terça-feira, 12 de outubro de 2010

DEUS SABE QUANTO AMEI






      UMA JANELA ABERTA SOBRE OUTRAS VIDAS, OUTROS TEMPOS
     
      «Deus Sabe Quanto Amei» inicia-se de forma a conquistar-nos de imediato pela grandeza romanesca que faz questão de desde logo assumir. Terminada a sua carreira no exército americano, o militar Dave Hirsh (Frank Sinatra) regressa à sua terra natal. Regressa a Madison, uma pequena cidade do estado de Indiana. Mas Dave, que é igualmente um escritor zangado consigo mesmo pelo insucesso dos seus dois primeiros livros, não empreendeu voluntariamente esse regresso. Após mais uma noite de copos, revelando entretanto as suas origens aos demais convivas, Dave acaba com destino marcado numa longa viagem de autocarro e a um passado a que não queria voltar. Baseado num livro do escritor James Jones, não se pense no entanto que «Deus Sabe Quanto Amei» é a reprodução fidedigna da obra literária. Não. Produção de 1958, até nesse particular o filme reflecte a sua época, uma época em que os produtores tinham uma influência marcante nas opções conceptuais dos filmes que produziam, uma circunstância aliás de que até mesmo alguns actores de renome poderiam ser acusados. Tal como terá acontecido, a acreditar nas declarações da própria Shirley MacLaine, no caso desta película com Frank Sinatra e com a distinção de finais entre filme e livro.
     
      Melodrama realizado por Vincente Minnelli, que, curiosamente, tem sido acusado por muitos de alguma incapacidade em adaptações literárias ao cinema sendo um cineasta de méritos muito mais reconhecidos no domínio das comédias musicais, o filme é todo ele um emocionante legado cultural que nos fica da sua época. Oscilando sempre na ambiguidade vivencial da sua personagem nuclear, invariavelmente dividida entre as origens sociais mais elevadas da sua família e a modéstia daqueles que caracterizam as amizades que vai travando nos bares que frequenta, a narrativa incide precisamente nos conflitos racionais e emocionais que a partir daí vão surgindo em Dave, obrigando-o a observar com um outro olhar o que o rodeia mais intimamente. E esse outro olhar sobre o que o rodeia, significa personificá-lo em Ginny (Shirley MacLaine), uma jovem mulher que se afastara do dia e caíra enlevada na intensidade da noite. Mas uma mulher de cândida ingenuidade, de arrebatadora sinceridade comportamental.
     
      Em Minnelli, uma antigo decorador e figurinista, também neste filme se percebem as suas obstinações plásticas e de cor, desculpando-se inclusivamente uma ou outra cena em que se torna de objectivos demasiadamente óbvios a opção de enfatizar esses mesmos aspectos formais. O filme é também exemplar noutros capítulos técnicos, nomeadamente a eficaz e acutilante utilização do cinemascope. Mas, neste seu filme, dada a autoridade do retrato sociocultural, parece-me importante destacar exactamente algumas especificidades culturais de uma época situada em finais dos anos cinquenta que agora, na nossa época, ganham um outro relevo e transmitem nova dimensão ao filme. Por exemplo, no distanciamento que então existia entre os jovens e os menos jovens, consubstanciado na relação de Dave com a sua sobrinha Dawn (Betty Lou Keim) ou com o namorado desta (o encontro de Dave com este, no bar, é bem denunciador dessa distância). Hoje existe uma maior identidade entre as duas faixas etárias. Ou, por outro lado, no processo de então de aproximação romântica entre um casal. Veja-se como Dave procura ganhar o coração da mulher que acreditava amar, a Professora Gwen French (Martha Hyer) e a forma desta reagir: ele roça a arrogância, seguro, determinado, funcionando como líder e demonstrando dominar o terreno que pisava. Ela, expectante, aceitando pacificamente o papel que lhe está ali reservado, salvaguardando com isso, inclusive, o seu estatuto e condição de mulher digna. E é também numa perspectiva de aparente menor relevância social da mulher relativamente ao homem, que se torna verosímil a personagem (tão bem) defendida por Shirley MacLaine. Hoje, na sociedade actual, até mesmo em simples criação artística tudo isto se alterou e determinados comportamentos de então, a serem assumidos hoje, poderiam até ser tidos como ridículos. Mas olhá-los a esta distância, devidamente enquadrados no seu tempo, eles servem não só para nos ajudar a perceber quem fomos, quem somos e, talvez, quem queremos nós vir a ser, como também exercem sobre nós um fascínio criado pela nostalgia que se pressente pelo reviver de outras vidas, de outras épocas.
     
      Mas o filme não vale apenas enquanto retrato cultural ou social ou prova de competência técnica de um realizador. É uma obra que se mantém extremamente actualizada em muitos aspectos da sua criação, ou da filosofia de vida que adopta. Dois exemplos simples mas que creio bem representativos do que afirmo. O primeiro: quando o Prof. Robert French (Larry Gates), pai de Gwen, mostra um dos quadros que possui em sua casa a David revelando o nome do pintor, esclarecendo logo em seguida, com refinado humor, que nada sabe sobre a obra desse pintor mas que costuma causar sempre muito boa impressão sempre que pronuncia o seu nome. Infelizmente, e acuso mesmo como minha esta perspectiva pessimista, não nos serve muitas vezes a arte unicamente como veículo para que possamos impressionar o próximo? Outro exemplo de infinita actualidade: Dave lê um livro a Ginny mas fica manifestamente incomodado com a incapacidade desta para perceber a história. Mas Ginny responde-lhe na sua enternecedora sinceridade : “Não, não percebi nada do livro, mas gostei. Também não te percebo e gosto tanto de ti.” Independentemente da convincente argumentação para a situação enfrentada por Ginny, é a eterna sedução pelo insondável, pelos mistérios da personalidade que fazem cada um de nós tornar-se mais ou menos cativante segundo o olhar de quem nos observa. É a intemporal e secreta essência do ser humano rigorosamente captada pela câmara de Minnelli.

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