terça-feira, 12 de outubro de 2010

AS HORAS




      HISTÓRIAS DA VIDA, DE DRAMA, DE MULHERES
     
      Há um facto desde logo a assinalar nesta imponente obra cinematográfica: a complexidade da sua estrutura conceptual e a importante vertente da dimensão psicológica e existencialista inserida na narrativa. Esta é, quero acreditar, uma das mais sofisticadas incursões do cinema no mundo da literatura dos últimos anos. E isto, ainda que essa incursão se tenha verificado por simples via da adaptação cinematográfica de uma obra literária. Mas devido à densidade cerebral dessa mesma obra, que aborda elementos dramáticos ligados à condição humana quer seja de um modo específico ou mais generalizado relativamente às mulheres, é inegável o poder que o melodrama exerce sobre o espectador.
     
      O filme resulta da muito competente realização de Stephen Daldry a partir do livro “As Horas”, escrito por Michael Cunningham. Do escritor pode dizer-se que ganhou o importante prémio Pulitzer, em 1999, e do realizador apenas realçar a confirmação de um talento que já se havia perscrutado em 2000 com o seu «Billy Elliot», trabalho que já então lhe valera uma nomeação para o Oscar. Para que se perceba o que está na génese do filme, isto é, qual é a essência maior do labiríntico enredo que ele nos apresenta, há que focar um ou dois aspectos da obra literária em que se baseia. Assim, é importante referir-se que Cunningham prestou, no seu livro «As Horas», um valioso tributo à escritora Virginia Woolf. Não só pelo modo como interligou a personagem de um seu livro - «Mrs. Dalloway» - com as diversas personagens que em referência povoam agora o filme de Daldry, mas, sobretudo, pela dignidade da evidência que fez das circunstâncias trágicas que rodearam o final da vida da escritora. Talvez valha a pena referir ainda uma questão especulativa e recorrente sempre que se fala do invulgar génio de um artista: a de procurar saber de que modo a infelicidade dos efémeros percursos de vida marca a obra que sobre eles perdurará e será legada ao mundo. O filme também aborda, embora subliminarmente, essa questão.
     
      Existem três personagens nucleares na trama, todas elas mulheres, todas elas vivendo em épocas distintas, todas elas marcadas pelo drama e pela infelicidade das suas existências. E, já agora, repita-se, também marcadas por um livro. Uma (sobre)vive nos subúrbios de Londres algures no ano de 1920: ela é Virginia Woolf (Nicole Kidman), uma escritora a braços com a sua obra “Mrs. Dalloway” e com uma depressão que lhe consome as entranhas. Outra habita um bairro residencial de Los Angeles, no pós 2ª guerra mundial. O seu nome é Laura Brown (Julliane Moore) e trata-se de uma simples dona de casa que lê a obra referida. Mas essa leitura faz com que as feridas que a incomodam passem a chagas que a dilaceram e acabam por provocar um desejo incontrolável de promover urgentes alterações na sua vida. Já em plena época actual, em Nova Iorque, Clarissa Vaughan (Meryl Streep), carinhosamente alcunhada de Mrs. Dalloway pelo seu amigo e reprimido amor de quase sempre, Richard (Ed Harris), um poeta, vive o drama deste que por sua vez mais não faz que esperar a morte. Ele é igualmente um doente com Sida, justamente em estado terminal.
     
      Existe, como já amplamente referido, algo que interliga estas três mulheres. Mais se perceberá existir lá mais para o final do filme, mas esse algo agora aludido tem que ver com o livro «Mrs. Dalloway». Para além disso, o elemento lésbico é comum às três mulheres, todas elas travam uma dolorosa luta contra a depressão – a sua ou de alguém próximo – e, angustiadas, conviverão com a morte. De novo a sua ou a de alguém próximo. No fundo, é como se se debatessem nas ondas de um imenso oceano de infortúnio. Tudo isto obriga ao reconhecimento pela extrema competência com que Daldry accionou para a causa cinematográfica um livro que muitos reputavam de adaptação impossível. O modo introspectivo da narrativa, a perfeita recriação das diferentes épocas e o jeito cuidado mas nunca reverencial com que o cinema trabalha a palavra, são todos eles pormenores definidores da grandeza da realização de Daldry. Pena é o surgimento de algumas personagens secundárias que prometem no início da sua apresentação na trama nela vir a encarnar alguma importância, mas que depois se esvaem sem quase nada, ou muito pouco, sabermos sobre si.
     
      Fale-se agora de interpretações, algumas delas brilhantes. A começar por uma irreconhecível Nicole Kidman, devido à soberba maquilhagem a que se sujeitou. No entanto, nunca o olhar de Nicole se revestiu de tanta tristeza, nunca os seus gestos foram tão dolorosos e pesados. Como se carregasse sobre si o peso do mundo. Nicole foi, em boa verdade, o símbolo maior do drama que rasga todo o filme. E isto apesar de se encontrar muito bem secundada por Meryl Streep, ela uma mulher que contrapõe a sua força à fraqueza dos que o rodeiam, e por Ed Harris, um poeta que abraça a morte lá desde o alto de uma janela, a sua, virada para o vazio. Já Julliane Moore faz gala em provar que é hoje uma actriz de corpo inteiro capaz de registos tão díspares como o de dona de casa infeliz, que aqui protagoniza, ou o de Clarice Sterling, que protagonizou em «Hannibal».
     
      «As Horas» é um filme que privilegia uma certa atmosfera de desencanto e tristeza, dir-se-á. Mas, perscrutando um pouco no seu interior, talvez se descubra que ele é sobretudo composto de muita demonstração de coragem. Mesmo quando a única via que resta para exercer essa coragem seja a de se assumir a capacidade de desistir.

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