quarta-feira, 13 de outubro de 2010

GANGS DE NOVA IORQUE

        

     








A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE SCORSESE
     
      Martin Scorsese regressa a um local de onde jamais pretendeu ausentar-se: a sua eterna Nova Iorque. Desta vez, e citando apenas obra feita que não pode omitir-se, o mestre que nos doou filmes como «Táxi Driver» (1976) ou «Touro Enraivecido« (1980), mergulhou nas profundezas históricas da grande metrópole e, porque é disso mesmo que se trata, nas raízes de toda a sociedade norte-americana. Curiosamente, a Nova Iorque de meados do séc. XIX aqui representada, seria recriada com rigor histórico num espaço físico bem longe da ilha que a alberga e onde outrora se ergueu o bairro de Five Points, local privilegiado de todas as convulsões deste épico dramático: nos famosos estúdios da Cinecittà, em Roma. E, ironicamente, pese embora a grandiosidade adquirida por um projecto que por vicissitudes várias durou cerca de trinta anos até que conseguisse concretizar-se, o nome de alguém que também por terras italianas se dedicava à aprendizagem do ofício de sapateiro se sobrepõe ao de Martin Scorsese: o nome de um actor infinitamente maior que qualquer uma das personagens que já corporizou: Daniel Day-Lewis. E, meus caros, há que dizê-lo, o homem é um verdadeiro tratado na arte de representar. Filho da mãe!
     
      Naquela altura, a cidade contava cerca de oitocentos mil habitantes e ao seu porto chegavam, dia após dia, numerosos grupos de imigrantes irlandeses em busca daquilo que hoje designamos como o sonho americano. Mas aquela era uma época dura e esperava-os uma vida miserável agravada por dolorosas convulsões sociais. A sua vivência decorria assim trespassada por ódios e rivalidades que invariavelmente levavam ao derramamento de sangue. A população irlandesa era perseguida pelos autodenominados Nativos, que para além de se organizarem em temível gang fundaram um partido político. Na figura dos imigrantes, e novos habitantes, eles viam uma perigosa ameaça para o futuro da cidade e para o seu próprio bem-estar. Para lá de todos estes conflitos, como se já não bastassem as sangrentas querelas a que conduziam, o país afundava-se na guerra civil e o povo revoltava-se contra o recrutamento obrigatório. Envolvidos nas diversas questões relatadas encontram-se o sanguinário líder dos Nativos, justamente conhecido por Bill ‘The Butcher’ (Daniel Day-Lewis), e um jovem, Amsterdam Vallon (Leonardo DiCaprio), à procura de vingar a morte do pai. Este, morto às mãos do carniceiro Bill, era o Padre Vallon (Liam Neeson) um antigo líder do gang defensor da causa irlandesa.
     
      Como se pode observar, dada a temática vasta e algo complexa, a Scorsese apenas restava fazer uso de toda a sua perícia narrativa para a explanação dramática dos diversos elementos da trama. E esta é, quanto a mim, a maior brecha do filme. Isto porque Scorsese se perde em questões de pormenor que atribuem à película inegável valor técnico e artístico mas lhe retiram alguma fluidez e solidez dramática. Desse modo, nem o reconhecido virtuosismo cinematográfico do realizador salva a fita de se tornar entediante em alguns dos seus cerca de cento e sessenta minutos de duração. No entanto, em apreciação contrária, diga-se que o olhar sobre a história de edificação de uma cidade – e de uma nação – que nos é oferecido pela câmara do velho Marty, recusa qualquer tipo de indesejável e mui patriótica complacência. É, reconheça-se, um olhar realista o que nos é apresentado. Olhar esse onde a delinquência, a corrupção, a violência e demais exemplos de sórdida conduta dos homens são meros elementos exemplificativos daquilo por que é, em grande parte, composto o enredo do filme.
     
      Paralelamente, atravessa o filme uma história de amor e vingança. Nela, as personagens cruzam rumos, confundem sentimentos e contrapõem objectivos. E também aqui, em matéria de credibilidade romanesca, é relevante a recriação de uma cidade e de uma época. Pelo respeito pelos costumes, de que é exemplo a arte da guerra então seguida e que o filme expõe. Também pelo guarda-roupa e pela caracterização, e pela ambiência doentia e viciosa de tabernas e bordeis. Mas, como já atrás se referiu, é a Daniel Day-Lewis e à sua espantosa interpretação, cuja variedade de registos vai desde a mais terrível das crueldades ao mais nobre dos gestos – tudo isto regado com sedutora e pictórica excentricidade, que pertencem os momentos mais sublimes do filme. A Leonardo DiCaprio resta a consolação de ter conseguido responder com a inatacável dignidade da sua prestação a opositor de semelhante envergadura.
     
      Conclusão final: embora menor que aquilo que justificaria a sua própria ambição, há que concluir que «Gangs de Nova Iorque» é um grande filme. Possui uma postura épica que lhe confere uma dignidade que não é afectada pelas imperfeições de que padece. Até porque esta é uma obra que pretendeu respeitar uma certa pureza artesanal do cinema, enjeitando, sempre que possível, o artificialismo dos efeitos especiais. E isso deve ser considerado e valorizado. Este é ainda um filme que tem Daniel Day-Lewis. Ele, um actor, um homem, que parece desaparecer na pele das suas personagens. Ganha, com isso, o cinema. E ganhamos todos nós os que assistirmos aos filmes.

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