domingo, 31 de outubro de 2010

O Apelo da Natureza



Sempre que observo esta pintura de Andrew Wyeth datada de 1948 e intitulada «Christina’s World», relembro-me dos tempos em que percorria as searas junto a casa dos meus avós sem olhar ao tempo que passava, sem rumo certo nem destino predefinido. Sabia apenas que antes que a tarde escurecesse teria que estar de regresso pois era altura da chegada do meu avô e ele não gostava de me saber fora àquelas horas do dia. Numa dessas minhas incursões, início de tarde solarengo, encontrei deitada sobre o centeio uma colega de escola, a Rita. Vi que chorava e aproximei-me dela. Sem que lhe perguntasse absolutamente nada estendeu-me uma das mãos e com a outra colocou um dedo em riste sobre os lábios como que a exigir-me silêncio. Fiquei quieto, mudo e, sem perceber bem porquê, fascinado com a visão de uma Rita melancólica e etérea que desconhecia. Uma estranha tranquilidade que repentinamente se apoderou de nós ainda tornou mais extraordinário aquele momento de inesperada felicidade. Ajoelhei-me junto a Rita, tão perto dela que as minhas pernas roçavam as suas, e pude perceber então que as lágrimas que lhe escorriam pelo rosto sardento não eram de tristeza. Pelo contrário, compreendi que o que a Rita buscava naqueles campos era a abstracção que só a imensidão da natureza propicia, a solidão que lhe permitia encontrar-se a si mesma. Num impulso beijei-a nos lábios. Foram poucos e muito velozes segundos com os meus lábios colados nos dela, mas, sem olhar uma única vez para trás, assustado com o meu gesto fugi dali para fora deixando-a novamente entregue à acalmia que a extensa seara lhe transmitia. No outro dia, já na escola, ela sorriu-me e eu corei envergonhado. Estava terrivelmente apaixonado pela Rita mas nunca tive coragem de lho confessar. Anos mais tarde, já na cidade grande, encontrámo-nos junto a uma sala de cinema. Cumprimentámo-nos, conversámos um pouco e falei-lhe daquela tarde, do beijo roubado, da paixão que me consumiu durante meses. E fiz-lhe a pergunta inevitável: também gostavas de mim, Rita? Nisto, ela deu-me suavemente um beijo no rosto, sorriu e desapareceu no interior da sala escura do cinema deixando-me na incerteza. Uma incerteza que de quando em vez me faz revisitar aquele dia de absoluta felicidade.

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