quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Stanley Kubrick





STANLEY KUBRICK



Stanley Kubrick nasceu nos EUA em 1928 e viria a falecer em Inglaterra, para onde se tinha mudado, a 7 de Março do ano de 1999, faltando assim  à estreia da sua última obra-prima: De Olhos Bem Fechados (1999). Kubrick foi sempre um rapaz imaginativo mas péssimo aluno. Tornou-se jogador de xadrez e a sua carreira profissional iniciou-se como fotógrafo. A estreia na realização, de curtas-metragens na altura, deu-se aos 22 anos embora apenas aos 25 com alguma seriedade. Como simples curiosidade, diga-se que Kubrick era ainda considerado uma pessoa de difícil trato e a sua obsessão pelo cinema levava-o a cuidar muito pouco de si como pessoa mesmo ao nível dos pormenores mais básicos. Era de tal forma um perfeccionista que chegava a repetir um ‘take’ mais de uma centena de vezes.



Da sua filmografia como realizador contam-se poucos filmes mas quase todos eles marcos importantes da história do cinema. Títulos que circulam por todo o mundo nas listas de melhores filmes de sempre quer para instituições, quer para particulares. Destaque-se «De Olhos Bem Fechados» (1999), uma incursão psicológica sobre os medos de um casal, «Nascido Para Matar» (1987), a abordagem atípica e mais uma vez de grande intensidade psicológica aos fenómenos da guerra, «The Shining»(1988), perturbante filme de terror com um fenomenal Jack Nicholson, «Barry Lindon» (1975), um perfeccionista filme de época passado no âmago da aristocracia, «Laranja Mecânica» (1971), um filme crítico sobre a sociedade mas passado num futuro próximo a partir da aparente demência comportamental de um grupo de jovens que leva o líder à prisão, tudo passado em ambiência de música clássica sobretudo sob o génio de Beethoven, «2001 – Odisseia no Espaço» (1966) o intemporal filme de ficção científica de Kubrick onde uma máquina que não foi concebida para mentir recebe essa ordem e como escape começa a matar a tripulação, e ainda filmes fabulosos como «Dr. Strangelove» (1964), «Lolita» (1962) e «Spartacus» (1960) . E não é tudo.


Kubrick não veria reconhecido o seu enorme talento pela Academia de Hollywood que nunca lhe concedeu o Óscar de Melhor Realizador pese a qualidade ímpar do seu trabalho

