quinta-feira, 14 de outubro de 2010

OS OUTROS

      
     



ELEGÂNCIA E PERTURBAÇÃO
     
      Em «Os Outros» sugere-se, a determinada altura do filme, que uns e outros necessitam caminhar lado a lado, que mortos e vivos podem muito bem coexistir em mundos paralelos. Como se no dado momento a que escrevo esta crítica, pudessem permanecer a meu lado um ou mesmo dois seres que um dia deixaram a vida tal como a conhecemos. Será possível que enquanto me encontro absorvido no teclado e écran do meu computador, uma outra qualquer existência esteja de costas para mim olhando a noite lá fora, as sombras ziguezagueantes das luzes no arvoredo impelido pelo vento...!? E de que forma se revestirá o olhar daquele que já passou pela vida, que a trocou pela morte? Entristecido, alheado, sentido, amargurado...?
     
      «Os Outros», num argumento e realização de Alejandro Amenábar, pode não ser o melhor filme do ano, é discutível e irrelevante esse estatuto dependente de inerente subjectividade, mas é sem dúvida aquele onde é quase impossível vislumbrar-se uma única falha. Fiel à formalidade do modelo clássico do cinema de terror, adepto confesso da sugestão do medo em que mestre Hitchcock terá sido o expoente máximo, Amenábar criou com a sua obra uma atmosfera intensa do medo que se pressente mas que nunca nos é exposto. A densidade dramática vivida num clima de desesperada claustrofobia, reside sobretudo na criatividade de um argumento riquíssimo que tudo provoca. Atentemos um pouco no núcleo dramático da história: Grace é uma mulher jovem e sofrida que vive enclausurada numa enorme mansão situada numa ilha. Os seus dois filhos, ambos pequenas crianças, possuem uma doença rara e não podem por isso sair ou ver a luz, o marido partira para a guerra (estamos em 1945) e não voltara apesar desta ter já terminado, três criados ajudam nas tarefas domésticas.
     
      É pois num ambiente escurecido onde a noite se confunde com o dia que enormes cortinados escondem do interior da mansão, de portas fechadas uma após outra e de enormes chaveiros, que se passam os dias no imponente casarão. Um casarão fantasmagórico invariavelmente imerso num denso nevoeiro e onde, no jardim, existe ainda um pequeno cemitério.
     
      O que faz deste filme uma obra única é a reconfortante constatação da possibilidade de edificar um filme de fantasmas onde não existem o Bem e o Mal; é igualmente o facto de podermos verificar que um filme cujo objectivo é o de nos mostrar/sugerir/provocar o medo o fazer sem que se vislumbre algo falho de elegância: Grace, os seus filhos e inclusivamente os criados, movem-se com finura, os seus rostos transparecem candura, os seus olhares confiança. Por outro lado, nada neste filme pode ser acusado de inverosímil sem que pelo menos nos obrigue à dúvida, nos faça acreditar que é possível. E isso, num filme de terror, é um trunfo tanto mais valoroso como raríssimo de se observar.
     
      Nicole Kidman está absolutamente sublime e esta é talvez a sua mais relevante interpretação, apesar de ser uma actriz já detentora de um brilhante currículo. Num filme onde o trabalho dos actores é a todos os títulos notável, outro destaque tem que ser feito relativamente a Fionnula Flanagan, a criada mrs. Mills: de uma serenidade, de uma postura e de um rigor interpretativo ímpares.
     
      «Os Outros» escreve com letras douradas a palavra FIM no calendário de apresentações de cinema em Portugal no ano de 2001. Uma obra que merece alguma contenção ao escrever-se sobre ela. Por preservação à alma do filme, mas sobretudo por respeito a quem ainda o não viu. Isto porque se revela surpreendente no seu final acentuando com isso e ainda mais a enorme intensidade dramática até então desenvolvida, deixando como marca própria um clima de interrogação, de perturbação.

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