A verdade escondida
Sorria tristemente e o olhar, tímido, parecia perdido algures no horizonte. Mas para a mulher, para os filhos, para os pais, era o marido atencioso, o pai protector, o filho dedicado. Era também o médico brilhante com um cargo de investigador na OMS. Um dia, a tranquilidade daria lugar à tragédia. Afinal, podem revelar-se devastadores os contornos ligados às mais recônditas fraquezas do ser humano.
Se existem situações limite em que a verdade ultrapassa claramente a ficção, uma dessas situações consubstancia-se, claramente, na história em que se baseou o livro, da autoria de Emmanuel Carrère, que a realizadora Nicole Garcia adaptou neste filme ao cinema. O filme relata de modo bastante equilibrado em função do acto repulsivo a que alude, a vivência secretamente errante de Jean-Marc Faure (Daniel Auteil), cuja família acreditava que fosse médico a trabalhar como investigador na OMS. Mas a vida de Jean-Marc estava muito longe dessa realidade por si criada mas completamente inexistente. Uma realidade que nunca passara da simples virtualidade. Depois de um erro cometido ainda enquanto estudante de medicina, Jean-Marc revela-se incapaz de lidar com a verdade e mente durante dezoito anos à sua família e amigos. Na extrema e pantanosa experiência humana em que se vai atolando, o falso médico passa os dias em áreas de serviço das auto-estradas, embrenha-se em estradas secundárias dos bosques da região onde vive e abandona-se em quartos de hotel. É uma errância viciosa mantida materialmente pela impostura e marcada psicologicamente pela solidão. Nicole Garcia deixou que a sua câmara captasse o lado mais humano do drama de um homem cobarde que temia as reacções previstas dos que o ladeavam se colocados em confronto com os seus actos falhados, e é atroz o impacto em nós da ambiência silenciosa do seu filme. Os movimentos lentos da câmara e o percurso grave do protagonista, funcionam como se em prelúdio para a anunciada tragédia.
Jean-Marc Faure é o nome ficcionado de Jean-Claude Romand, o homem que entrou numa espiral de degradação psicológica que o levou a um acto tresloucado mas cometido com uma aterradora serenidade. Apesar da realização jamais pretender especular sobre motivações ou encenar explicações psicológicas que levem a um entendimento mais objectivo do espectador perante a insanidade da trama a que assiste, tornam-se ainda assim evidentes os diferentes estágios que levam à alienação final. Faure traçara para si uma exigência terrível com o prolongamento da sua mentira. Para aquele homem, não havia sonhos ou metas a atingir e daí a tristeza que é latente no seu rosto, o desencantamento que transparece no seu olhar. E aquelas pequenas felicidades do dia-a-dia tornaram-se para si irrelevantes, inconsequentes. Daniel Auteil, que ainda não há muito víramos como Marquês de Sade («Sade», 2000), é perfeito no papel de um homem oprimido pela sua própria acção, preso às teias da rede por si tecida. Auteil, como Faure, deambula pela tela cingido rigorosamente à fatalidade da sua personagem. São devastadoras as expressões físicas do actor corporizando um homem potencialmente luminoso mas que se apagava em defesa da sua mentira. No meio do ardil, na gravidade da tragédia, avulta do filme uma espécie de poesia do desespero. E se méritos podem ser atribuídos a Nicole Garcia em virtude da abordagem do seu cinema à história, é de inteira justiça realçar-se o fabuloso trabalho de interpretação de Daniel Auteil. O actor “deu-se” à personagem como se sofresse verdadeiramente com o seu calvário e retira de um sentimento tão negativo quanto a repulsa, com a sua interpretação, um tão estranho quanto inesperado fascínio.
Uma das virtudes do filme reside na percepção que houve de que este se baseava numa história passada na realidade e em tempos muito recentes, em 1993. Esse facto, aliado ao livro de Carrère, ameaçava retirar qualquer tipo e hipótese de surpresa ao filme. Esse pormenor foi ultrapassado socorrendo-se Nicole Garcia em opções conceptuais algo arrojadas, dada a muito própria estrutura da narrativa no que à história se refere. O arrojo, dizia, consistiu no modo como o filme foi montado. Ao mesmo tempo que os contornos dramáticos da trama vão sendo apresentados ao espectador, Luc (François Cluzet), o principal amigo de Jean-Marc, e Marianne (Emmanuelle Devos), que foi sua amante, vão sendo interrogados na polícia sobre o amigo e antigo amante, o que indicia o que já se sabia: que algo de terrível viria a suceder no final. E esse final, ou parte dele, também seria desde logo facultado ao espectador mas apenas parcialmente, acção essa tendente a agir no filme como elemento criador de expectativas.
Diga-se que «L’Adversaire» não é o primeiro título inspirado nos trágicos acontecimentos protagonizados por Jean-Claude Romand em Janeiro de 1993 e que mais não seriam que o culminar de uma grande mentira quotidiana com dezoito longos anos de duração. «Emploi du Temps», realizado por Laurent Cantet, já tomara a ocorrência fatídica como inspiração de si mas com uma diferença substancial: a inspiração fora exercida de forma muito livre relativamente aos acontecimentos e de molde a praticar um acentuado exercício de reflexão. Este «L’Adversaire» evita a própria reflexão ao largo da história, mas, sendo fiel à obra literária em que se baseia que por sua vez é fiel aos actos ocorridos – o escritor acompanhou mesmo as sessões do tribunal que viria a condenar Romand à pena de prisão perpétua – permite que a sua visão leve à reflexão individual por parte de cada um dos seus espectadores. E esse é um pormenor também ele positivo.
