quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Herói sem Estrela



Julgo que tinha acabado de chegar à idade adulta quando tive a feliz oportunidade de assistir em sessão privada a «O Comboio Apitou Três Vezes». Desde então, uma cena do filme – um western com uma carga psicológica profunda e de certo modo em rompimento com os cânones de então do género – ficou-me retida na mente através do profundo respeito que senti pelo Xerife Will Kane.



Kane é o Xerife da cidade de Hadleyville. São 10.30 da manhã e no comboio prestes a chegar à cidade viaja um fora-da-lei anteriormente condenado à prisão através da sua acção de agente da autoridade. Enquanto os figurões do pequeno burgo e restante população se acobardam e abandonam o local, um irmão e dois cúmplices já aguardam na estação pela chegada do bandido sedento de vingança. Só, tremendamente só, Kane desobedece aos apelos até da própria mulher e decide enfrentar o perigo. Ás 12.15 horas já tudo acabou tendo conseguido derrotar os marginais. À vista da cidade que acorre a si para o felicitar, Kane, impassível, silencioso, retira do peito a estrela de Xerife e atira-a ao chão com sintomática indiferença renunciando ao cargo. E é este o momento chave do filme, a cena invejável para a qual é necessária uma coragem digna de um ser humano grandioso, o gesto que persiste em me invadir o subconsciente.



Naquele momento, ao atirar a estrela de Xerife ao chão e renegar o estatuto de herói, Kane demonstra toda a solidão de um homem a viver acima das suas forças em nome de um colectivo cobarde e oportunista que o não merece. O que Kane faz, no fundo, é retomar o seu papel na sociedade assumindo a fragilidade do ser humano incapaz de continuar a cumprir uma tarefa que o desgasta a si e que se revela apreciável apenas ao olhar alheio. Na altura vi o gesto de Will Kane como algo de exultante que me agitou ideais e fez rever preconceitos. Mas hoje, tantos anos passados sobre a primeira visão do filme, penso na personagem protagonizada por um Gary Cooper admirável e sinto-me pequeno perante a grandeza da sua atitude. Para agravar ainda mais a questão, observo como cada vez mais ridícula uma sociedade – a actual – onde este tipo de homens não tem lugar. O destaque de hoje, sabemo-lo bem, vai inteirinho para uma bem definida classe de vencedores.

Sem comentários: