terça-feira, 12 de outubro de 2010

8 MILE






 RITUAL DE MELANCOLIA AO RITMO DO HIP-HOP
     
      Enfant terrible do rap, Eminem, nome de guerra de Marshall Mathers, faz a sua entrada no cinema em «8 Mile» pela mão competente do realizador Curtis Hanson, este o mesmo de «Wonder Boys – Prodígios» (2000). E Eminem, cujo decurso de vida parece vastas vezes confundir-se com a história do jovem Jimmy “Rabbit” Smith Jr, a personagem que é por si corporizada, revelou desde logo uma contenção dramática e um sentido de autenticidade que muito agrada. E surpreende, provavelmente até à facção mais céptica à qual eu mesmo pertencia. E isto embora as características referidas pudessem de algum modo ser previsíveis em Eminem, já que estas serão fundamentais para que um bom rapper consiga alcançar o sucesso. Aliadas, é claro, à capacidade de improvisação, de observação daquilo que o rodeia e domínio verbal e emocional. No entanto, talvez inspirado em “8 Mile Road” a rua que dá título ao filme e que divide uma cidade – Detroit – outrora efusiva mas hoje mergulhada em profunda depressão, Hanson rasga os limites da dissimulada biografia para se aventurar na saga suburbana. E é nesse âmbito, no âmbito de jovens como o rapper Smith Jr cuja família se encontra dispersa pelas ruas e na figura dos seus amigos, que Hanson mergulha na cultura e em factos menos mediáticos da história de uma América cuja luminosidade sonhada se ofusca então no pesadelo da realidade. E nesse facto residirá igualmente um lado fundamental da génese do rap.
     
      Smith é um jovem que possui uma tumultuosa vida afectiva. À agitada relação com a mãe (Kim Basinger), uma mulher alcoólica, egoísta e desocupada cujos únicos rendimentos provém do jogo – do bingo, no caso – adiciona-se a incompatibilidade com o namorado desta e uma relação recentemente terminada com Janeane (Taryn Manning) que supostamente está grávida de um filho seu. Detentor de um trabalho precário numa fábrica, o sonho de Smith assenta em conseguir chegar a um estúdio e dessa forma poder demonstrar o seu talento como rapper. Um talento apenas reconhecido pelo seu restrito grupo de amigos e por Alex (Britany Murphy), uma jovem que partilha dos seus sonhos de emancipação da cidade onde vivem, o que os aproxima e acaba mesmo por levar a um relacionamento mais íntimo. No enredar da trama, o que já era complicado mais complexo se torna mas Jimmy “Rabbit” Smith Jr logra ultrapassar fantasmas do passado e vencer desafios antes perdidos. Tudo isso conseguido através da furiosa exaltação do seu ego ferido e consumado na sua forma de expressão preferencial: o rap.
     
      Assuma-se que foi sempre intenção de Curtis Hanson dotar o filme de um outro olhar, de uma disposição natural para captar a essência das consequências de uma cidade em declínio económico nos que a habitam. E esse outro olhar situou-se sobretudo na composição das personagens mas também por meio de efeitos visuais, da fotografia. Não é por acaso que surge o nome de Rodrigo Prieto como responsável por esse departamento no filme, ele que é o mesmo homem que assinou a fotografia de um outro filme de grande acutilância analítica da vida urbana e algo marginal: «Amor Cão», de Alejandro González Iñárritu. Por outro lado, não é nada ingénua a constante opção de filmagem com câmara às costas já que existe nesta atitude uma intenção nítida de concessão à narrativa de uma dimensão de inatacável autenticidade. Em termos interpretativos se é a todos os títulos meritório o trabalho de Eminem, como atrás avançado, realce-se igualmente o bom trabalho de Kim Basinger. Ela que já anteriormente vencera um Oscar e um Globo de Ouro em «L. A . Confidential» (1997), trabalho sob a direcção de Hanson, o realizador que também aqui a dirigiu.
     
      No restante, e apesar da ambiência melancólica que o filme faz questão de evidenciar, é louvável que as personagens que vivem como se embriagadas na sua própria infelicidade jamais se sintam perdidas numa espécie de desígnio fatalista e lutem sempre pelos seus ideais. Nomeadamente naquilo que à personagem principal (Eminem) diz respeito. Ele que ainda assim nunca perde a noção do razoável, do real. Numa narrativa em que a extensão da vertente musical é importante e indissociável do restante, e da origem do próprio filme, verifica-se que é à condição humana que é dada a maior relevância da narrativa. E isso numa fantástica simbiose entre o percurso pessoal e a saga suburbana. Exemplifique-se como tal a cena em que o grupo de Jimmy incendeia uma casa em ruínas, um local onde antes se dera uma violação. Esse facto alude à história recente de Detroit onde várias dessas casas foram sendo queimadas pela população e é aproveitado por Hanson para salientar os traumas da sua personagem principal. Porque quando Jimmy olha uma fotografia abandonada de uma família completa, ele percebe que aquela casa agora em ruínas fora antes um lar para aquela família. Um lar que ele provavelmente muito desejara para si mas nunca tivera.

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