domingo, 10 de outubro de 2010

21 GRAMAS





CORPOS DOENTES, ALMAS EM FERIDA
     
      Logo na sua primeira obra, o realizador Alejandro González Iñarritu deixara-nos do seu cinema uma ideia de arrojo formal, dureza de conteúdo e ritmos turbulentos. «21 Gramas», a sua segunda longa-metragem, vem confirmar brilhantemente essa teoria.

     
      Na sua fita inaugural, «Amor Cão» (2000), Iñarritu fora nomeado para inúmeros prémios de festivais um pouco por todo o mundo e ganhou mesmo alguns desses troféus. Também o seu filme o foi, tendo, inclusivamente, sido nomeado para o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro do ano respectivo. Desse modo, «21 Gramas» surge muito naturalmente como o resultado da curta viagem do cineasta mexicano até ao país vizinho, os EUA. E, curiosamente, este seu novo filme vai estar mais uma vez presente na noite dos Óscares e logo, quanto a mim, com possibilidades muito fortes de vitória nas suas duas nomeações: Naomi Watts, no papel de uma antiga viciada em drogas e então mãe de família a viver uma perda dolorosa, nomeada na categoria de Melhor Actriz, e Benicio del Toro, um ex-presidiário refugiado na religião como meio de fuga à delinquência, candidato à estatueta de Melhor Actor Secundário, são as duas nomeações. Se acrescentarmos a isto a convicção de que o filme possui ainda mais duas esplendorosas interpretações – as de Sean Penn (também ele nomeado para os Óscares mas pela sua participação em «Mystic River», de Eastwood) e Charlotte Gainsbourg – não será difícil aquilatar da portentosa direcção de actores que nele podemos observar.
     
      Mais uma vez, um pouco como acontecia em «Amor Cão», a abordagem argumental de Iñarritu (e do seu argumentista de serviço nos dois filmes) parte da descrição de três diferentes histórias de vidas que inexoravelmente confluem entre si a partir de um acidente em que intervém uma viatura automóvel. Antes disso, Paul Rivers (Penn) é um matemático que carrega dentro de si um coração que ameaça consumir-se a todo o momento e, por esse motivo, deambula entre a vida e a morte enquanto espera pela oportunidade de um transplante. Paul tem ainda um outro motivo de desgaste psicológico já que Mary (Charlotte Gainsbourg), a sua companheira, deseja engravidar mesmo contra a sua vontade. Noutro âmbito, Jack Jordan (del Toro) é um ex-condenado casado e pai de duas crianças que procura redimir-se do seu passado através de uma exagerada dedicação à religião. Cristina (Naomi Watts), é o elemento final que completa este triângulo de vidas em trágica convergência na narrativa. Ela é esposa e mãe mas também uma mulher com um passado obscurecido pela dependência das drogas.
     
      Diga-se que em questões de arrojo formal é na fantástica montagem com que o filme estimula intelectualmente o espectador mas o obriga a ter uma redobrada atenção ao que se desenrola na fita, que o cineasta mexicano mais impressiona. Efectivamente, sem respeito por uma estrutura temporal exacta parecendo até cronologicamente arbitrária a disposição das cenas, é no entanto genial a forma como tudo se encaixa completando no final um puzzle que é, no mínimo, arrebatador. Em determinados momentos da película chega-se a ter a impressão que aquilo que nos está a ser revelado do futuro da acção é mais que suficiente para percebermos como vai terminar toda a trama. Mas essa é uma sensação errada que nos é deliberadamente oferecida pelas qualidades de Iñarritu como artesão cinematográfico, se é que me é permitida a expressão. Em momento algum essa antevisão nos é permitida ficando-nos mesmo a convicção que apesar do atrevimento formal de Iñarritu, que pode ser entendido como um mal disfarçado desejo de protagonismo do realizador, o seu compromisso é a todos os momentos com a história e materializa-se na justa pretensão de, com essa opção conceptual, criar vários pontos de clímax ao longo de todo o filme.
     
      «21 Gramas» vive ainda dos dramas fortes inerentes (e subjacentes também) à sua própria trama sendo que as personagens, com um percentual muito elevado de quociente de culpa por parte dos actores que as defendem, adquirem uma consistência tal que rapidamente obriga a que tomemos o seu partido. E neste âmbito, o trabalho desenvolvido por Sean Penn, cada vez mais um actor enormíssimo, não parece distinguir-se da interpretação de Naomi Watts, a fazer lembrar a Betty/Diane de «Mulholland Drive» (2001), ou desse secundário de luxo que é o porto-riquenho Benicio del Toro. Assim, numa atmosfera árida que bem a propósito inclui algumas tomadas de imagens (cenas) em solo desértico, a fé, a culpa, a vingança, a redenção e a morte são os elementos que determinam a acção das personagens e possibilitam a crítica sub-reptícia mas mordaz a questões do foro religioso, judicial e político. Sobra de tudo isto um filme admirável no modo como nos estimula o intelecto e sacode a alma. Isto partindo do princípio que ela, a alma, tem afinal um peso estandardizado para todos os seres humanos: os tais 21 gramas.

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