domingo, 18 de novembro de 2012

As Palavras




Um amor para recordar

No ‘trailer’ de «As Palavras» uma frase alerta-nos para algumas histórias que nos acompanharão ao longo da vida, para sempre. Nada de mais verdade, assim como a convicção de que a história da vida de cada um de nós é feita sobre as decisões que tomámos – certas ou erradas, mas também de acasos do destino. Essa frase, numa realização que viaja entre a realidade e a ficção sem sabermos muito bem onde está a verdade absoluta, irá acompanhar-nos até ao fim do filme já que são as nossas próprias vivências que este vem despertar.
Em «As Palavras», aparentemente fala-se de duas vidas recheadas de vicissitudes diversas que por culpa própria ou por circunstâncias várias haverão de roçar a tragédia. Uma dessas vidas que num tempo [o pós segunda guerra] e num espaço [Paris] foi de uma intensidade fervorosa e de uma paixão que haveria de prevalecer e a outra, passada na Nova Iorque de hoje, feita de ambição, de querer e de muita deceção por ver a sua criatividade literária vedada por uma opinião alheia e totalmente desinteressada no seu suposto talento [os editores de livros]. E aqui se confirma que pela dimensão humana das histórias transversais que evoca, o filme tem a capacidade de tocar na emoção de muitos que o assistem seja por força do amor, da literatura ou muito simplesmente daquilo que reúne todos os nossos passos por cá: ela mesmo, a vida.
Rorey Jansen [Bradley Cooper] é um aspirante a escritor. Frustrado pelas sucessivas negativas das editoras, Rorey é incapaz de dizer não à ilusão do sucesso e às lágrimas emocionadas da sua mulher [Zoe Saldana] quando um belíssimo manuscrito lhe vem parar por acaso às mãos resolvendo propô-lo como seu. O sucesso é imediato mas neste entretanto a ficção transforma-se em realidade quando um homem velho e cansado [excelente Jeremy Irons] vem conferir autenticidade à história do seu livro. Uma autenticidade de que Rory nem se apercebera. Aquele homem velho vivera a história que as palavras resgataram do esquecimento e fora ele mesmo quem, numa velhinha máquina de escrever, trucidado pela dor do amor e pela tragédia da perda as erigira em apenas duas semanas sem dormir e quase sem se alimentar. Entretanto, e no filme, perante uma plateia ávida a contar-nos as amarguras do aspirante a escritor e do escritor que nunca o veio a ser está Clay Hammond [um Dennis Quaid controverso e brilhante], ele que vive a publicação do seu próprio livro e lança novas dúvidas sobre o que nos é contado. Neste momento, dá-se uma nova dimensão à velha expressão de que nem sempre o que parece é.
Entre o drama pessoal de Rory, construindo a sua vida sobre uma mentira, e o drama do velho homem vítima de um destino feito de acasos infelizes e más escolhas a realização dupla de Brian Klugman e Lee Sternthal tem o mérito de evidenciar que nada está perdido no mundo da literatura se a intensidade emocional, a genuinidade das palavras e a força da vida triunfarem sobre uma determinada imagem de sucesso com referências que o mercado julga essencial distribuir aos leitores. Mas isto sem que o filme alguma vez consiga atingir a grandeza sentimental e trágica que encerram as suas duas personagens centrais. Por outro lado, a busca da verdade [por Rory] como expiação para o seu erro cai num desnecessário moralismo que aligeira até a agitação psicológica em que o escritor vive e que seria um dos trunfos do filme. E neste aspeto, é até a personagem de Dennis Quaid, ambígua, desregrada, furtiva que transparece e está mesmo ao nível do que de melhor a literatura e o cinema nos podem oferecer.
Posto isto, deve um homem saber quais são os seus limites, como se pergunta no filme? Deve, claro. Mas tal como essa consciência pode servir para que não se cometam erros como o plágio cometido por Rory também não deve jamais ser limitadora do sonho. Basta lembrarmo-nos, para contrariar o filme, que uma das maiores ambições do homem foi sempre a de ultrapassar os seus limites. Ou então, numa outra questão lançada pelo filme, se não o fizermos, se no mínimo não o tentarmos, de que vale a pena viver?
«The Words», no seu título original, é, em suma, um filme de emoções que procura debater algumas equações que a vida nos coloca. É, por isso mesmo, um filme ambicioso. Mas uma ambição que se refreia na forma como interfere demasiado nas questões morais mostrando ainda um Bradley Cooper ainda longe das capacidades dramáticas que o seu papel exigia. Em sentido contrário estão Jeremy Irons, irrepreensível, e, em minha opinião, Dennis Quaid. Sobretudo porque é nas cenas em que Quaid participa que o filme mais se agiganta. Nomeadamente no diálogo com a jovem estudante Daniella [a atraente Olivia Wilde]. Destaque ainda para a belíssima Nora Arnezeder, ela que é Celia, o amor de uma vida, o amor da vida do homem velho corporizado por Irons, talvez ele mesmo o único escritor num filme em que se passeiam vários pela tela.

«The Words», de Brian Klugman e Lee Sternthal, com Bradley Cooper, Dennis Quaid, Jeremy Irons, Zoe Saldana, Olivia Wilde e Nora Arzneder


quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Hoje...






…revi-te na minha sala. Como aqui se mostra, estavas linda. Não, não eras a ex-mulher de um polícia de Memphis afogado no álcool por lhe teres dado a provar o sabor do amor. Eras uma mulher de causas casada com um diplomata de carreira. Morreste algures em África e ele, o fiel jardineiro, morreu por ti. É sempre tão bom rever-te. Chames-te tu Sue Lynne, Tessa Quayle ou simplesmente Rachel.





quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Desafio Total





Guerra dos mundos



Tecnologia, efeitos especiais, a Terra perfurada em viagem com bilhete de ida e volta, mundos paralelos, a beleza suave de Kate Beckinsale, a beleza fulgurante de Jessica Biel, o desencantamento permanente estampado no rosto de Colin Farrell – ele um homem em busca de si mesmo – e ainda Colin Farrell sem o carisma de Arnold Schwarzenegger, compõem o ‘remake’ de «Desafio Total». Mas não fazem esquecer o filme de 1990, longe disso. Ainda assim, a ação viva do filme na luta do bem contra o mal entretém e não defrauda, rejuvenesce e atualiza. A ver sem grandes expetativas e é favor não esquecer o balde das pipocas.

Concluindo, Len Wiseman, realizador deste «Total Recall»[2012], não conseguiu fazer com que Paul Verhoeven, realizador do filme com o antigo governador da Califórnia e Sharon Stone, perdesse o sono à vista de ser ultrapassado já que nunca correu esse risco.




