quarta-feira, 13 de outubro de 2010

CORAÇÕES NA ATLÂNTIDA


     




MEMÓRIAS DAQUELE VERÃO DE 1960
     
      O cinema é, sobretudo, uma máquina de sonhos. Nessa perspectiva, cinema é a projecção de um futuro imaginário, é um estratagema de amparo para o presente, é fórmula de revisitação de um passado que sobrevive na nossa saudade. «Corações na Atlântida», inscreve-se precisamente nessa faceta tão nostálgica, tão impregnada de emoção, que se consubstancia naqueles acontecimentos inesperados e repentinos que nos obrigam a voltar atrás nos anos, retornar às lembranças mais fortes de tempos em que o tempo que sobre eles passou não experimentou varrer da nossa memória. O realizador australiano Scott Hicks («Shine», de 1996 e «A Neve Caindo Sobre os Cedros», 1999), adaptando parcialmente uma novela de Stephen King, filma nesta sua obra o regresso a um determinado verão na infância de Bobby Garfield (David Morse) de forma muito pouco ambiciosa , é certo, mas também nunca descurando uma extremada sensibilidade narrativa e luminosa beleza visual.
     
      Bobby Garfield é um fotógrafo de 50 anos que um dia recebe uma encomenda especial e a notícia da morte de Sully, um seu amigo de infância. Esse acontecimento triste e a ida ao funeral, são o pretexto para que Bobby relembre um particular verão na sua vida: o verão em que conheceu alguém muito especial e que viria a revelar-se determinante para a forma como Bobby passaria a encarar a vida a partir daí.
     
      Como pode constatar-se, a história desenvolve-se em “flash-back”. Está-se em 1960, Bobby é agora um menino de onze anos (excelentemente protagonizado por Anton Yelchin), já então órfão de pai, que vive com a mãe numa pequena cidade da Nova Inglaterra. A chegada de Ted Brautigan (Anthony Hopkins), um homem estranho e em fuga com poderes de “médium”, vem alterar a existência do pequeno rapaz. Hicks capta com rigor o fascínio de uma criança de um interior pictórico confrontada com alguém muito mais velho, portador de um discurso diferente do habitual no seu limitado universo. Nasce da relação entre ambos uma interessante cumplicidade que convive bem com os dois pequenos amigos de Bobby, Sully e Carol, mas que entra em choque com a mãe, uma mulher egocêntrica e amargurada com uma visão algo distorcida das prioridades na sua vida.
     
      No entanto, Scot Hicks não evita um problema nas suas opções de realização. Ele reside no pouco alcance da essência da sua estrutura narrativa. E sente-se que existia suporte criativo para que existisse essa capacidade. Hicks limita-se a contar uma história sobre factos que alteram a vida de alguém mas sem conseguir dar a tal dimensão filosófica, quedando-se simplesmente na afectividade das personagens. Por exemplo, a personagem corporizada por Hopkins, cuja interpretação me pareceu algo apagada, transporta em si uma intenção de complexidade psicológica que jamais se concretiza no filme. Não são igualmente exploradas as razões porque se mantém em fuga. E porque as coisas decorrem de forma demasiado plana, falta chama ao filme.
     
      Mas, ainda assim, «Corações na Atlântida» é um filme que nos transporta até às nossas próprias recordações. E porque cinema também é isto, há algo em nós que nos leva a admitir, mesmo sabendo que ao fazê-lo estaremos a desviar-nos do fio condutor do filme , que aquele homem que Bobby relembra pode afinal ser a idealizada personificação dos motivos de viragem para a tristeza com que conviveu até então. Que o estranho homem pode ser apenas aquela imagem a que as crianças se agarram nos sonhos com que procuram afastar de si os piores pesadelos. Talvez Bobby quisesse acreditar que o pai não era o homem falhado que a mãe lhe descrevia. Talvez o menino buscasse novas motivações para um desejada alteração na sua vida. Bobby era miúdo e sonhava, nós também sonhámos quando miúdos. E quem sabe ainda conservamos em nós esses sonhos. Alguém pode levar-lhe a mal pelo sonho? Levar-nos a mal por sonharmos?

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