No entanto, na obsessão de evitar julgamentos valorativos sobre quem quer que fosse, a película não alcança um final satisfatório. Aliás, a forma abrupta e pouco clara que o filme encarna no seu final deixa mesmo um sabor amargo de frustração decorrente da ambiguidade alcançada. Esse pormenor, arrisca a que o espectador caia em si e se aperceba que a desolação emocional que o afecta decorre muito mais da consciência que tem de que o que vê teve origem em factos reais e não pelo modo como o filme foi estruturado. O que até nem será totalmente verdade, porque a impressionante espessura dramática que a realização alcança através de silêncios e actos reprimidos, foi preponderante para a atmosfera trágica que é partilhada entre espectador e personagens. E essa perdurará para lá do visionamento do filme. Assim como a incompreensão para com um homem capaz de matar para não olhar a desilusão que a crua e dura verdade provocaria naqueles que o amavam.
Jean-Marc Faure é o nome ficcionado de Jean-Claude Romand, o homem que entrou numa espiral de degradação psicológica que o levou a um acto tresloucado mas cometido com uma aterradora serenidade. Apesar da realização jamais pretender especular sobre motivações ou encenar explicações psicológicas que levem a um entendimento mais objectivo do espectador perante a insanidade da trama a que assiste, tornam-se ainda assim evidentes os diferentes estágios que levam à alienação final. Faure traçara para si uma exigência terrível com o prolongamento da sua mentira. Para aquele homem, não havia sonhos ou metas a atingir e daí a tristeza que é latente no seu rosto, o desencantamento que transparece no seu olhar. E aquelas pequenas felicidades do dia-a-dia tornaram-se para si irrelevantes, inconsequentes. Daniel Auteil, que ainda não há muito víramos como Marquês de Sade («Sade», 2000), é perfeito no papel de um homem oprimido pela sua própria acção, preso às teias da rede por si tecida. Auteil, como Faure, deambula pela tela cingido rigorosamente à fatalidade da sua personagem. São devastadoras as expressões físicas do actor corporizando um homem potencialmente luminoso mas que se apagava em defesa da sua mentira. No meio do ardil, na gravidade da tragédia, avulta do filme uma espécie de poesia do desespero. E se méritos podem ser atribuídos a Nicole Garcia em virtude da abordagem do seu cinema à história, é de inteira justiça realçar-se o fabuloso trabalho de interpretação de Daniel Auteil. O actor “deu-se” à personagem como se sofresse verdadeiramente com o seu calvário e retira de um sentimento tão negativo quanto a repulsa, com a sua interpretação, um tão estranho quanto inesperado fascínio.
Uma das virtudes do filme reside na percepção que houve de que este se baseava numa história passada na realidade e em tempos muito recentes, em 1993. Esse facto, aliado ao livro de Carrère, ameaçava retirar qualquer tipo e hipótese de surpresa ao filme. Esse pormenor foi ultrapassado socorrendo-se Nicole Garcia em opções conceptuais algo arrojadas, dada a muito própria estrutura da narrativa no que à história se refere. O arrojo, dizia, consistiu no modo como o filme foi montado. Ao mesmo tempo que os contornos dramáticos da trama vão sendo apresentados ao espectador, Luc (François Cluzet), o principal amigo de Jean-Marc, e Marianne (Emmanuelle Devos), que foi sua amante, vão sendo interrogados na polícia sobre o amigo e antigo amante, o que indicia o que já se sabia: que algo de terrível viria a suceder no final. E esse final, ou parte dele, também seria desde logo facultado ao espectador mas apenas parcialmente, acção essa tendente a agir no filme como elemento criador de expectativas.
Diga-se que «L’Adversaire» não é o primeiro título inspirado nos trágicos acontecimentos protagonizados por Jean-Claude Romand em Janeiro de 1993 e que mais não seriam que o culminar de uma grande mentira quotidiana com dezoito longos anos de duração. «Emploi du Temps», realizado por Laurent Cantet, já tomara a ocorrência fatídica como inspiração de si mas com uma diferença substancial: a inspiração fora exercida de forma muito livre relativamente aos acontecimentos e de molde a praticar um acentuado exercício de reflexão. Este «L’Adversaire» evita a própria reflexão ao largo da história, mas, sendo fiel à obra literária em que se baseia que por sua vez é fiel aos actos ocorridos – o escritor acompanhou mesmo as sessões do tribunal que viria a condenar Romand à pena de prisão perpétua – permite que a sua visão leve à reflexão individual por parte de cada um dos seus espectadores. E esse é um pormenor também ele positivo.
No entanto, na obsessão de evitar julgamentos valorativos sobre quem quer que fosse, a película não alcança um final satisfatório. Aliás, a forma abrupta e pouco clara que o filme encarna no seu final deixa mesmo um sabor amargo de frustração decorrente da ambiguidade alcançada. Esse pormenor, arrisca a que o espectador caia em si e se aperceba que a desolação emocional que o afecta decorre muito mais da consciência que tem de que o que vê teve origem em factos reais e não pelo modo como o filme foi estruturado. O que até nem será totalmente verdade, porque a impressionante espessura dramática que a realização alcança através de silêncios e actos reprimidos, foi preponderante para a atmosfera trágica que é partilhada entre espectador e personagens. E essa perdurará para lá do visionamento do filme. Assim como a incompreensão para com um homem capaz de matar para não olhar a desilusão que a crua e dura verdade provocaria naqueles que o amavam.
[Texto em reposição]
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