terça-feira, 12 de outubro de 2010

A.I. - INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL


     




A POESIA DE SPIELBERG COM INSPIRAÇÃO KUBRICKIANA
     
      Steven Spielberg não é um visionário, Steven Spielberg é sim um extraordinário realizador de cinema. Um cinema feito de fascínio, feito de sonho, feito de aventura ainda que a aventura percorra apenas o território das emoções e dos sentimentos através de brilhantes exercícios racionais.
     
      Stanley Kubrick era igualmente um espantoso cineasta. E era, em proporção idêntica, um visionário. Kubrick é, provavelmente, na história contemporânea, o maior filósofo imagético nela existente. O realizador britânico era um estudioso do comportamento dos homens, era alguém preocupado com as verdadeiras fronteiras da condição humana. Com as suas potencialidades mas, sobretudo, com as suas limitações e desvarios.
     
      Digamos que de uma associação intelectual entre estes dois homens só poderia sair algo poderoso, algo de singular em termos de um cinema sustentado na união de poderes mente/alma, rigoroso e moderno. Se de um lado havia a percepção comportamental do seu semelhante, a mais valia de um extremada sensibilidade racional (Kubrick), do outro havia a invulgar capacidade de chegar a esse mesmo semelhante, do talento para o seduzir através de uma maior sensibilidade emotiva (Spielberg).
     
      Durante anos Kubrick manobrou aquilo que pretendia viesse a ser a variação cinematográfica do conto do escritor britânico Brian Aldiss, «Supertoys Last All Summer Lone», publicado em 1969 na revista «Harper’s Bazaar». Inteligente como era, Kubrick rapidamente percebeu as suas limitações na necessária sensibilidade para contar a história de um menino robot que sonhava ser amado, na transposição para a tela dessa invulgar teia emotiva. Reconheceu em Spielberg o homem ideal para realizar tão ansiado filme mas, por razões várias, isso acabou por se não concretizar e, em 7 de Março de 1999, Kubrick abandonaria inesperadamente o mundo dos vivos. O resto também é conhecido, Steven Spielberg adquiriu para si os direitos sobre a história resolvendo retomar o projecto do velho e genial realizador.
     
      «A. I. : Inteligência Artificial» parte então do argumento de Spielberg, vagamente baseado na história referida. Spielberg resolveu aproximar a história do pequeno David, um robot que procura parecer-se o mais possível com uma criança real inclusive na capacidade de amar, da conhecida história de Pinóquio. Ambos querem tornar-se meninos de verdade, mas David persegue esse sonho na profunda ambição e convicção de que, ao tornar-se menino de verdade, consegue o amor de sua mãe. Na injusta escolha que inevitavelmente sucede, David é abandonado numa floresta em detrimento do seu hipotético irmão, esse sim, um menino de verdade. A partir daqui a história embrenha-se na busca de um entendimento daquilo que serão as sociedades futuras em confronto com as suas próprias criações, no terrível dilema que é a procura da satisfação das necessidades pessoais e em aberto entrando em clivagem no receio de que a máquina substitua o homem. Mais uma vez o homem se questiona sobre a sua existência, sobre que cambiantes do pensamento e da matéria se faz o percurso da humanidade. E é nestes aspectos da formulação de hipotéticas questões existenciais mas também em muitas das cenarizações adoptadas que é irreversível a associação e colagem de Spielberg a Kubrick, coisa que o realizador aliás confirma como sua e voluntária opção. Inclusive a acusação de frieza de que constantemente o filme é alvo tem que ver com a extrema racionalidade dos métodos de Kubrick. Isto apesar das temáticas intimistas (a família, a mãe... ) e de carácter mais emotivo do cinema de Spielberg presentes também neste filme.
     
      Uma palavra para a personagem de “Gigolo Joe”. E não tanto para a irrepreensível (para não dizer brilhante) interpretação de Jude Law, mas muito mais para a forma como a personagem foi enriquecida. Sendo em última análise uma máquina, desprovido de capacidades individuais para a tarefa de sedução feminina, o prostituto é servido com todos os ingredientes associados ao género, ou seja, é alguém que tem tudo o que se espera de uma pessoa assim já que foi programado para responder àquele tipo de solicitações. Socorro-me até de alguém do sexo feminino a meu lado na sala de cinema que sussurrava para a sua companheira a propósito de “Gigolo Joe” : “ O gajo até tem o cabelo à foda-se!” E se eu entendi bem o que significará a peculiar expressão, ela diz tudo sobre a forma fantástica como foi imaginada a figura.
     
      Um pouco como os super-inteligentes andróides do final do filme e a sua incessante busca de percepção sobre os seus desaparecidos criadores, os seres humanos. Despojados da matéria que faz de nós homens bons, homens maus, inteligentes, menos inteligentes, justos e injustos, programados inicialmente de virtudes e despojados de defeitos, esses seres são o sinónimo da perfeição racional e da justa correcção das atitudes em sentido único do bem.
     
      Já Haley Joel Osment, o menino de verdade que protagoniza o robot em busca do amor materno, ficará muito justamente para a história do cinema como a alma deste lindíssimo filme. O seu olhar infeliz, o seu rosto marcado pela angústia, o seu sorriso de felicidade e o dominante brilho presente nos seus olhos perante a consumação do sonho, são um marco fundamental que eleva o filme e aprofundam a nossa certeza sobre as fantásticas capacidades dramáticas do pequeno actor.
     
      Em suma, um filme de brilhante racionalidade e estimulante emotividade, um filme excelente que é também um filme lindíssimo. Manobrado pela competência e sensibilidade do cinema de Spielberg, «A . I. : Inteligência Artificial», assemelha-se a um filme - poema que não esqueceu a acutilante racionalidade visionária de quem o idealizou: Kubrick.
     
      Uma obra-prima? O futuro se encarregará de o confirmar. Ou não.

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