quarta-feira, 13 de outubro de 2010

DOGVILLE

     

     




O CINEMA DE FUSÃO, SEGUNDO LARS VON TRIER
     
      «Dogville», a mais recente obra do cineasta dinamarquês Lars von Trier, chega a Portugal rodeada de enormes expectativas. Facto que se tornou inevitável dada a aceitação de que o filme tem sido alvo por parte da crítica um pouco por todo o mundo onde se estreou. E que dizer desde logo? Confirmar em absoluto que se trata de uma obra corajosa, recheada de ideias, formalmente original e, consequentemente, que se enquadra no experimentalismo cinematográfico que é apanágio do fundador do movimento Dogma 95. No entanto, justifica perguntar-se perante tais evidências: quais são, então, os ganhos para o espectador e, fundamentalmente, existirá verdadeiramente um progresso da arte cinematográfica com as opções tomadas por von Trier nesta sua realização? Será que o rompimento aqui experimentado com as estruturas clássicas do drama (e do ‘thriller’) se consubstancia numa efectiva renovação da matéria que constitui o cinema tal qual o amamos e aprendemos a respeitar? Verdadeiramente, não o creio. Temo que «Dogville» se assemelhe antes a uma rampa formalista que desemboca num vazio tremendo. Que «Dogville» se tenha materializado num simples e inconsequente exercício formal que a espaços se revela mesmo penoso de seguir. Mas para nos valer nesses momentos, o filme oferece-nos o seu maior trunfo: o trabalho irrepreensível, sublime mesmo, de uma actriz de corpo inteiro: Nicole Kidman.
     
      A acção decorre toda ela num estúdio algures na Suécia. A suposta cidade onde o enredo se desenvolve não passa de um emaranhado de tracejados no solo a giz branco. Estamos, desse modo, na pequena cidade de Dogville, um lugarejo de pouco mais que uma dúzia de habitantes algures nas Montanhas Rochosas. Ali chegada por um caminho de montanha, Grace (Kidman) é uma mulher jovem e bela que foge de um perigoso bando de ‘gangsters’. Com a ajuda de Tom (Paul Bettany), um filósofo de pacotilha e aspirante a escritor, ela chega a acordo para que a população a esconda no seu seio em troca de pequenos trabalhos por si efectuados. Das dificuldades iniciais, inclusive em arranjar tarefas para cumprir, Grace caminha para momentos de grande afectividade com os locais até que chega ao conhecimento destes que é procurada pela lei. É então que Grace conhece uma faceta até aí escondida pelos habitantes de Dogville já que estes lhe apresentam uma nova e bem desagradável noção de ajuda ao próximo. Assim, sobre a foragida são praticadas as maiores sevícias. Mas no capítulo final – esclareça-se que o filme está dividido em um prólogo e nove capítulos – Grace não deixará de também ela surpreender a cidade (pretensamente) encrostada nas Montanhas Rochosas.
     
      Lars von Trier afirmou em entrevista querer fazer neste seu filme uma junção entre o cinema, o teatro e a literatura. Não satisfeito com essa já de si ambiciosa pretensão, o realizador entendeu este seu projecto como o cinema do futuro e atribuiu-lhe mesmo uma designação: cinema de fusão. Não está em causa a aspiração – que é legítima – de von Trier. E é também o próprio que defende que os artistas quando se tornam importantes esquecem as causas, sendo assim bastante agradável verificar-se que ainda existem realizadores que correm atrás de um ideal. As minhas dúvidas prendem-se, isso sim, sobre qual é afinal a causa real que faz correr Lars von Trier. Porque toda a ‘mise en scène’ de «Dogville» está trabalhada de acordo com as regras do teatro e jamais com o cinema. Quer no espaço físico delineado para a narrativa, quer na matéria-prima que lhe deu corpo. Pode alegar-se, efectivamente, que os objectivos desta sua opção visam canalizar o espectador para o essencial da análise que pretende efectuar sobre as recônditas essências do ser humano. Mas tal não salva o cineasta da acusação de desvirtuamento de um conceito de cinema que é tido como universal. Até porque falta ao filme a essência mágica que é apanágio do estatuto artístico do cinema sem que haja nele valores acrescentados pelo teatro – porque não existe o contacto real do espectador com o actor no palco, ou pela literatura – porque os processos de relacionamento são diferentes: num livro o leitor pára para melhor sentir as fragrâncias daquilo que lê, folheia e volta atrás na sua leitura; o cinema não lho permite, é imagem em movimento.
     
      Nesta viagem estática de mais de duas horas, e para além das características formais enunciadas, há um factor que se destaca da narrativa pela sua importância denunciadora. Tem que ver com todo um esquematismo, diria quase matemático, que conduz inexoravelmente o espectador até ao texto tornando-o desse modo de uma importância fulcral. Pena é perceber-se que mais que ao serviço da trama esse mesmo texto funciona como mera representação das ideias de von Trier. Ou seja, serve unicamente para apresentar a sua visão pessimista da humanidade, com as suas muito peculiares noções de existência e dignidade humana e ainda com um gosto quase sádico pela provocação. Para além disso, detecta-se em «Dogville» todo um movimento orbital que gira em torno de um eixo sendo que esse eixo é ele mesmo, Lars von Trier.
     
      Depois de um filme belíssimo como «Dancer in the Dark», com que o realizador nos brindou no ano 2000, o sentimento que «Dogville» mais me suscita é o de desilusão. De realçar no entanto que apesar da forma violenta e chocante como o filme termina, é precisamente no último capítulo – o 9º segundo a estrutura em que está dividido – que ganha maior realce o exercício racional efectuado. Isto pelas conclusões a que chega, pese embora a improbabilidade dos elementos que a equação apresenta ao longo do filme e a ela adicionados para que dê semelhante resultado. Com a agravante do calvário que é o caminho percorrido até se chegar a esse ponto. E, sem qualquer espécie de sarcasmo, é no genérico final e na música que o acompanha que está um dos raros bons momentos da fita se dela retirarmos o precioso desempenho de Nicole Kidman. Um desfecho que acaba por ser irónico. Também porque, para lá poder chegar, apela ao estoicismo do espectador menos adepto de um típico produto que vale sobretudo como amostragem do projecto pessoal de um cineasta.

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