domingo, 31 de outubro de 2010

Fala com Ela





Emoção nas excentricidades do amor


A sala escurece e ao fundo o ecrã ilumina-se. O filme inicia-se com a imagem de uma sala de espectáculos onde se exibe Café Müller, com coreografia de Pina Baush. Disperso algures pela plateia um homem chora olhando os bailarinos em comovente interpretação. Não muito longe de si, um outro homem, este ligeiramente mais jovem, sustem o impulso de lhe falar, de lhe dizer o quanto o espectáculo também mexe consigo. Por esta altura, já os espectadores, não os de Café Müller mas sim os de «Fala com Ela», o filme de Pedro Almodóvar, se terão dado conta que estas são uma narrativa e uma realização em registo algo diferente do habitual no cineasta espanhol. Mas quando o filme terminar, novamente ao ritmo de Pina Baush e da sua muito cabo-verdiana Masurca Fogo, ficará a convicção emocionada de que Pedro Almodóvar amadureceu, cresceu como realizador.

Em todo o filme o que se revela de mais tocante é a afectividade que emana das diversas personagens, elas que agitam em nós a exteriorização das suas emoções. Para lá deste importante pormenor, existem igualmente duas diferenças fundamentais relativamente à anterior filmografia do realizador: as mulheres, habituais figuras de charneira nas suas histórias, passam a um papel de tácito protagonismo dando lugar de relevo aos homens; outra das diferenças, é a não introdução da vertente surrealista tão do agrado de Almodóvar. Isto, ainda que em «Fala com Ela» se possa continuar a falar de estranheza

O enredo aproveita muito da personagem de Benigno, um jovem cuja vivência se resume a cuidar das duas mulheres da sua vida: a mãe, entretanto falecida, e Alicia a bela jovem que um dia descobrira desde a janela da sua casa. Alicia dançava numa academia do lado oposto ao seu na rua onde vivia, e ele, Benigno, rendera-se à forma como esta irrompia na sala pisando suavemente o soalho. As dramáticas circunstancias da vida fariam com que Alicia um dia entrasse num coma dado como irreversível e Benigno fosse o seu enfermeiro. Ela era a bela adormecida e ele o príncipe encantado. Um príncipe pleno de amor por ela desejando acordá-la do seu sonho profundo. Entretanto, Benigno conheceria Marco na clínica, um argentino errante pelo mundo, escritor e jornalista, que fazia companhia à sua namorada, também ela em coma depois de investida pela bravura de um toiro numa tarde quente, seca e inglória em que seria apresentada de forma cruel aos riscos da sua profissão de toureira. Também Lydia fora bailarina por momentos. Mas Lydia dançara ao ritmo áspero dos cornos de um toiro e quedara prostrada no solo empoeirado da praça então tingido do vermelho do seu sangue. Nas bancadas, o público aficionado berrava o seu desespero e abafava os aplausos nervosos.

«Fala com Ela» acaba por transportar Pedro Almodóvar para um outro estágio de credibilidade artística dentro do panorama cinematográfico mundial. Apesar do Oscar que lhe fora atribuído por «Tudo Sobre a Minha Mãe» (1999), o realizador não se livrava de um certo estatuto de autor demasiado preso a excentricidades e devaneios surrealistas nas suas anteriores obras. Neste filme, o realizador não só pensa o seu cinema como o seu filme pensa questões pertinentes da nossa sociedade. De certo modo, pode dizer-se que existe no filme uma evidente modéstia de Almodóvar já que este é um cinema sincero em que o realizador deseja uma efectiva partilha com o espectador e não apenas chocá-lo. Mesmo o humor de que se socorre neste filme, fundamental para ponderar a comunicabilidade/incomunicabilidade nas relações sentimentais dos nossos dias, é um humor simpático, quase carinhoso, nada agressivo. Pedro Almodóvar esculpiu-se como realizador de cinema, pode dizer-se. Atingiu em «Fala com Ela» a liberdade criativa daqueles que já não necessitam chocar com o camuflado e simples objectivo de captar atenções sobre si mesmos.

Nesta obra, que aborda a par da solidão questões como a paixão, o ciúme e o desejo para acabar por se centrar na amizade entre dois homens, há ainda a realçar a irrepreensível prestação dos actores. Sem grandes artifícios visuais, nada como o desencanto de um olhar, a ternura de um gesto, a amargura de uma lágrima, a nostalgia de uma postura. E nisso todos os actores foram exímios o que só prova a famosa exigência com que Almodóvar obriga os seus actores a trabalharem os papéis que lhes cabem. Mas Almodóvar acaba por surpreender até em questões como gosto e identidade. Momento altíssimo do filme é a interpretação de uma versão de Cucurrucucú Paloma pelo brasileiro Caetano Veloso. Enquanto Caetano Veloso (en)canta e Marco se encosta a um cercado virado para olivais a perder de vista, nós vamo-nos emocionando com uma ambiência que nos é tão próxima. Se adicionarmos a isto a referência às touradas, ainda que muitos não as aprovem, elas que são parte fulcral da identidade cultural espanhola, «Fala com Ela» ganha o estatuto do mais exportável dos filmes espanhóis. E, para mim, o melhor Almodóvar de sempre num filme generoso e comovente.


«Fala com Ela», de Pedro Almodóvar


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