«Total Recall», de Len Wiseman, com Colin Farrell, Jessica Biel e Kate Beckinsale



sábado, 25 de agosto de 2012

O Coração da Tempestade





Arrastadeiras e fluídos corporais


Um bom livro nem sempre dá um bom filme. Julgo ser esta uma constatação óbvia mas não era preciso chegar a tanto, Mister Fred Schepisi. De facto, o realizador australiano adaptou a obra homónima de um compatriota seu mas começou por falhar ao querer fazer de Geoffrey Rush um galã sedutor na fronteira do predador sexual e pretender ainda que Charlotte Rampling passasse de velhinha decrépita a bater desesperadamente à porta da morte a quarentona feliz e irresponsável no seu papel de atleta de alta competição na disciplina não olímpica das maratonas sexuais. Senhores, Charlotte Rampling é muito boa atriz mas a idade não perdoa e os seus atributos físicos já não dão para tanto.

Leio algures que o filme é demasiado perfeitinho. Não poderia discordar mais a não ser que a perfeição cinematográfica possa assentar numa história de ódio, traição e morte onde em momento algum se vislumbra essa pulsão que a avalanche de emoções e sensações tem de necessariamente provocar. Ou então esta gente não tem sangue a correr-lhe no corpo! Por outro lado, a ambientação às diferentes épocas e sobretudo à década de setenta resultou em verdadeiro terrorismo visual que fere e ofende. E no meio de ataques de diarreia, de gente feia que se quer bonita e de corriqueiras tempestades tropicais como epicentro da trama não há espetador que resista.

De facto, nada disto do que aqui escrevi seria necessário para descrever com rigor aquilo a que assisti. Há filmes que imediatamente nos fazem sentir repulsa e este é claramente um deles. Gosto de histórias de vida que a ultrapassam na sua própria dimensão dramática, sou imediatamente convencido por paixões assolapadas indiferentes aos condicionalismos formais impostos por uma certa civilidade e percebo que o passar do tempo ainda ensombra mais o que de mal nunca foi bem resolvido, mas, por favor, «O Coração da Tempestade» é mau gosto puro, é absoluta incapacidade para perceber como erigir em imagens aquilo que tão bem as letras descreveram. De fugir.



«O Coração da Tempestade», de Fred Schepisi, com Geoffrey Rush, Charlotte Rampling e Judy Davis


360: A Vida é Um Círculo Perfeito





A vida não é um círculo perfeito



Há filmes que nasceram para levar porrada da crítica especializada. É o caso de «360», o mais recente filme do brasileiro Fernando Meirelles. A pergunta que se coloca é se podemos estar de acordo que um filme onde se notam claramente algumas deficiências narrativas causadas sobretudo por um argumento pobre e que não cumpre no atrevimento a que se propunha pode ainda assim agradar-nos particularmente. E a resposta é claramente afirmativa. E se me perguntarem porquê eu poderia deixar aqui ene motivos a começar pela presença discreta mas sempre sedutora de Rachel Weisz. A linda, elegante e competente Rachel Weisz.
Mas sim, Meirelles faz o seu filme através do mosaico de histórias que foi celebrizado por esse brilhante e inesquecível «Magnólia» [1999]. E falha. Mas mais falha quem escolheu o título português para o filme. Que raios, a vida não é um círculo perfeito por mais voltas que demos e no final venhamos invariavelmente ter ao ponto de partida. Pelo contrário, a vida é feita de cabeçadas e trambolhões, acasos felizes e infelizes, amores e desamores. E de escolhas. Aquelas que fazemos por nós e as que outros fazem e nos atingem como uma bala certeira. E ou morremos da ferida ou a saramos e recuperamos. É disto que fala «360». Penso eu. E já agora permitam-me a confissão de gostar muito que os filmes me obriguem a pensar os labirintos em que o quotidiano de cada um de nós se embrenha na tentativa de [sobre]viver. De viver e ser feliz. E não, insisto: a vida não é um círculo perfeito, meus caros.

Meirelles, o brasileiro que filmou a beleza dramática de Rachel Weisz em «O Fiel Jardineiro» [muito obrigado por isso, sô Meirelles] parte neste seu filme de vários microcosmos das relações humanas para concluir que aqui e ali há sempre um ponto onde as vidas distantes se aproximam, cruzam e condicionam. Para protagonizar a sua história escolheu atores e atrizes conhecidos – a já referida Rachel, Jude Law e Anthony Hopkins que no mínimo nunca conduzem as suas personagens em piloto automático – mas também perfeitos desconhecidos como a interessante Danica Jurcová [a prostituta de olhar doce na procura ‘fácil’ do seu paraíso na terra]. Andou algures por Viena, Bratislava, Paris, Londres e Colorado, citando apenas estes locais para não fazer deste texto um livro geográfico, e falou-nos de adultério, chantagem, do drama de pessoas desaparecidas, de abuso sexual, de prostituição, de vida e de morte, de paixão, de amor, de ódios. E de escolhas. E com isso construiu um filme bastante equilibrado.

