quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Das minhas memórias

[Gerda, 1914, Ernst Ludwig Kirchner]






Herr Klaus


Durante a minha pré-adolescência vivi alguns anos longe de Portugal, embora não muito longe, na Alemanha pré queda do muro de Berlim, numa cidadezinha de serviços e perto de duzentos mil habitantes nas margens do Ruhr e a poucos quilómetros da grande Dusseldorf. Eu e a minha família habitávamos um apartamento, alugado, não muito longe da Rathaus (Câmara Municipal), da escola que eu frequentava e do centro da cidade. No prédio vivia também o proprietário, o grande de quase dois metros de altura, cento e cinquenta quilos de peso e já sexagenário Herr Klaus. Fui poucas vezes a sua casa. Mas das vezes que fui recordo a confusão de livros escritos em várias línguas espalhados no soalho e por todos os móveis existentes na sala e as latas de cerveja vazias e de comida em conserva nas embalagens meio cheias abandonadas numa cozinha imunda e malcheirosa. Para além de homem só, nunca percebi se viúvo, divorciado ou solteirão, Herr Klaus não era de muitas palavras. Recebia das mãos da minha mãe o cheque com o pagamento da renda e preenchia logo ali o recibo que comprovava o pagamento.
 
Por motivo da minha ingenuidade de criança a rondar os doze ou treze  anos, nunca percebera o corrupio de lindas e jovens mulheres ao ritmo de três, quatro por semana que lhe entravam pela casa dentro. Algumas vezes, quando as via entrar, deixava-me ficar sentado nas escadas de madeira (o edifício cinzentão de construção do pós guerra não tinha elevador) até que, na maioria das ocasiões para aí uma simples meia-hora depois, as via sair com uma expressão no rosto que estava longe de compreender mas que sabia não ser propriamente de felicidade. Mas que também não era de infelicidade. Circunstâncias houve em que me via obrigado a largar o meu posto de vigia, conduzido pela mão da minha mãe firme a agarrar-me a orelha até me colocar de castigo no quarto. Numa das tardes em que isso não aconteceu, recordo-me de uma das senhoras sair muito zangada perseguida por Herr Klaus e de, junto à soleira da porta do apartamento, lhe aplicar um valente pontapé nos testículos seguido de um sonoro schwein. Isto enquanto o senhorio do prédio se contorcia com dores. Já a mulher, linda como as demais, passou por mim e acariciando-me o queixo deu-me um beijo no rosto murmurando-me algo indizível que me deixou de faces acaloradas e mais vermelhas que um tomate maduro.
 
Julgo que foi a minha primeira e única paixão por uma mulher mais velha que eu. E a partir dali, juro-vos, a minha quase inexistente relação com Herr Klaus esfriou até ao ponto de deixarmos até de nos saudar sempre que nos cruzávamos nas escadas do prédio.

Sem comentários: