domingo, 31 de outubro de 2010

Ancorar o Tempo

[Turkey Pond, 1944 - Andrew Wyeth]
 


Suponho que não aconteça apenas comigo. Em alturas de menor optimismo e mesmo de alguma necessidade de introspecção, é nas minhas memórias de menino que habitualmente encosto o pensamento e repouso a alma. Sentado num cadeirão de vime que possuo numa das varandas cá de casa, hoje foi um desses dias. E enquanto o calor continuou a subir até tornar o ar pouco menos que respirável, retrocedi mentalmente anos atrás. Viajei até casa dos meus avós, onde passei grande parte da minha infância.

Finais de Setembro, primeiras semanas de Outubro. Esta era a altura em que, depois de colhidas as uvas, o trabalho se desenvolvia na adega da quinta. Ao final do dia, depois de se despedir do pessoal que o ajudava, tal como eu faço amiúde também o meu avô aproveitava para se sentar num enorme cadeirão. Atirava com o chapéu para cima de um mesa de pinho envernizado e recostava-se enquanto limpava com um lenço o suor que lhe molhava a testa. Depois deitava um pouco de água fresca num copo e bebia. Mas, apesar de se lhe perceber a sede que lhe secava a boca, fazia-o muito lentamente, como se saboreasse deliciado a frescura que o líquido frio lhe proporcionava. Cansado, adormecia durante alguns minutos. Acordava apenas ao toque suave da mão da minha avó, fazendo-o estremecer um pouco no cadeirão, ou ao som de um velho relógio de carvalho pendurado algures numa das paredes que suportavam o telheiro onde se protegia do Sol ainda quente àquela hora do dia. Através do velho mostrador, de vidro já bastante baço, podia observar-se os algarismos negros e os ponteiros com um balancim de entremeio a assinalar as horas com razoável sonoridade.

Naquela altura, como hoje, só me ocorria correr para o relógio e pará-lo. Talvez assim pudesse ancorar o tempo.



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