Voltando à frase com que iniciei este texto, «360» tem ainda o mérito de substituir o ginásio para muitos que queiram libertar tensões. Mas reparem, que ninguém fique incomodado com esta acusação [de facto, é de uma acusação que se trata, as minhas desculpas] já que não vejo mal nenhum nisso. Até porque, e aqui o declaro, por vezes também o faço e queima mais calorias que duas aulas seguidas de cycling. Mas não, em «360» não o vou fazer, recuso-me. Porque a vida não é um círculo perfeito e o filme me deu a oportunidade de o relembrar. E porque me agrada [quase todo] o cinema que se propõe retratar a complexidade humana. E esta minha tendência pode até ser um defeito mas convenci-me que é do meu feitio.



«360: A Vida é Um Círculo Perfeito», de Fernando Meirelles, com Rachel Weisz, Jude Law, Anthony Hopkins, Danica Jurcová, outros


Prometheus




Promessa por cumprir

«Prometheus», no regresso de Ridley Scott ao universo Alien, é um filme desinteressante com uma história difusa onde a conceção visual substitui a atmosfera densa que fez dos anteriores filmes uma das sagas de maior sucesso do cinema de ficção científica. Resta-nos a performance sem mácula de Michael Fassbender, um dos atores do momento a acentuar ainda mais a futilidade do restante elenco. Tiro na água e nada a acrescentar quanto à tão procurada origem da espécie humana. Aguardemos pelo próximo capítulo se não com respostas concretas que ajudem a desvendar o mistério pelo menos com melhor cinema que a produção de 2012.

«Prometheus», de Ridley Scott, com Michael Fassbender, Charlize Theron, outros



sexta-feira, 27 de julho de 2012

Vergonha





O homem preso no seu mundo

«Vergonha», de Steve McQueen, é, depois de em 2008 ter prometido muito com «Fome» [«Hunger» no seu título original], um filme cuja descida aos abismos da complexidade humana se vê subalternizada por uma perfeição plástica retirada da contenção visual com que a câmara do realizador filma um homem preso ao seu próprio corpo e às incapacidades afectivas que lhe estão subjacentes. Mas é pena esta inversão de valores no próprio filme dado que o espectador corre o risco de passar ao lado do que nele realmente importa.
Ainda assim, Michael Fassbender é perfeito no papel de Brandon, este que aparentemente leva uma vida de invejar. Profissional admirado pelos seus pares, sempre impecavelmente vestido e elegante até nos gestos, aos trinta e poucos anos Brandon é um vencedor na cosmopolita Nova Iorque. Mas como quase sempre acontece, existem muitas diferenças entre o que é público e o que é privado e Brandon está amargamente dependente das sensações por não ser capaz das emoções. No seu computador abundam as visitas a ‘sites’ pornográficos, nos armários do apartamento onde vive sozinho amontoam-se as revistas da mesma temática e o homem que facilmente poderia ter o amor das mulheres paga para ter sexo. E a razão para isto reside precisamente no facto de Brandon ser incapaz de corresponder ao amor de uma mulher, física e emocionalmente.
Steve McQueen expõe então a nudez de Fassbender para mostrar um Brandon sem capacidade para terminar com o seu tormento a não ser atingindo orgasmos a solo ou cavalgando prostitutas sem sequer sentir as mulheres a quem paga para possuir. E no entanto o mundo de Brandon decorre de forma pacífica e mantém-se controlado até que surge Sissy [Carey Mulligan], a sua irmã emocionalmente frágil e dependente. Ou seja, precisamente o oposto de si. É então que o mundo de Brandon se desnuda como um corpo a precisar de agasalhos e a vergonha do homem perante as suas insuficiências afectivas o faz perder aquilo que era a sua maior protecção: a privacidade da sua existência.
Em resumo, «Vergonha» é um filme de rara preciosidade estética. No entanto, a mais recente obra de Steve McQueen está tão próxima da tristeza das personagens de «Magnolia» [1999], de Paul Thomas Anderson, quanto do drama do protagonista de «American Psycho»[2000], de Mary Harron. E a dor de Brandon torna-se tanto mais palpável quanto maior é o seu desequilíbrio entre o que deseja e aquilo que o faria feliz. Aqui se prova que mesmo rodeado de um sucesso aparente o homem pode permanecer só. E terminar refém da sua própria angústia.

