segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Mulholland Drive









O estranho mundo de David Lynch  

  

      Mulholland Drive deixou de ser apenas aquela mítica linha negra de asfalto, serpenteando por entre as colinas de Stª Mónica, espraiando-se por Malibú, exibindo-se na Hollywood das fitas. «Mulholland Drive» faz agora parte, também, da história da arte, da arte que é o cinema. David Lynch atingiu com esta sua obra abstracta, surrealista, alucinada, o estado de graça que apenas aos verdadeiros artistas pode ser concedido. Porque Lynch não se limita a ser um simples realizador de cinema, ainda que os haja competentes na sua profissão. É certo que, nos seus filmes, o cineasta imprime racionalidade às tramas por si criadas e desenvolvidas, provoca acaloradas discussões intelectuais sobre as peculiares resoluções dos seus argumentos misteriosos, fantásticos, ilusórios. É igualmente verdadeira a perfeição da formalidade do cinema de Lynch, mas, a maior e mais pungente verdade sobre o homem que realiza filmes repletos de singularidade é que possui um dom muito especial. O dom de mexer com aquilo que serão os sentimentos mais íntimos do espectador, de exacerbar em nós uma estranha emocionalidade, de nos fazer sangrar por dentro. Lynch mistura as imagens mais elegantes com as situações mais bizarras, filma do modo menos convencional possível e desfere uma demolidora e final machadada deliciando-nos os ouvidos com músicas e vozes melodiosas que nos seduzem da forma mais extravagante possível. E, ao som de "crying" cantado em espanhol e rasgando o silêncio das nossas almas, nós choramos. Um choro sem lágrimas a rivalizar com os risos insensatos de quem assim prova não ter conseguido entrar no mundo de Lynch. Um estranho mas fabuloso mundo, diga-se.
     
      «Mulholland Drive» pode ser descrito como uma poesia. Ou como se de um intenso hino de lamentação se tratasse. Pode ser descrito de várias formas, é certo, mas aquilo que fez com que «Mulholland Drive» viesse ao mundo através do génio do seu criador foi a vontade de nos contar uma história triste e trágica. Uma história como tantas outras naquele universo sedutor mas igualmente devastador e cruel para tantos. A história triste de alguém com um brilho nos olhos, o brilho nascido do sonho de fama e vincado no desejo de glória. De alguém que chega a um mundo que não é o seu e, com o choque brutal das diferenças desses mundos opostos, se esquece afinal de quem era, do seu verdadeiro mundo. E sonha tornar-se uma mulher bela e sensual, atraente como poucas. Como ela ama a mulher que quer ser, mas como é trágica a frustração dos sonhos que se esvaem, a desolação do sentimento de quem suspeita vir a falhar o sonho que a fazia viver. O sonho confunde-se com a realidade e ela faz amor consigo mesma, com a imagem ilusoriamente materializada da mulher em que desejava vir a transformar-se. Masturba-se. A noite é longa no sono perturbado, o quarto onde dorme vira teatro nocturno e chama-se Silêncio. Nada é o que parece, tudo é ilusão e chora-se (crying) de infelicidade. Ela estremece com o pesadelo. Não suporta mais, todos a amam pelo que desejaria ser, falha como é na verdade, dá-se o descalabro emocional, é o fim.
     
      Deve dizer-se que David Lynch começa até o seu filme procurando desenvolver a narrativa de modo muito convencional. E isto apesar do simbolismo (o choque de automóvel é espantoso de simbolismo do choque de mundos diferentes) que está presente desde o início da película sempre objectivado na verdadeira dimensão do drama que pretende contar. Vastas vezes se afirma esta espécie de chavão relativamente a determinados "cinemas", a determinados autores, mas julgo que dificilmente fará mais sentido falar-se em apelo às capacidades do espectador enquanto descodificador de uma mensagem mais ou menos ocultada, como aqui neste «Mulholland Drive». Mas o filme é muito mais do que isso e atreve-se mesmo à desavergonhada (no bom sentido, claro) astúcia de fingir contar uma história de amor entre duas mulheres. E esse facto transmite uma fabulosa sensualidade ao filme dentro da já de si fantástica atmosfera que nele se vive. E nós com ele. Gostaria de destacar três cenas e uma característica de Lynch que me fizeram sentir arrebatado, maravilhado, boquiaberto pelo prazer que me deram: o já referido choque entre as viaturas no início, a cena do "casting" espectacularmente protagonizada por Betty e, obviamente incontornável, todo o espectáculo no cabaré Silencio atingido o auge na versão cantada numa voz fabulosa, em espanhol, de "crying". Quanto à característica, prende-se com a extrema capacidade que o realizador possui em matéria de criação de personagens obscuras, excêntricas e absolutamente desarmantes.
     
      «Mulholland Drive» é um enigma, um engenhoso jogo de enganos, uma intensa reflexão sobre um mundo de sonho mas também de tragédia. Enfim, que dizer mais!? Apenas que «Mulholland Drive» é a mais recente obra-prima do cinema.




«Mulholland Drive», de David Lynch, com Naomi Watts e Laura Elena Harring



2 comentários:

CLÁUDIA disse...

Onde é que eu posso assinar por baixo? :)

JL disse...

Aqui mesmo, Cláudia. Podes assinar aqui mesmo. Aliás, já registei a tua assinatura. :)