terça-feira, 12 de outubro de 2010

CIDADE DE DEUS




 

      BRASIL PROIBIDO
     
      «Cidade de Deus» era uma das mais aguardadas estreias do ano em Portugal. E não era de mais a ansiedade pela espera, já que o filme obtivera um espantoso êxito de público no seu país de origem e de crítica por todas as partes do mundo onde tem sido exibido. Realizado por Fernando Meirelles, que teve para tal a colaboração de Kátia Lund, nos seus créditos surge ainda um dos nomes mais importantes do cinema brasileiro, o de Walter Salles (realizador de «Central do Brasil») como co-produtor. A priori, algumas das principais fontes de interesse do filme tinham que ver com a curiosidade de se perceber de que forma é que o argumento adaptado do livro de Paulo Lins resumiria uma história onde coabitam várias centenas de personagens e que precisou de seiscentas páginas para ser contada, e, por sua vez, saber como a realização resolveria o complicado esquema de uma estrutura que assenta em três épocas distintas sendo que cada uma delas é marcada por componentes dramáticas muito próprias. Posto isto, o que se pode assinalar desde logo é a competência de Bráulio Mantovani, argumentista do filme, referir igualmente o excelente trabalho de toda a equipa de Meirelles e confirmar que o filme de modo algum defrauda as enormes expectativas com que era aguardado.
     
      A película propõe-se contar-nos a evolução da delinquência num dos mais violentos e caóticos subúrbios do Rio de Janeiro. Esse bairro, conhecido como Cidade de Deus, foi criado para realojamento de desalojados de uma das maiores cheias de sempre no Rio de Janeiro. Mas narrar a evolução do crime no seu âmago é, de algum modo, descrever as circunstâncias violentas em que decorre o dia-a-dia de muitos brasileiros que vivem nas tristemente célebres favelas. Daí que a violência que o filme faz questão de exibir, assim como a corrupção generalizada, o calão e a crueldade verbal debitada pelas suas personagens, não são mais que um retrato bárbaro mas genuíno da realidade daquele epicentro geográfico e social. No entanto, a narrativa aborda ainda questões como o amor, a amizade, o sonho e a desilusão. Porquê? Simplesmente porque essas são também vertentes existenciais ligadas à vida dos cidadãos da Cidade de Deus. E é sobre estes, sobre os habitantes da Cidade de Deus, que o filme se debruça. Porque aqueles que são mostrados a manusearem armas e a matarem com a facilidade de quem dispara e tira uma vida a um semelhante simplesmente porque esse que agora jaze morto os irritava, são filhos da Cidade de Deus. Como, aliás, brilhantemente Meirelles nos mostra no seu filme.
     
      A narrativa segue a descrição de Buscapé (Alexandre Rodrigues). Está-se primeiramente em finais dos anos sessenta e Buscapé é um menino que testemunha os roubos e lutas em que os seus amigos se envolvem. Mas ele tinha apenas dois desejos: não seguir aquela vida de morte e, como tal, sem futuro – porque humildemente se sabia um menino pouco corajoso – e tornar-se um dia fotógrafo. Dadinho (Douglas Silva) é o seu oposto. O seu desejo é tornar-se no maior criminoso do subúrbio. Naquela época, o crime é ainda rudimentar na Cidade de Deus e é Cabeleira (Johnathan Haagensen) quem o controla. É também Cabeleira quem permite a Dadinho cometer o seu primeiro assassínio. O enredo detém-se então nos anos setenta, onde Dadinho possui já o seu próprio bando de rufias e se mostra cada vez mais um criminoso sem regras e um desapiedado assassino. Entretanto, o mote do crime evoluíra para o muito rentável tráfico de droga. Finalmente, já em princípios dos anos oitenta, Dadinho é já conhecido como o terrível Zé Pequeno (protagonizado por Leandro Firmino da Hora) e domina quase toda a favela deixando apenas uma pequena parte a Cenoura (Matheus Nachtergaele). Era o concretizar do seu sonho de sempre. No entanto, tudo se complica quando Mané Galinha (Seu Jorge) se junta a Cenoura para se vingar de Zé Pequeno e o caos se instala definitivamente na Cidade de Deus com a guerra entre bandos. Nessa altura, e quase por acaso, Buscapé logra alcançar também ele o seu sonho de sempre: tornar-se fotógrafo.
     
      Tal como se observa, é de alguma complexidade a transposição em filme de uma trama vasta e ramificada onde as próprias características de miséria do mundo que o filme aborda não ajudam à descodificação de personagens e épocas. E é aí que mais se evidencia o excelente trabalho da realização, dado que cada uma das épocas tem um tratamento fotográfico distinto e que está patente nas várias tonalidades da imagem. Noutras variantes técnicas e conceptuais, são igualmente óbvias as acertadas opções de Meirelles. Desde a narrativa convencional atribuída à época de sessenta, passando pela anarquia e espalhafato de uma época de alucinação como foi a época de setenta, até se concretizar no caos absoluto de uma guerra sem tréguas travada entre os bandos nos princípios de oitenta e muito adequadamente captada de câmara na mão. Há pois no filme todo um trabalho estético e de montagem que tende a separar cada um dos momentos temporais da narrativa, ajudando a uma melhor localização do espectador relativamente ao enredo que procura seguir sem que alguma vez corra o risco de se perder na sua enorme complexidade.
     
      Apesar de toda a polémica surgida no Brasil, onde o filme e os seus autores são acusados de se terem usado da Cidade de Deus e das débeis condições de vida nela existentes para usufruto próprio sem que isso resultasse numa qualquer mais valia para quem vive naquele subúrbio do Rio de Janeiro, não me parece que essa seja uma acusação justa. Em muitos casos o cinema deve assumir o seu importante papel de denúncia e fá-lo aqui em «Cidade de Deus». Mas não pode substituir-se a quem tem a obrigação de actuar. Funciona, isso sim, como uma forma de pressão sobre a opinião pública, o restante já não lhe compete. Por outro lado, apesar de até no elenco quase todo ele estreante em cinema (lembre-se que só o grande actor do cinema brasileiro Matheus Nachtergaele - o Cenoura, é figura conhecida) se perceber que Fernando Meirelles quis atribuir ao filme um vincado carácter realista e pleno de genuinidade, é cinema para o grande público o que constatamos ter sido alcançado. Repare-se, inclusive, que as grandes referências do cinema de Meirelles em «Cidade de Deus» serão Martin Scorsese no que concerne à arte e à técnica, Quentin Tarantino no que se refere ao arrojo cinematográfico, e Guy Ritchie na forma do sentido de humor. Em todo o caso, este é um grande filme. E, talvez não por acaso, um filme brasileiro.

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