«Shame», de Steve McQueen, com Michael Fassbender e Carey Mulligan



sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Delfim

 [Rogério Samora e Alexandra Lencastre protagonizaram «O Delfim» [2001], de Fernando Lopes]



Amor de perdição 

     
      [Durante 48 longos anos Portugal fechou-se ao mundo, definhou. Num canto esquecido da Europa arrastava-se um país afundado na sua orgulhosa pequenez advinda da conceção totalitária de um governo que atropelava direitos e esquecia deveres para com o seu povo. Duas únicas portas para o exterior funcionavam ininterruptamente: aquela que nos levava até África onde decorria uma guerra fratricida que nem sequer soubemos como terminar e uma outra cuja soleira era normalmente transposta galgando campos com a dor estampada no rosto, alma sofrida pelo avizinhar da saudade e uma sacola cheia de nada carregada sobre os ombros atravessando rios e fugindo às autoridades em busca de uma nova esperança numa terra estranha e que era a porta da emigração. Mas por cá ficavam outros, ficava um povo que exibia no olhar uma estranha dignidade. Um povo acostumado à submissão, a vergar-se ao poder dos grandes senhores. Os senhores donos das terras, os senhores que tudo podiam.]


     
Senhores como Tomás Palma Bravo, o dono da Lagoa, da própria Gafeira. Ele, Palma Bravo, homem sem limites seduzido pelo perigo e igualmente senhor da noite lisboeta, não a de agora mas aquela que se fazia com uma garrafa de Whisky ao largo e em que duvidosas eram outras senhoras porque as da noite nos bares eram decididamente putas. Ele que é também o senhor de «O Delfim», romance escrito pelo saudoso José Cardoso Pires. E é ao mesmo tempo a centro de sedução de uma história que reflete muita da alma ainda recente da nação portuguesa e a causa maior da trágica derrocada humana que esta encarna.
Fernando Lopes, com a prestimosa colaboração de Vasco Pulido Valente que adaptou o romance para o cinema, conseguiu um feito de monta neste seu trabalho. Não só fabricou um excelente filme como deu uma nova dimensão a uma das mais relevantes obras da nossa literatura. O filme é espantoso na recriação atmosférica de um passado fresco na nossa história. É mágica e rigorosa a perfeição de identidade do filme enquanto retrato sociológico da época. Uma época em que Salazar expirava, uma época de fantasmas onde havia até uma brigada oficial de exorcistas, a PIDE. E os fantasmas pairavam sobre a lagoa da Gafeira em poética metáfora. Vagueavam sobre as águas paradas envoltas no nevoeiro e nas sombras do arvoredo circundante, captadas em cortante tristeza pela câmara de Lopes. «O Delfim»[2001] não é um filme de atmosferas sonoras ou visuais, é um filme de latente atmosfera humana que estando individualizada se percebe enraizada no pulsar próprio de uma nação. É, como alguém disse um dia mas em referência ao romance de Cardoso Pires, a história de um crime cuja arma assassina é o amor.
 
Fantástico o trabalho de composição das personagens. O observador passivo, a mulher alvo do desejo dos homens da terra mas que não pronuncia palavra, o criado maneta de tão errónea apreciação por parte do seu patrão, do seu dono, e o cauteleiro que simboliza a voz revoltada de um povo amarrado na sua própria impotência.
     
 Mas é em Palma Bravo e em Maria das Mercês que reside o âmago de tudo aquilo que despoleta a euforia do espectador rendido ao filme. Ele é um homem que julga ter nascido para os prazeres da vida, mas, crença maior, acredita sobretudo que é a vida que lhe deve fornecer todos esses prazeres sem qualquer partilha. De fina educação e natureza delicada, dá-se ao luxo de praticar a rudeza. Ela é uma mulher como o eram na altura as mulheres de família. Criadas para serem esposas e mães. Uma mulher atordoada pelo drama do abandono. Uma mulher de extrema sensualidade, uma mulher reprimida. E estas são duas figuras que fazem parte da nossa história. Uma que se passeava garbosa, a outra recolhida entre quatro paredes.
     
Acredito que Fernando Lopes não poderia ter escolhido melhores atores para protagonizarem as referidas personagens. Enquanto Alexandra Lencastre é a personificação física da criação literária que é Maria das Mercês, Rogério Samora deve ter conseguido com a interpretação do marialva Tomás Palma Bravo o papel da sua vida.
Por tudo isto, «O Delfim» de Fernando Lopes é um objeto fílmico revelador da ironia que a vida encerra em si mesma e que posteriormente se despoleta em forma de tragédia humana. Uma excelente transcrição de uma época específica da nossa portugalidade. É ainda um filme absolutamente meticuloso na forma como captou as subtilezas e conjugou os acessórios fundamentais e capazes de nos transportar até essa mesma época. Em suma, «O Delfim» é um claro exemplo de uma vertente a explorar pelo cinema português. E se isso for conseguido com acutilância creio que é possível a tão desejável harmonia desse tal cinema português com o espectador. Porque este cinema trabalha as memórias mais recônditas de nós, portugueses, como povo. E ainda que sejam memórias feitas de muita imperfeição, um povo de identidade muito própria. Quanto a Tomás Palma Bravo, “Silêncio que está em causa a honra de um homem; e a honra de um homem é para ser respeitada!”

