutei-lhe a voz. Passou por mim e, perante o meu espanto, levantou os olhos do chão até se encontrarem com os meus, detiveram-se por instantes na minha surpresa esbugalhada, sorriu e desejou-me bom dia. Mal tive tempo de me recompor e balbuciar o bom dia que trazia guardado para outra ocasião que não aquela. Desviou lentamente o olhar e caminhou de regresso ao carro, olhos de novo nas rachas de betão, e arrancou. Depois de apanhar do chão o jornal que atabalhoadamente deixara cair, só já tive tempo de ver o azul do Peugeot esbater-se algures no tráfego intenso da A5 àquela hora da manhã.

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