quinta-feira, 14 de outubro de 2010

OS IMORTAIS



      UM PAÍS À PROCURA DE SI MESMO
     
      Depois de «Jaime» (1999), António-Pedro Vasconcelos regressa ao grande ecrã com uma obra adaptada do romance «Os Lobos não Usam Coleira», de Carlos Vale Ferraz. Contando com um elenco de luxo onde pontificam figuras mediáticas do nosso cinema (como Joaquim de Almeida, Rogério Samora e Alexandra Lencastre), outras mais ligadas ao pequeno ecrã seja desde há muito (Nicolau Breyner) ou resultantes de um fenómeno mais recente (Rui Unas) e ainda um nome mais ou menos sonante do cinema europeu até por ser a companheira do famoso cineasta Roman Polanski (Emmanuelle Seigner), o realizador português idealizou uma viagem ao passado recente de uma sociedade portuguesa então ainda dominada por evidentes resquícios de décadas de ditadura salazarista e pelos traumas da guerra no ultramar.
     
      O argumento detém-se em quatro ex-combatentes numa antiga colónia portuguesa de África. Todos eles haviam lutado numa tropa de elite treinada para não ceder às suas emoções no calor da luta, os denominados Comandos. Apesar do fim da guerra, Roberto Alua (Joaquim de Almeida), Horácio Lobo (Rogério Samora), Vítor Pratas (Rui Unas) e Sérgio Mano (Joaquim Nicolau) continuam no entanto a encontrar-se todos os anos para manterem aceso o espírito de grupo e recordarem tempos de guerra. É precisamente a partir de um desses encontros, em 1985, quando os quatro partem acompanhados de quatro mulheres de ocasião para passarem uma semana no Algarve, que a trama se desenvolve. Desenquadrados da sociedade que os rodeia, os veteranos do ultramar necessitam de acção para viverem e para tal resolvem assaltar um banco em Albufeira. Mas em Lisboa, Joaquim Malarranha, um Inspector da Judiciária à beira da reforma, percebe as necessidades do grupo e não lhe é difícil concluir da identidade dos assaltantes. A sua ligação aos antigos companheiros no ultramar é feita através da filha Severina (Maria Rueff), ela que mantém uma calorosa amizade com Maria Antónia (Alexandra Lencastre), a mulher do alferes Alua. Uma outra mulher, Madeleine Durand (Emmanuelle Seigner), vai ter um papel fundamental no ‘thriller’ que se desenvolve paralelamente ao drama.
     
      Apesar de alguma dificuldade em contornar o excesso de lugares-comuns na composição psicológica das personagens e dos diálogos, pese embora estes decorrerem associados à memória colectiva (se é que ela, a memória colectiva, continua viva) de um país sobre uma época específica da sua história contemporânea podendo tal ser até entendido como a busca da caricatura como meio de enfatizar a sátira, a verdade é que se percebe na realização de Vasconcelos uma proximidade emocional com o público que faz desde logo prever uma excelente aceitação do filme por parte deste. E esta é uma característica que se revela de mérito exponencial através do enquadramento da obra no panorama cinematográfico nacional. Na verdade, toda a ‘mise en scène’ projectada no filme como forma de construção do retrato de uma época é de inatacável rigor e as referências culturais e políticas evidenciadas no argumento ajudam a chegar a esse desiderato. O fado e o futebol, elementos dissuasores da insatisfação popular no antigo regime, mantém-se presentes na sociedade de então assim como é aberto o véu sobre uma Polícia Judiciária a viver momentos de mudança para novas responsabilizações inerentes à alteração ocorrida para o poder democrático. Tal como os “tiques” das gentes em interacção social são bem explorados; o desequilíbrio de forças nas relações amorosas e matrimoniais é disso um claro exemplo.
     
      Ainda assim, o principal mérito do criterioso trabalho de António-Pedro Vasconcelos prende-se com a capacidade que teve em demonstrar emoção neste seu filme. A emoção de ver as suas personagens serem movidas por noções anacrónicas de honra e coragem (os quatro ex-combatentes) e a emoção de ver um homem (o Inspector Malarranha) que através de um filho morto na guerra evocada pelo filme consegue perceber que é à própria sociedade, através da sua má consciência, que se devem culpas pelo comportamento daqueles homens. Neste âmbito, é de enaltecer e felicitar Nicolau Breyner pela irrepreensível composição que fez de Malarranha, um homem que sob uma aparente apatia se revela astuto e capaz da emoção e do humor. É de realçar ainda a humildade com que o actor se transfigura na sua personagem, ao contrário do seu colega Rui Unas que apesar do esforço se mostrou incapaz de compor um “boneco” que conseguisse fazer esquecer o homem real e mediático por detrás da personagem de ficção.
     
      Estamos pois na presença de um filme agradável que junta dois itinerários desencantados. Um do lado do bem, percorrido pelo Inspector Malarranha, outro que oscila para o mal, trilhado pelo grupo de ex-comandos. Em paralelo, o espectador é presenteado com uma sociedade em difícil transição e com uma muito consistente e bem delineada acção criminal. E tal como em «O Lugar do Morto» (1984), António-Pedro Vasconcelos, disfarçando até algumas debilidades já referidas, revela uma invulgar capacidade de chegar ao grande público. A ver sem preconceitos.

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