O Delfim [2001], de Fernando Lopes, com Rogério Samora e Alexandra Lencastre


A morte de um homem do cinema






Fernando Lopes, 1935 - 2012

Morreu Fernando Lopes. Ficam os seus filmes e as nossas três ou quatro conversas sobre cinema, sobre Portugal, sobre tudo e sobre nada no restaurante de Alcochete.



segunda-feira, 23 de abril de 2012

assim assim





Do tudo e do nada

Onde começa e onde acaba «assim assim»? No ser-humano e nas relações, dir-se-ia. Mas não. De facto, num filme que começou por ser uma curta-metragem parece-me que para sua própria elevação por lá devia ter ficado. Sem um fio condutor que ligue o mosaico de histórias [?] que por lá se cruzam, sem sabermos de onde vêm e para onde se dirigem as personagens e o que as motiva, com conversas longas e maçadoras que destilam uma ideia estereotipada e simplista das ligações amorosas e das pessoas, «assim assim» é ainda um filme confuso que quer chegar a todo o lado mas acaba por não chegar a lado algum. Ficam a boa prestação de alguns membros do elenco [a curta aparição de Rita Blanco, por exemplo, mesmo que também eles andem meio perdidos entre bilhetes postais na noite lisboeta] e a falhada boa intenção do realizador Sérgio Graciano de fazer um filme de pessoas para as pessoas, ou seja, para o público em geral. Mas soube a pouco, muito pouco, quase nada.

«assim assim», de Sérgio Graciano



sexta-feira, 20 de abril de 2012

O contador de histórias


[Turkey Pond, 1944 - Andrew Wyeth]




Não conheci até hoje melhor contador de histórias que o meu avô. Sentava-se no cadeirão de vime do varandim da velha casa disfarçada algures no interior das árvores da quinta e sentava-nos a cada um de nós, a mim e ao meu irmão, em pequenas cadeiras ao seu redor. Depois dava uma baforada no seu cachimbo e perguntava se nos lembrávamos do palácio em frente ao Tejo bem junto aos paredões da ponte ferroviária. Claro que nós não recordávamos o dito palácio pela simples razão de nunca ter havido algum por lá. E perante o nosso protesto, ele dizia-nos: ‘pois imaginem que existiam dois palácios, um em cada margem.’ E, muito calmamente, lá nos ia ajudando a edificar os pilares de como se conta uma boa história.




quinta-feira, 19 de abril de 2012

Paixão 1


[Man with a Newspaper (Chevalier X), 1911 - 1914 : André Derain]






Esta manhã um jornal desportivo espanhol titula que ‘o futebol atraiçoou o Barcelona’. Eu não vi o Chelsea – Barcelona mas constou-me que a superioridade dos catalães foi arrasadora. No entanto, estou em total desacordo com o jornalista responsável pela frase que transcrevo. Porque se houve coisa que ontem aconteceu em Londres foi futebol. Até porque o futebol é uma das maiores paixões do homem. E por muito apaixonado que o homem esteja, por melhor que seja o momento dessa paixão, se a espaços existir no jogo um travo de amargura nada saberá melhor que o regresso às vitórias.  


Paixão 2


[Summer Interior, 1909 - Edward Hopper]


Ainda assim, o adepto de futebol dificilmente se conforma com a derrota do seu clube sobretudo se este tiver merecido a vitória. Provavelmente terá a mesma sensação que aquele homem que acabou de perder a mulher amada. Que lhe importa a ele se nos apressarmos a tentar animá-lo dizendo-lhe que o amor tem destas coisas, que há mais mulheres no mundo, blá, blá?... Nada, rigorosamente nada, aquela derrota já ninguém lha tira.



domingo, 15 de abril de 2012

Três






Filosofia alternativa do amor

 

