terça-feira, 12 de outubro de 2010

A CASA DA FELICIDADE

      

     








A SOCIEDADE E A SUA PRÓPRIA DECREPITUDE MORAL
     
      O homem é um ser social, sabemo-lo. Mas também sabemos que ao longo dos séculos se foram traçando regras hipócritas para a vida em sociedade que mais não visam do que condicionar condutas, estabelecer juízos de valor erróneos sobre o que está certo ou está errado. Apreciações inibidoras e completamente autistas daquilo que pode fazer a felicidade de cada um, surdas a essa mesma busca de felicidade. Com isso se criaram as condições ideais para o aparecimento do cinismo hipócrita protegido por uma fachada falsa, do apontar de dedo a quem ousa afrontar esses valores, manipular factos e lançar a calúnia sobre esses mesmos "marginais", procurar que se envolvam numa vergonha que deveria ser a sua. É disso que trata este «A Casa Da Felicidade».
     
      Lily Bart rege-se pelos valores da sociedade do seu tempo. Bela e recentemente órfã na alta sociedade do início do séc. XX, precisa encontrar um marido que lhe dê a ambicionada ascensão social. O homem que ama não pode fazê-lo, não é suficientemente rico e não abdica daquilo que estabeleceu para a seu próprio quotidiano, para si como futuro. Lily, dada a sua condição, é um alvo desejável e fácil, age com ingenuidade perante as atitudes alheias, recusa-se a participar nos "jogos" que lhe pretendem impingir, torna-se alvo a abater e alibi inocente para certas leviandades, mantém a sua conduta honrada ainda que só ela disso se aperceba, cai em desgraça aos olhos dos que consigo convivem, é deserdada, marginalizada pela mesma sociedade à qual antes se rendera, passa humilhações, fome, adoece, paga uma última dívida. Recusa-se à rendição, escolhe o caminho que sente ser o da salvação da sua própria dignidade, Lily Bart suicida-se.
     
      «A Casa Da Felicidade» é um filme muito mais violento que aquilo que nos permitimos imaginar. Apesar do seu início muito pouco atractivo, algo monótono como os meandros da sociedade que vai descrevendo, acaba por se transfigurar com o descambar trágico do decurso de vida da sua protagonista. Belo e sintomático para esse virar de rumo, é a poética chuvada que se abate sobre o belo palacete que Lily deixa deserto enquanto viaja em cruzeiro pela Europa. Como se a intensa água que dos céus brota apagasse quaisquer sinais de felicidade que a casa e os seu jardins outrora tivessem testemunhado, como se o seu próprio ruído abafasse a recordação de risos ecoando em dias passados. Gillian Anderson corporiza Lily de uma forma muito sedutora até na tristeza presa no esboço ténue dos lábios tentando sorrir, na amargura molhada do seu olhar magoado. É bem secundada por Terry Kinney na interpretação. Outro dos destaques deste filme com argumento adaptado de um romance de Edith Wharton reside exactamente na actualidade que se mantém de um livro publicado precisamente na época em que decorre a narrativa, 1905.
     
      O homem é um ser social, sabemo-lo. Mas também sabemos como essa mesma sociedade criada por si se pode tornar absolutamente cruel absolvida sempre pela salvaguarda dos bons costumes, preocupada irremediavelmente com "o outro" e esquecidos de nós mesmos. Lily Bart suicidou-se por teimar em preservar os seus próprios valores, por acreditar nos verdadeiros valores. Mas para aqueles que um dia foram os seus pares Lily não era mais que uma ovelha transviada, que alguém associada a perdição, uma desgraçada.
     
      Foi em Nova Iorque, 1907, podia ter sido nos dias de hoje. Terence Davis conseguiu transmitir-nos essa mensagem.


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