quarta-feira, 13 de outubro de 2010

ESQUECE TUDO O QUE TE DISSE







      O INVERNO DO DESCONTENTAMENTO (DELES)
     
      A certo momento do filme, quando a família sobre cujos contornos íntimos e dramáticos a narrativa se apoia janta num restaurante, Felizbela (Custódia Galego) pega num microfone e canta de modo apaixonado as palavras “Esquece tudo o que te disse/Leva as promessas que fiz/Manter este amor é pura tolice/O teu coração nunca o quis/O nosso amor não tem futuro/Já não o queres na velhice”, a ambiência lembra David Lynch, o envolvimento emocional revela o desespero à flor da pele de quem ama e não é correspondido, mas as palavras docemente pronunciadas remetem-nos para o que de mais importante tem este filme: as suas personagens. E estas estão delineadas com uma componente muito forte do portuguesismo que ainda subsiste como herança do passado. Um portuguesismo que então cheira a mar, cheira ao Inverno que se vive, mas um portuguesismo cujas fragrâncias são originariamente bem interiores. Provêm da serra, de Braga, daqui e dali, mas deram as mãos em Coimbra. Coimbra a cidade do sonho e da nostalgia por excelência, a cidade onde o filho de um pastor feito doutor pôde desposar a filha de nortenhos abastados e conservadores. Ele é Messias (António Capelo), um dentista desencantado com a vida, ela é a mulher Felizbela, que o ama e sofre por não ser amada. E é notória a poesia que nos atinge a alma captada e libertada pela câmara de António Ferreira, realizador anterior da curta metragem de sucesso «Respirar (debaixo de água)». Ferreira provou, desde já, ser um autor com um forte sentido do genuíno, com valores próprios de quem conhece a sua identidade.
     
      Nesta história de amores perdidos e desencontrados, de recusa ao outro, de inglória luta pelo outro, de um tempo que parece ter parado nas memórias do passado, quase apetece lutar pelas personagens que sofrem ruidosamente na tela. A par de Felizbela e Messias, deambula saudoso da mulher e da terra junto a Coimbra, Tobias(Fernando Taborda). Tobias o pastor. Tobias o homem vítima de um sistema outrora injusto e opressor cuja felicidade logrou um dia escorrer-lhe pelo rosto nas lágrimas vertidas ao olhar o filho, Messias, recém licenciado. E há ainda a sobrinha de Felizbela, Bárbara (Amélia Corõa), jovem revoltada com uma vida que viu fragilizada desde tenra idade pela visão aterradora do pai que não quis sobreviver a um acidente de viação. Já a filha Joana (Cleia Almeida) apenas quer viver a sua vida em conjunto com o namorado punk de apropriada alcunha Pankas (Alexandre Pinto). Mas todas estas vidas se mostram unidas não tanto pelos laços familiares mas sobretudo por um quotidiano monótono em que apenas as contrariedades os parecem fazer sentir a vida. E, encerrados numa grave crise de identidade, só a irremediável dramatização das vidas que vivem poderá libertá-los para a vida que desejam viver.
     
      Servido por um excelente painel de actores, onde contudo se destacam Custódia Galego e Amélia Corõa corporizando duas mulheres de gerações diferentes mas ambas infelizes – uma porque não sabe para onde se dirige e a outra porque lhe está vedado o caminho que pretende percorrer – António Ferreira construiu uma obra de cortante psicologia afectiva inerente às relações entre as pessoas, à terra, e aos sonhos para um modo de vida que alguém não teve a coragem de tomar. Traduzido num estado de espírito ligado a uma certa tristeza existencial, essa opressão sentimental não se traduziu nunca numa visão pessimista da vida por parte de Ferreira mas antes de esperança e redenção. E o que é mais assinalável, é que o jovem realizador português jamais se mostrou refém de barreiras formais como tantas vezes vimos acontecer noutros casos do cinema nacional. E mesmo que se lamente alguma inconstância da narrativa, «Esquece Tudo o Que te Disse» voltará certamente a colocar os portugueses de bem com o seu cinema. E que melhor se poderá dizer do trabalho de um jovem que realiza aqui a sua primeira longa-metragem?

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