«Três» poderia ser um drama intimista tão interessante quanto estimulante narrando de forma pouco convencional as venturas e desventuras de um triângulo amoroso não tão clássico assim. Desde logo porque se trata da história de um casal que no ano de festejar vinte anos sobre a sua união se apaixona, ele e ela, pelo mesmo homem. E dito isto está também contada a sinopse de um filme realizado por Tom Tykwer, o mesmo de «Corre, Lola,   Corre» [1998] e de «O Perfume- História de Um Assassino» [2006] entre outros. E poderia mesmo.  Até porque há no filme aquele realismo mágico das personagens que tantas vezes é característica exclusiva de algum cinema europeu. Poderia, disse bem, porque, na minha opinião, não é.
E não o é porque a realização de Tykwer, ele que é igualmente responsável pelo argumento, quis explicar em 119 minutos todas as questões ligadas à doença, à velhice e ao amor. E isto para não ser demasiado exaustivo. Assim, passa pelo filme uma panóplia infindável de referências filosóficas, incursões à poesia existencialista, às ciências biomédicas, à medicina e grande diversidade de manifestações culturais. Se juntarmos a isto a informação de que os protagonistas do triângulo amoroso são uma jornalista de televisão especializada em matéria científica [Hanna, a mulher], um cientista genético perito em inseminação artificial [Adam, o amante do casal] e um engenheiro de arte [Simon, o companheiro de Hanna], seja lá o que isso da engenharia de arte for, está tudo dito quanto às pretensões de eruditismo do filme. Mas o que resulta daqui é unicamente uma exposição de ornamentos inúteis numa história de vidas que se bastaria a ela mesma para redundar num grande momento de cinema.
Ainda assim, o filme tem algumas vertentes bem positivas sobretudo no tratamento que faz das personagens. Nomeadamente na subtileza com que faz o enquadramento de cada uma nas questões ligadas à sua sexualidade. A par disso, a realização de Tykwer faz com que essas mesmas personagens se passeiem pelos restaurantes, bares e ruas de Berlim atribuindo um estatuto cinematográfico à capital alemã como tantas vezes vimos fazer com Nova Iorque [através de Woody Allen, por exemplo] ou Paris, por diversos cineastas. E nesta 2ª adolescência que Tykwer permite aos quarentões Hanna, Simon e Adam é de salientar a insistência nos ângulos anatómicos de cada um, nomeadamente na coragem de Sophie Rois [ela que interpreta Hanna]. A amenizar os ouvidos um pouco arranhados pela difícil língua alemã há a meio do filme o soar de «Space Odity», de David Bowie, e, no final, um desenlace pouco surpreendente e algo insípido já que parece ter sido feito a pedido de várias famílias. A ver sem grandes expectativas.


«Drei», de Tom Tykwer, com Sophie Rois [Hanna], Sebastian Schipper [Simon] e Devid Striesow [Adam]



sábado, 7 de abril de 2012

Florbela





Existência inquieta


Não estará completamente distante da realidade quem acredite que a melhor poesia, aquela que nos impulsiona e rasga a alma, vem também ela de uma outra alma inquieta, de alguém em constante desassossego, de uma mulher ou de um homem em permanente conflito com a sua existência e aquilo que a rodeia. «Florbela», de Vicente Alves do Ó, esqueceu-se deliberadamente da literatura, da poesia, para se centrar nessa mulher assombrada e desencantada que ainda assim buscou avidamente a vida até que não obteve a morte. Não se poderá dizer que a ideia tenha resultado totalmente porque se não fosse a sua poesia emancipada e tão próxima do abismo como o foi a mulher, Florbela Espanca teria morrido na obscuridade de uma época onde os convencionalismos de uma sociedade castradora e controladora não permitiam veleidades de maior às mulheres, quanto mais a uma poetisa muito à frente do seu tempo.

Mas Florbela, tentando driblar a sua desdita, ainda procurou a inserção. Já casada com um médico de Matosinhos [protagonizado por Albano Jerónimo] terá então dito que o mundo já tinha dela aquilo que pretendia: era então uma mulher casada, honrada e, acima de tudo, discreta. Pobre mundo que a tanto obrigas, pobre Florbela Espanca que tinha de se negar a si própria para ser aceite pelos outros. Mas, inevitavelmente, esse seria o princípio do fim para a mulher que já denotava através da pulsão da sua poesia uma irresistível atracção pela morte. Porque como cantou outra desditosa mulher precocemente falecida cerca de um século depois da sua própria morte, para Florbela o amor foi sempre um jogo perdido. Como a vida perdida do irmão Apeles [corporizado por Ivo Canelas] afogando-se, ele e o avião com que procurava tirar os pés da terra e abraçar o sonho, nas águas frias do Tejo. O Tejo que não terá lavado as mágoas da poetisa que foi acometida de uma tristeza que não mais soube ultrapassar. Era então uma Florbela dividida entre o amor sereno e de pés bem no chão do marido de Matosinhos e a loucura apaixonada e apaixonante do irmão. Este que não pertencia a lugar algum em particular mas a todos os lugares onde pudesse assentar a fúria de viver com que procurava driblar o fogo da paixão que lhe consumia as entranhas.

