quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A FALHA



      NO ALENTEJO, A REVISITAÇÃO DOS FANTASMAS DO PASSADO
     
      Numa adaptação do livro de Luís Carmelo, João Mário Grilo realizou «A Falha». Uma realização não no sentido de amostragem daquilo que é a obra literária mas sim da interpretação que o cineasta, o próprio J.M. Grilo, fez da sua leitura. A declaração pertence-lhe. Mas, antes de tentarmos apreender qual foi a interpretação do realizador, explique-se um pouco da trama através da qual este a pretendeu expressar cinematograficamente para o espectador. O filme trabalha o reencontro de um grupo de antigos colegas de Liceu vinte e cinco anos depois de terminada essa ligação estudantil. O epicentro físico da trama, e talvez seja essa uma primeira indicação de intenções, é o Alentejo, a cidade de Elvas. Está-se então em finais de 1988, uma altura em que a revolução de 1974 se distancia já no tempo e os contornos das mudanças políticas e sociais do nosso país começam a definir-se com clareza. Percebemos pois que é pela dimensão psicológica e social das diversas personagens que se tentará a abordagem política da narrativa. E será pela densidade dramática das suas memórias então reavivadas, quase invariavelmente memórias negativas entrecortadas por algumas outras – poucas – de pendor romântico, que se transmitirá o agudizar da trama. E as raízes familiares, sociais e culturais de cada uma das personagens parecem ter sido determinantes para aquilo em que cada um deles se tornou: desde a aparente felicidade do pitoresco e risível novo-rico, passando pelo proletário zangado com o mundo para terminar, entre outros, com o militar arrogante e permanentemente em guerra onde até as mulheres são vistas como alvos a conquistar para usar e humilhar a seu bel-prazer.
     
      No entanto, o filme rapidamente é vítima das suas desajustadas ambições concepcionais e mais do que se tentarem perceber motivações todos os esforços são obrigatoriamente canalizados para a tentativa de compreensão da exposição dos seus elementos. O desenrolar dos acontecimentos na narrativa e no seu próprio espaço temporal, a inclusão de um registo documental pós acontecimentos em “tempo real”, e a intromissão nisto tudo de flash-backs dos tempos de Liceu das personagens, resultam numa monumental confusão e tornam-se elementos limitativos das meritórias pretensões políticas de J. M. Grilo para este seu filme. Aliás, o filme acaba mesmo por não conseguir atingir uma satisfatória consistência intelectual quanto mais provocação política. E o alerta, ou denúncia, mesmo que circunscrito apenas a territórios da criação artística, perdemo-lo sem alguma vez o termos encontrado. O exemplo maior para o que se afirma encontramo-lo por alturas do conflito fulcral do drama. Exactamente nos momentos em que o grupo é vítima de uma falha geológica (?) em plena visita a uma pedreira. Aí procuram-se enumerar as falhas mais evidentes de cada uma das personagens como se essas diferenças culturais e sociais entre si fossem directamente resultantes do rumo de um país seguido em traição ao espírito de uma revolução. Mas o que é que se obtém, ainda para mais de forma absolutamente inverosímil e mesmo patética? A simples evidência de características inerentes ao homem enquanto ser humano. No fundo, uma primária exposição de algumas das suas decadentes fraquezas e deformações de personalidade. Quer isto dizer que nada do que se observa tem relação com questões políticas.
     
      Duas últimas referências: a primeira para o trabalho dos actores que em momento algum conseguem transmitir um registo de espessa gravidade para o drama que vivem sem caírem imediatamente para um involuntário registo de comédia. A segunda referência vai para J. M. Grilo e para a relação tentada entre aquilo que foi uma revolução e aquilo que dela resultou no entendimento do realizador. Ou seja, a relação entre a verdade factual e a sua verdade. E nada melhor que citar o filósofo italiano Antonio Gramsci ao recordarmos a sua breve afirmação de que “a verdade é revolucionária”. É que foi por aí mesmo que abortou a realização de J. M. Grilo em «A Falha». Porque a verdade que nos quis dar a entender ou não existiu ou nunca conseguiu dar-lhe a consistência necessária para que pudesse vingar. Resultado disto? Uma revolução (leia-se filme) falhada.

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