sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Não estamos sós


[Nicole Kidman em «Os Outros», de Alejandro Amènabar; 'eles' existem e andam algures por aí...]







O meu Avô Anastácio, com o seu cabelo curto e impecavelmente penteado a fazer lembrar um oficial da marinha inglesa, sentava-me no seu colo era eu garoto e dizia-me qualquer coisa ininteligível para mim à altura como:

– As referências, menino, as referências, nunca as percas!

E depois dava mais uma baforada nos cigarros sem filtro que adorava fumar e ele mesmo fazia, virava o olhar para o horizonte sem que se lhe percebesse qualquer referência física onde me pudesse orientar, e ficava assim durante largos minutos sem sequer se lembrar da minha leve existência sobre as suas pernas ossudas.

Um dia, era eu ainda um miúdo, no regresso de uma pescaria à cana no Rio Tejo, noite escura já alongada sobre os campos em redor, eu e o João optámos pelo caminho mais curto de regresso a nossas casas e que se fazia ao longo da linha da Beira-baixa. Esta era, à partida, uma decisão cómoda caso não existisse por ali, a uns bons 500 metros para sul no nosso caminho de volta,  um dos cemitérios da região. Amedrontados mas de peito cheio que dos fracos não reza a história, lá caminhámos contando toros de madeira via-férrea fora. Ia eu para aí nas 87 sulipas em que naqueles tempos assentavam os carris, quando avistei o vulto. Era enorme, tão negro que mal se distinguia na noite escura, e, coisa difícil para um humano vulgar, de pernas muito abertas suportava o corpo nos pés assentes em ambos os carris da linha. O cenário piorava porque ali mesmo ao lado viam-se bem brancas no negrume da noite as paredes que delimitavam o local onde se multiplicavam os sepulcros. O tal cemitério. Lembro-me que o João olhava para mim aterrado, eu olhava para ele não menos atemorizado e… nada. Não sabíamos que atitude tomar. Ficar ali, tentar o recuo perante o assustador inimigo!? Finalmente, e sem movermos um músculo do rosto para pronunciarmos o que quer que fosse, corremos na direcção de uma casa abastada que sabíamos existir algures. Neste entretanto, a coisa foi-se tal como chegou. Sem avisar, sem se perceber de onde veio e muito menos para onde voltou.

Volto eu agora às referências do meu avô Anastácio, ele que foi uma referência para mim. Morreu anos atrás e nunca cheguei a contar-lhe este incidente. Por um lado com receio de não ser levado a sério mas também porque usara emprestada sem seu conhecimento a cana de pesca que ele mais gostava. Hoje pergunto-me como teria ele agido perante uma situação como a descrita. Quero acreditar que se dirigiria até junto do vulto não identificado, se apresentaria educadamente à figura e, sem pejo algum, oferecer-se-ia para lhe fazer um dos seus cigarros antes de se sentarem os dois nos carris a fumar sossegadamente e a comentar como as águas do rio, de tão calmas, andavam bem más para a pesca à vara solta. Como afinal ele tanto apreciava.



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