segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Deus e o Diabo na terra do Sol

[Sandra Sue]




Todos os dias, chovesse ou fizesse Sol, via aquele homem fechar o enorme e pesado portão verde atrás de si e descer penosamente os degraus que davam para um passeio ladrilhado de hexágonos castanhos. Um passeio ainda um pouco longo que pisava indiferente desde a casa isolada que habitava até desaparecer no interior do pequeno café situado na rua principal da aldeia. Eu não teria mais de uns oito anos, mas, por vezes, acompanhado do meu avô que ali se deslocava para comprar tabaco e dar dois dedos de conversa ao gordo e farfalhudo dono do botequim, via-o chegar ao entardecer. Como sempre, num ritual grave e ao mesmo tempo ausente, não pronunciava mais que as palavras capazes de darem a entender o que pretendia – normalmente dois ou três cálices de aguardente ou outra bebida ainda mais forte esvaziados de um sorvo cada um deles. Depois, remexia as mãos nos bolsos das calças em busca de moedas para pagar o consumo e abalava em silêncio pelo mesmo caminho que o trouxera.

Aquele olhar magoado, o voluntário isolamento a que se votava do mundo que o rodeava, os gestos repetitivos, o invariável fato escuro limpo mas amarrotado, intrigavam-me. Não teria mais de trinta e cinco anos de idade, alto e magro, cabelo curto que se percebia não ter sido cortado por um profissional do ofício. Na aldeia corriam os mais díspares e disparatados rumores sobre aquele homem enigmático e distante. Vivia com a mãe, senhora austera, de posses, mas pouco quista entre os aldeões. Chegara um, dois anos atrás não se sabia ao certo de que proveniência. Dizia-se que enlouquecera por ter perdido uma fortuna ao jogo, que a loucura lhe viera de anos passados numa prisão de Lisboa a cumprir pena por ter assassinado alguém... Sobre aquele pobre homem recaíam as mais odiosas suspeitas. Embora na altura nunca tivesse conseguido perceber o que acontecera, apesar de garoto acreditava piamente que o seu crime se resumia apenas ao retraimento relativamente aos restantes, à sua inexplicada desolação.

Um dia, já de si enegrecido e chuvoso, foi quando a noite já estendia o seu manto negro sobre a povoação que vi um grupo de miúdos a fazer uso da perversidade inconsciente que lhes é própria. Caíam injúrias tremendas sobre aquele que para todos não passava de um estranho e bizarro homem. E para lá das infâmias gritadas, fora autenticamente fuzilado com lama e pedras que o deixaram ligeiramente ferido e enlameado. Depois, fugiram entre os canaviais até que a algazarra que faziam se tornou imperceptível e longínqua. Num estado deplorável, o homem continuou o seu caminho sem fazer um único gesto para retirar das roupas a terra molhada que fora lançada sobre si. Segui-o instintivamente. Quando abriu o pesado portão verde, uma luz tristonha acendeu-se e ao fundo do jardim da casa surgiu uma senhora já com alguma idade. Como a não conhecia não a pude identificar, mas era certamente a mãe. Desde o meu posto de observação, a terra debaixo dos meus pés parecia tremer, o coração pulava no meu peito. Não muito longe, um bando de corvos voava na direcção oposta à minha numa revoada silenciosa. A senhora, ao ver o filho naquele estado, abafou um  lamento triste tapando a boca com a mão. O filho ao ver a mãe aflita sorriu com ternura e abraçou-a. Depois refugiaram-se ambos no interior da casa.

Soube anos mais tarde que se mudaram para uma aldeia do norte, junto a Vila Real. Soube também que, naqueles anos em que a sua diferença suscitou ódios e incompreensão, recuperava psicologicamente de um abalo terrível: a sua mulher morrera de parto e levara consigo aquele que seria o primeiro filho de ambos. Foi também por esta altura que comecei a perceber que se pode sentir náusea pelas atitudes alheias, que tudo serve para o ajuste de contas das pequenas querelas de aldeia, que o cinismo e a irresponsabilidade humanos rapidamente se transformam em crueldade, que o maior inimigo do homem é e será sempre a sua própria ignorância.





1 comentário:

Anfitrite disse...

O blogue está quase refeito. Duvido que naquela altura houvesse iluminação suficiente, numa aldeia,
para conseguir ver, tão nitidamente, a cara da mãe do triste homem. Neste caso não se trata de ignorância, mas da crueldade, que nos é inacta, porque duvido que se soubesse o motivo da tristeza do homem o tratassem de maneira diferente.