domingo, 31 de outubro de 2010

Dúvida





Calúnia





Numa das suas fantásticas homilias, o padre Flynn (Philip Seymour Hoffman) conta a história de uma mulher que tendo lançado um boato desprezível sobre alguém acaba por se arrepender e busca o perdão junto do padre seu confessor. O padre não lhe concede de imediato o perdão e instiga-a a subir ao telhado da casa onde habita com uma almofada de penas numa mão e uma faca na outra com o objectivo de rasgar o travesseiro ao vento. Quando a mulher regressa ao confessionário e lhe dá conta da missão cumprida, o padre não a perdoa desde logo optando por perguntar o que lhe restou do gesto. Uma imensidão de penas, responde-lhe a pecadora. E perante a nova missão de que o padre a encarrega, a de voltar ao local e apanhar todas as penas, a pesarosa mulher responde-lhe que isso é impossível já que estas se espalharam de tal modo que não é de todo possível reverter o mal feito. E é precisamente em volta destas questões, sobre as dúvidas de cada um – as que nos afectam no dia-a-dia e as lançadas sobre outrem – que nos fala «Dúvida», a adaptação de uma peça teatral escrita e encenada pelo próprio realizador, John Patrick Shanley.



Nunca esquecendo as suas origens teatrais, «Doubt», no seu título original, acaba por se tornar num filme de grande qualidade e inteligência alicerçado nas espantosas interpretações de Philip Seymour Hofmann e Meryl Streep, estes dois gigantes do cinema norte-americano, mas também de Amy Adams e Viola Davis todos eles nomeados para a cerimónia de entrega dos Oscar. Passada num colégio católico do Bronx nos anos 60 num período logo a seguir ao assassinato do Presidente Kennedy, a história coloca frente a frente a freira Aloysius (Streep), uma muito conservadora reitora que gere a instituição com mão de ferro, e o padre Flynn (o já citado Hoffman), um sacerdote progressista e emocional que defende alterações não apenas na gestão do colégio como nos métodos da própria igreja. Num período da história norte-americana de grandes mudanças eclesiásticas e reivindicações de direitos na sociedade civil, o filme aborda ao de leve questões como o racismo e a pedofilia, esta última hoje tão em voga, mas detém-se sobretudo na intolerância, na incapacidade de perdoar e naqueles que acreditam que os fins justificam os meios. Isto para, no final, tal como na homilia que se descreve acima, se chegar à conclusão que a dúvida atinge até os mais implacáveis. Mesmo que o mal feito não tenha já reparação possível.



Diria que sendo um filme que nunca perde o interesse para o espectador, «Dúvida» assenta numa realização recatada onde a câmara é usada sobretudo para filmar as prestações irrepreensíveis dos actores. Tal facto faz desta uma obra muito verbalizada o que neste caso soa a elogio. Ainda assim, algumas tomadas exteriores de cena que captam a força dos ventos e mostram as ruas desertas de um dos mais problemáticos bairros da cidade de Nova Iorque levam a que o intelecto e a comoção se cruzem nos altos e baixos de seres humanos presos à sua própria essência. «Dúvida» lança ainda um silencioso repto para que não se confunda emoções com factos evitando apontar os maus e os bons exibindo apenas almas à deriva vítimas tanto das suas convicções como das incertezas. Esta característica alicerçada em actores de primeira água que souberam aproveitar um texto extraordinário para dar o seu máximo, fazem deste um filme estimulante e a não perder.





Dúvida, de John Patrick Shanley, com Philip Seymour Hoffman, Meryl Streep, Amy Adams 

Sem comentários: