terça-feira, 12 de outubro de 2010

CAMINHO PARA PERDIÇÃO




      CHICAGO, 1931: A MORTE COMO SOLUÇÃO PARA A VIDA
     
      Sam Mendes realizou, em 1999, «American Beauty». A película foi estrondosamente recebida pelo público de todo o mundo, também pela crítica, e foi igualmente um sucesso na atribuição dos Oscars pela Academia de Hollywood. Independentemente de outras virtudes que inegavelmente contribuíram para esse êxito, «American Beauty» espantou pela sua narrativa em forma de crítica mordaz sem no entanto ser amarga. O filme era (é), embora disfarçado de comédia, uma inteligente e arguta análise da sociedade americana. Essa foi a história que nos foi contada no cinema pela mão do realizador britânico que vinha do teatro e que provou, talvez por isso mesmo, uma especial propensão para dirigir actores. Assim sendo, aprovado como contador de histórias, a Mendes restava efectuar mais um teste proposto por si mesmo: provar que também é um grande cineasta. Nesta linha de raciocínio, surge «Road to Perdition». E no âmbito do objectivo que perseguia, «Road to Perdition» não só demonstra mais uma vez a argúcia do realizador como se revela um objecto absolutamente inatacável como exercício de cinema. Tecnicamente elaborado e deslumbrante visualmente, o filme diz-nos aquilo que muitos já suspeitavam: Sam Mendes é um grande cineasta.
     
      Viajando através do tempo, Sam Mendes recua décadas atrás para se situar no ano de 1931. Nos EUA vive-se então o período da Depressão Económica, de barbárie social cujos meandros se assemelham a uma espécie de selva humana. Numa época em que vigoravam leis como a que ficou conhecida como a Lei Seca, em que a corrupção se assemelhava a uma instituição estabelecida, floresciam os grupos de “gangsters” que dominavam o mercado negro. Eram os tempos de Al Capone e de Nitti e dos conflitos que vigoravam no seio destes grupos, grupos disciplinados por comportamentos subordinados em única instância à honra e à lealdade entre os seus membros. E quando os desvios aconteciam tudo se resumia a uma estranha sacralidade desde o ponto de vista da morte. Ou seja, vivia-se uma época em que as dívidas insolúveis se pagavam com a morte do desgraçado em dívida. Ela, a morte, saldaria todas as contas e apaziguaria as almas em desassossego. Mas, estranhamente, havia também um conceito nobre da instituição familiar, como se esta funcionasse como resgate emocional para estes impiedosos “gangsters” e os acalmasse interiormente pelo mal praticado. E tudo isto está em «Road to Perdition», o novo filme de Sam Mendes. Mas não só. A ambiência do filme é sombria, fatalista. E enquanto Mendes filma as ruas e nos leva numa viagem até Chicago, ouvem-se tiros e chove intensamente. Na nossa viagem, sentados no escuro, olhamos as caras dos mortos, o esgar da dor que antecedeu a morte, o seu olhar vidrado a denotar a perplexidade que adivinhava essa mesma morte. Já a história, essa, ao contrário do que se poderia esperar, é aqui algo secundária, serve sobretudo de passaporte para entrarmos naquele mundo. No mundo do filme negro rigorosamente interpretado pelo cineasta britânico.
     
      Mas, ainda assim, Perdition (que simboliza a narrativa) tem um relevante peso na estrutura do filme e constitui-se como suporte para a acção dramática deste no seu todo. Porque é para evitar que o seu filho Michael (Tyler Hoechlin) tome o mesmo caminho que anos antes ele mesmo tomara, o caminho da perdição, que o “anjo da morte” Michael Sullivan (Tom Hanks), enfrenta num desafio capital aquele que desde quase sempre fizera de seu pai e em nome do qual matava sem pestanejar. E talvez o pequeno Michael, no final, possa conseguir lançar-se à estrada para Perdition em sentido inverso, como que num retorno à condição que afinal nunca abandonara. Até lá, os dois homens em confronto, Michael Sullivan e John Rooney (Paul Newman), mais não fazem que defender os seus próprios filhos. Mendes, realce-se, joga então mais uma vez as suas peças num tabuleiro de sentimentos contraditórios provocados pela traição e pela perda. O amor confunde-se com o ódio, a lealdade mudou de significado e tornou-se numa questão de sobrevivência, e a morte de uns – novamente a morte – surge como único caminho para prosseguir a vida de outros.
     
      Apesar de ser um filme de exaltação assumida das suas características formais, pelo que atrás se escreveu percebe-se no entanto que «Road to Perdition» suporta ainda uma relevante história de vida e morte, de amor e ódio. E se chega a perder alguma consistência em termos de credibilidade dos factos – o que acontece efectivamente em uma ou duas situações, e que se revela como única fraqueza do filme e potencial alvo de ataques à sua concepção – a verdade é que é uma história que se compensa a si mesma na emoção da relação do pai com o filho ou na ambiguidade de sentimentos entre a personagem de Tom Hanks e a de Paul Newman. E como qualquer bom filme que se preze, não falta a personagem fascinante pela sua invulgar composição e as prestações interpretativas de grande nível. Em consideração a isso mesmo, que dizer de um excêntrico e pérfido fotógrafo de cadáveres que trabalha ainda como assassino a soldo? E da espantosa, embora algo fugaz, presença do cada vez mais actor Jude Law a corporizar esse ser desprezível? Fale-se também da extraordinária conjugação da actual condição física de um homem aos 77 anos, homem esse que é um colosso do cinema, com o papel que lhe foi dado a representar. Esse homem, Paul Newman, merece que esta sua prestação em «Road to Perdition» possa ficar imortalizada por algo mais que o próprio filme. Quanto a «Road to Perdition», o filme, é sem dúvida alguma um relevante objecto fílmico. E é claro que não se trata de um filme inovador ou sequer surpreendente. Mas como poderia sê-lo se este é um filme que se respeita a si mesmo respeitando o passado do próprio cinema e do género que evoca?

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