Com nota positiva para o guarda-roupa, os cuidados na reconstituição da época e para o restante elenco, é no entanto imperioso realçar que Dalila Carmo está soberba no papel de Florbela. Aliás, é tanto e tão aflitivo o desespero no seu rosto e, noutra vertente da sua personalidade instável, a ânsia pelo infinito que o seu olhar denuncia que se por um qualquer sortilégio encontrasse a actriz algures numa rua de Vila Viçosa ou de Lisboa teria direito eu mesmo à minha própria assombração da poetisa. E aí talvez não resistisse a dizer-lhe como nós, os homens, fazemos a vida difícil aos vivos mas tratamos tão bem dos mortos. Se não, vejamos: a sua obra foi quase totalmente editada a título póstumo, depois da sua morte a poetisa virou quase mito e os seus poemas são cantados por vozes importantes e até já se converteram em sucesso de vendas [«Ser Poeta», pelos Trovante]. Para culminar, surge agora «Florbela», o filme. Quanto a Vicente Alves do Ó, o dedicado realizador de Florbela, terá cumprido o seu maior e mais importante objectivo. Melhor do seu trabalho não haverá para dizer já que a realização de Vicente do Ó demonstrou que ‘ser poeta é ter cá dentro um astro que flameja (…) é amar-te assim perdidamente, é seres alma e sangue e vida em mim’. E porque foi precisamente assim que viveu e morreu Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, a poetisa Florbela Espanca, vale a pena ver «Florbela».



«Florbela» de Vicente Alves do Ó, com Dalila Carmo, Albano Jerónimo e Ivo Canelas


domingo, 29 de janeiro de 2012

Os Descendentes

 





A Viagem de Clooney

Alexander Payne filma a faceta mais genuína da América através das personagens dos seus filmes em busca do auto-conhecimento que as levará a um ponto sem retorno. Foi assim em «About Schmidt» [2002] e em «Sideways» [2004] e é assim em «Os Descendentes» [2011] com o advogado Matt King [um George Clooney humilde e fantástico] na recuperação do que lhe resta da família e na raiva que o amor também proporciona sem o negar. Com este filme, Payne demonstra ainda que a vida não é uma comédia mas o riso é um escape do ser humano para os dramas que esta lhe proporciona. E na raiva que sente, emocionado Clooney despede-se da mulher com um «meu amor, minha vida, minha dor» que descreve na perfeição o quanto sofre e ama. Filme a não perder, história de vida a reter.

«The Descendants», de Alexander Payne, com George Clooney



 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Moratória


[Auto-retrato, Lucian Freud]



 

Um conhecido vosso com o qual eu próprio vou mantendo uma amizade umas vezes próxima outras nem tanto, faz hoje anos. Resignado com a dívida que tem com o tempo voraz e implacável, vai pedindo moratórias.



quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

A pergunta


M., dez anos de idade, um sorriso feliz desenhado num rosto de menina. Olhara-me atentamente, fixara o seu olhar em mim, investigou para lá do que via e fez a pergunta incómoda: ‘já alguma vez mentiste?’ Lembro-me de ficar sem pinga de sangue, de hesitar. Mas não, se já alguma vez mentira não era aquela a altura para repetir o meu constrangedor delito. Respondi-lhe com o meu melhor sorriso em tão difíceis circunstâncias. ‘Já, já menti.’ Ela não acreditou em mim e riu-se com vontade tendo voltado para o seu mundo povoado de inocência. Percebi então que lhe dissera a verdade parecendo que mentia. Ainda hoje me sinto mal por isso.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

É tudo política, pá!




Foda-se, diriam vocês, e eu reservo-me ao direito de concordar convosco. Cinema é vida, é emoção, é sentimento. E escrever sobre cinema é colocar no Word, numa folha de papel ou em meras palavras faladas toda a nossa individualidade, a infância terrível que tivemos, a adolescência insana ou outra merda qualquer que fez de nós aquilo que somos e como pensamos e sentimos. Agora, escrever sobre cinema contando erros, descontando um pontinho aqui e outro ali porque de facto o livro não diz nada do que o realizador projectou, porque o copo era azul e passou a branco, fazendo crítica aplicando uma mal amanhada fórmula ou método científico, ou objectividade matemática ou outra porra qualquer, isso não. Se não tiverem mais nada para fazer façam como eu e vão ver o Tom Cruise a combater numa Guerra Fria requentada algures no Dubai, em «Missão Impossível: Operação Fantasma». E se tiverem sorte, como eu tive, recuperarão forças num sono retemperador enquanto Tom Cruise aos cinquenta anos escala arranha-céus como se tivesse acabado de fazer vinte num planeta qualquer onde os humanos têm poderes especiais.






[Cartaz do filme «Missão Impossível: Operação Fantasma»]





Votos para 2012



Em 2011 pouco ou nada do que eu esperava viesse a acontecer aconteceu de facto. E esses são os meus votos para 2012: que pouco ou nada do que eu perspectivo aconteça realmente.