terça-feira, 12 de outubro de 2010

APANHA-ME SE PUDERES


     



O FALSÁRIO COMPULSIVO
     
      Frank Abagnale Jr é uma figura bastante popular nos Estados Unidos. Ele foi o mais jovem delinquente a constar da lista dos dez criminosos mais procurados pelo FBI. Durante 5 anos, mais precisamente entre os 16 e os 21 anos e sem sequer ter terminado o liceu, Frank extorquiu milhões de dólares aos bancos através das falsificações de cheques que conseguia, foi médico responsável por um serviço de urgências, co-piloto da Pan American e, tendo inclusivamente passado em exame na ordem, advogado. Preso em França aos 21 anos, o esguio e convincente Abagnale cumpriu 5 anos de cadeia até que aceitou uma proposta do FBI para trabalhar sob a sua alçada no departamento de falsificações, desfalques e cheques sem cobertura. Hoje, Frank Abagnale Jr é uma das maiores autoridades mundiais na matéria em causa, colabora com algumas das mais importantes instituições bancárias dos Estados Unidos, foi criador de vários modelos de cheques que percorrem os bancos de todo o mundo, promove ou participa anualmente em dezenas de seminários sobre como reduzir as possibilidades de fraude e falsificação e publica um par de revistas destinadas ao púbico tendo como referência o mercado financeiro. Em 1980, Frank Abagnale Jr publicou um livro autobiográfico a que deu o nome de «Apanha-me Se Puderes». Na base da história encontrava-se a relação de estranha cumplicidade nascida entre si e Carl Hanratty, o agente do FBI que durante anos o perseguiu. Steven Spielberg, verdadeiramente fascinado pelas quase inacreditáveis aventuras do então jovem falsário, adaptou o livro ao cinema.
     
      Depois de duas filosóficas e valorosas incursões no futuro, através de «A . I. – Inteligência Artificial» (2001) e «Relatório Minoritário» (2002), «Catch Me If You Can» marca o regresso ao passado por parte de Steven Spielberg. A um passado situado em pleno Séc. XX e algures na sua década de sessenta, uma época marcada por alguma exaltação de frivolidade existencial, pela obsessão da elegância, pelo colorido e pelo glamour. E é desde logo neste particular que o admirável realizador começa por dispor as peças do puzzle em que se construirá o seu filme. Mormente através do espantoso genérico inicial onde uma interessante e divertida animação não só nos coloca perante a essência labiríntica daquilo que o filme nos reserva, ou seja, um homem que corre atrás e outro que dele se furta, como nos apresenta a ambiência e a estética em que esse despique se irá processar. E também aí começa a evidenciar-se a importância de habituais colaboradores de Spielberg e a quem este faz questão de invariavelmente recorrer para o ajudarem na concepção dos seus filmes: John Williams, responsável pela partitura, e Janusz Kaminski, o homem da fotografia. O excelente trabalho de ambos no filme foi preponderante para que este se afigure desde já como a comédia mais bem conseguida por parte do cineasta. Porque, e esta questão deve ser bem acentuada, «Apanha-me Se Puderes» é um objecto fílmico importante na essência mas brilhante na aparência. Diria mesmo que é de luxo o invólucro que suporta o filme.
     
      Se algumas críticas se podem fazer a Spielberg, independentemente das patéticas acusações de que vulgarmente é alvo e que nomeiam como de carácter demasiado comercial o seu cinema, elas prendem-se com valores recorrentes nos seus filmes e que têm que ver com a família. É com alguma justiça que se poderá censurar o realizador pela sua incapacidade em encontrar virtudes e um conceito familiar para além daquele que é o convencional e universalmente aceite. Aliás, é comum verificar-se como neles a inexistência de uma normalidade familiar leva à desintegração psicológica das diversas personagens. Talvez por isso mesmo, por ser um autor politicamente correcto –demasiadamente por vezes, acrescento eu, e caso não consiga libertar-se dessa capa de virtudes instituídas, Spielberg nunca poderá alcançar o nível autoral atingido por Stanley Kubrick. Este citado aqui até como exemplo em oposição ao referido. No entanto, essa acusação não fará muito sentido nesta obra já que ela foi inspirada em factos verídicos e as odisseias de Frank Abagnale Jr (Leonardo DiCaprio) iniciam-se precisamente quando o jovem assiste ao desmoronar da sua família. Isto é, ao divórcio dos pais. E é numa tentativa de recuperação daquilo que perdera, de restabelecimento da estabilidade familiar, que surge a principal razão para os cheques falseados por si e o consequente amealhar de milhares de dólares. Por outro lado, a referência e inspiração do jovem Abagnale aponta constantemente para a figura do pai (Christopher Walken). E essa relação, a de pai e filho, é uma das mais conseguidas pela dramatização imprimida à narrativa por Spielberg sendo que a sua importância no enredo se revestiria, à partida, de alguma secundarização relativamente à que o jovem falsário irá manter à distância com Carl Hanratty (Tom Hanks), o agente do FBI que irá dedicar anos de vida na sua busca. Esta uma convivência entre dois seres em oposição, mas que por serem afinal dois seres humanos solitários leva à quase dependência afectiva um do outro.
     
      À figura de Spielberg associam-se ainda méritos paralelos neste filme que necessitam ser referenciados. O filme resulta de um argumento muito bem concebido e alcança uma suave meditação sobre a materialização de fantasias que alguém procurou depois de ter sido vítima de uma perda irreparável, a da família. A trama é desenvolta, bastante interessante e atinge momentos de grande diversão. Mas este é também um filme de grandes actores e aí residem os méritos antes sugeridos para Spielberg. Porque o realizador ajudou a promover a ideia de que a Leonardo DiCaprio jamais se possa questionar o seu valor como actor. DiCaprio percebeu que a sua personagem não era mais que um miúdo num mundo de adultos e atribuiu à sua corporização a insegurança e timidez essenciais para a tornar credível aos olhos do espectador arrancando com isso uma grande interpretação. E se Tom Hanks está ao nível superior a que já nos habituou, que dizer de Christopher Walken? Walken é simplesmente fabuloso e contribui para o elevar da dimensão do filme. O seu olhar parece reter uma felicidade que ludibria e foge ao lugar comum que o drama vivido pela sua personagem poderia supor e demonstra ser um daqueles casos típicos de grande capacidade interpretativa aliada às invulgares qualidades como ser individual, como ser humano. Walken, com a sua interpretação, simplesmente arrasa.
     
      Em suma, «Catch Me If You Can» não se esvai na enorme expectativa com que era esperado e justifica-a por inteiro. O grande cinema tem novamente lugar pela mão de Spielberg e a comédia capta com rigor as nuances daquele que na verdade foi o drama de um adolescente perdido na vida e da sociedade institucionalizada que durante vários anos contrariada o amparou. Porque para além de explorada nas suas fraquezas acabou convencida pelo brilhantismo de quem com argúcia a usou. E residiu igualmente neste facto a humanidade latente no filme permitida pela sensibilidade extrema de um realizador de eleição. Para além disso, longe de se limitar à transposição para a tela de uma história notável, Spielberg evocou modelos de concepção da época em causa atribuindo-lhes sofisticação e a sua marca pessoal. Resultado? Um filme brilhante e uma homenagem ao cinema e às comédias dos anos 60/70.

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