domingo, 31 de outubro de 2010

Diz-me onde é a estrada


[Foto de José Boldt]



Olhei para aquele homem em dificuldades. As roupas largas já muito gastas, rotas, um par de botas, uma castanha e outra preta, o fardo de caixas de papelão cuidadosamente desmanchadas era de um peso incomportável para o seu corpo débil, para a força que nitidamente lhe faltava. Fixou-me o olhar quase em tom de súplica, pude então observar-lhe o rosto de barba comprida e rala, as rugas em redor dos olhos já sem brilho, sem sombra do sonho, olhos de quem espera simplesmente. De quem espera pelo fim com desolada resignação, como se fosse a última etapa que se tem de galgar até completar o que resta do compromisso com a vida.



Cerrei os punhos, trinquei a língua, expulsei de mim os fantasmas, os mesmos de que Pedro Abrunhosa fala na sua canção, e quis pegar no fardo de papel, colocá-lo no porta-bagagens do meu carro e sentar aquela criatura ao meu lado seguindo a estrada na direcção indicada pelo dedo de pele seca e suja em riste. Mas não, senti de novo o olhar parecendo agora agradecido mas sem que a sua boca balbuciasse palavra. Timidamente estendeu-me a mão num cumprimento. Depois, baixou a cabeça, colocou-a ainda mais entre os ombros cansados e virou-me as costas caminhando lentamente na direcção oposta à que trazia.




Saí também eu dali, deixei que o carro regressasse ao risco negro de alcatrão que se estendia até desaparecer ao fundo numa curva sinuosa. Lembrei de novo Abrunhosa e desejei que aquele homem se desviasse da espada, que encontrasse o seu mapa, que descobrisse onde era a estrada, que encontrasse terra à vista. Hoje não chove mas o céu continua cinzento.


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