sexta-feira, 15 de outubro de 2010

PELA MÃO DO SENHOR






ELE AMAVA OS FILHOS MAIS QUE A SI PRÓPRIO...
     
      Discretamente, sem grandes alardes, surgiu no mercado de exibição cinematográfica no nosso país um filme que nos agita a alma, estimula o intelecto e faz questão de nos reabastecer daquelas razões por que outrora nos sentimos seduzidos e nos fizeram entusiastas da 7ª arte. Ainda para mais, «Pelas Mãos do Senhor» insere-se num género abrangente e como tal capaz de fazer as delícias de qualquer espectador de cinema, mas que, talvez por isso mesmo, tão maltratado tem sido: o “thriller” psicológico. Na verdade, o filme arrisca mesmo trilhar caminhos mais ligados ao terror mostrando um trunfo forte nesse capítulo: perceber com rara lucidez de que modo evoluiu e que forma pode assumir o medo nos nossos dias. Evitando a partir dessa premissa cair em inúteis absurdos e exageros desnecessários que levam qualquer bem intencionada narrativa a esbarrar no seu próprio ridículo, o espectador é confrontado com a visão demencial de um jovem pai que ama os seus filhos mais do que à sua própria vida. Mas eis que a crueldade e a transgressão nos surgem sob a capa de desígnios do Senhor. O demónio, esse, pode muito bem viver sob disfarce ao fundo da (nossa) rua. E há que o eliminar.
     
      Outra característica interessante desta primeira incursão do actor Bill Paxton como realizador, é que nela se podem identificar algumas das mais vistas e marcantes referências de criatividade com base literária em cinema sem que isso faça perder a irresistível atracção da sua história, antes pelo contrário. Como exemplo do que se afirma, observe-se a forma como se dá início ao filme, num velhinho mas eficaz efeito de charme. Repare-se pois como chove tempestuosamente em Dallas. Junto à porta principal do QG do FBI naquela cidade texana, permanece uma ambulância abandonada e dentro do edifício, no gabinete do Detective Wesley Doyle, um homem ainda bastante jovem prepara-se para dar início a uma revelação inquietante. Ela tem que ver com a até então desconhecida identidade de um cruel assassino em série. E quando este principia a denúncia, começa por confessar que tudo se iniciara 20 anos atrás no tempo, em 1979... E o perturbador relato surge-nos sob a forma de “flashbacks” da memória do denunciante.
     
      Nunca é demais destacar que Paxton fugiu sempre do estereótipo desvairado. Ao invés de enveredar por fórmulas conhecidas, a narrativa intimista que o filme adopta transmite uma serenidade quase impossível dada a natureza atroz da sua história. Claro que o filme não é perfeito e existem desde logo duas falhas distintas mas que são evidentes: uma tem que ver com um problema de montagem dado que existem cenas cortadas de forma quase abrupta quando o lógico seria a conclusão das ideias nelas especificamente trabalhadas. Outra falha, essa talvez mais subjectiva, é a parca exploração dos factos em que assentam as razões que levam ao cometimento do último assassínio tendo até em conta o cargo que o assassino ocupa na sociedade. Mas, enfim, estes são meros pormenores de um filme que, embora sem fulgores assombrosos, vive muito da regularidade do seu brilho. Bill Paxton, que dirige o filme de forma capaz com direito a alguns efeitos alucinatórios, acaba por ser igualmente a figura em maior destaque relativamente ao resto do elenco: porque a loucura pode esconder-se por detrás de um olhar tranquilo, porque o alienado acredita piamente na bondade dos seus mais tresloucados actos. E é esse o mérito de Paxton ao evidenciar estes factos na composição da sua personagem.

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